Caro Carlos Vinhal:
Os meus melhores cumprimentos, extensivos a toda a Tertúlia.
Teixeira da Silva
OS DERRADEIROS SOBREVIVENTES DE PONATE
Quis o destino que um conjunto de 48 atónitos maçaricos - um pelotão reforçado - da CCAÇ 1498, acabadinha de desembarcar, comparecesse em Ponate a fim de render tropas do BCAV 790 que estavam em mudança para o Quartel de Pelundo.
Assim, após um dia inteiro de marcha, em que as surpresas sucediam a cada instante, surgiu, imperceptível, numa área desmatada, um lastimável aquartelamento nunca antes imaginado.
Ponate - Vista geral do quartel
Passado o cavalo-de-frisa, depararam com a mais humilhante miséria:
- Um casebre construído em adobes de argamassa, coberto a chapa zincada, para alojamento de pessoal, sem distinção de postos ou classes;
- Duas barracas, em colmo, a servirem de cozinha e refeitório;
- Três atalaias - cinco a seis metros acima do solo - com sentinelas cercadas por bidões de gasolina;
- Quatro paliçadas em cibes carcomidos sitiavam toda a desgraça.
Aonde é que nos viemos meter? – Se estavam atónitos à chegada, estarrecidos ficaram quando o sol se escondeu!
A iluminação era a petróleo: candeeiros Petromax em redor do arame farpado e mechas de gaze - em gargalos de garrafas - na caserna, cozinha e refeitório. No resto, a escuridão era absoluta.
Equipamentos destinados a cuidados de higiene? Nenhuns! – Nada que pudesse garantir saúde, bem-estar físico e mental, de modo a evitar doenças. Em vez de latrinas abriam-se valas, fora do arame farpado, e em vez de duches existiam selhas feitas de barris de vinho, serrados ao meio.
O estado das coisas motivou um lamento: tratam-nos como bandoleiros. - A frase inspirou a criação de um topónimo para colocar, logo nesse dia, à entrada do principal cavalo-de-frisa: “HOTEL BANDIDO DE PONATE”.
Ponate - Junto ao topónimo
Mas o pior ainda era a falta de água. A privação deste precioso líquido sujeitava o pessoal a riscos diários, em deslocações a Bula, percorrendo 13 Km, em cada sentido, com uma cisterna de 1000 litros atrelada.
Ocupando uma área com cerca de 3000 m2 e sem população à vista, o Quartel situava-se nas proximidades da mata de Jol, não muito distante da assombrosa bolanha de Nhaga. – A missão do seu reduzido efectivo consistia em assegurar liberdade de acção entre Bula e o Cais de São Vicente, na margem Sul do rio Cacheu, mantendo-se ao corrente de todos os acontecimentos e em total ligação com o comando do sector.
A segurança das instalações era inquietante: Refúgios ou abrigos, praticamente nem existiam e as paliçadas dificilmente aguentariam um simples ataque. Daí elaborarem um plano de obras a executar em duas fases:
1 – Construção de 3 refúgios subterrâneos, bem como um conjunto de chuveiros e latrina, sem dispensar a reconstrução de todas as paliçadas.
2 - Edificação de uma “casinhota”, em blocos de cimento, para instalação de um gerador eléctrico. - Nada serviu esta edificação, porquanto, embora prometido, o gerador jamais ali apareceu.
Ponate - Abrindo um abrigo subterrâneo - Armando Teixeira da Silva ao meio com a pá
Estas obras realizavam-se sem prejuízo das actividades a desenvolver além do arame farpado, ou seja: escoltas diárias à cisterna da água, patrulhamentos diurnos e/ou nocturnos, inspecções às tabancas e consequentes controlos da população indígena, reconhecimento de trilhos e caminhos, e de quando em vez, montagem de emboscadas. E como se já não bastasse, ainda ajudavam Companhias de intervenção, em operações na confinante e arriscada mata do Jol. Isto é: em Ponate, a missão, além de perigosa, era árdua e difícil.
Até dentro do arame farpado a situação era delicada, sobretudo, pela indigência das instalações e das privações de toda a espécie – mesmo alimentares. Apesar de tudo lá iam sobrevivendo.
Ponate - Se não fossem os petiscos...
Ponate - Momento de lazer
Fotos: © Armando Teixeira da Silva Editadas por Carlos Vinhal
Até que, inesperadamente, uma mensagem, recebida no ANGRC 9, melhora-lhes as expectativas. – Bula comunicava-lhes o fim da sua presença em Ponate. O primeiro a saltar, de contentamento, foi o radiotelegrafista. Outra coisa, porém, ainda estava para vir.
Continuando a tradução da mensagem concluíra-se que o próprio Quartel, simultaneamente, desapareceria do mapa. Jamais uma mensagem fora tão marcante. Acontecimento para comemorarem de modo muito especial - emborcando cerveja até o stock se esgotar.
Assim, abruptamente, extinguiu-se o Quartel de Ponate. Decisão que os maiorais tomaram quando perceberam, a meu ver tardiamente, a evidência dos perigos a que as tropas estavam sujeitas e as condições deploráveis (porventura infra-humanas) em que se encontravam. A mensagem surgiu-lhes ao cair da noite, todavia, a vontade de mudarem de ares era tanta que se dispensaram de dormir. Puseram mãos à obra e foi até ser dia.
Entretanto, já o sol raiava, vêem chegar camaradas especialistas em minas e armadilhas, transportando engenhos explosivos para armadilhar os pontos mais susceptíveis, na expectativa de o IN os virem a despoletar.
Por fim, com as viaturas a abarrotar a seu lado, percorreram, a pé, os 13 Km que os distanciava de Bula, em cujo Quartel já tinham missão determinada.
A história da guerra considerá-los-á os derradeiros sobreviventes de Ponate. - O calendário assinalava, então, 04/Dezembro/1966. - Entretanto a guerra duraria mais sete anos e meio.
Ao que sabemos, jamais outro qualquer Quartel ali foi edificado. Naquele espaço de tempo - superior a 10 meses - houve minas que os feriram, emboscadas que os massacraram, bolanhas que os inundaram, picadas que muito os agastaram, trilhos e caminhos que os emaranharam, tempestades que os atemorizaram. – Todavia, também houve, em abono da verdade, momentos aprazíveis, de amizade e júbilo, que muito os distraíram e estimularam.
Localização de Ponate. Vd. Carta de Bula 1/50.000
O último efectivo em Ponate:
Agostinho Costa Ferreira
Albino Baptista Barroso
Albino Sá Júnior
Alfredo Lopes Correia
Amadeu Pereira Couto
Amândio Sá Silva
António Ascensão Nascimento
António Beatriz Pedro
António Guilherme Silva
António Joaquim Inverneiro
António José Carneiro Santos
António José Martins Correia
António Mingote Mouco
António Montana Silva
Armando Barbosa Lemos
Armando Teixeira Silva
Carlos Alberto Rodrigues
Carlos Silva Martinho
Daniel Cabaço Sordo
Dias Cabo-verdiano (fur)
Francisco João Viegas Piedade (fur)
Fernando António V. Lisboa
Henrique António Nunes
Hilário Viana Cruz (fur)
Isidro Mesquita Almeida
João de Barros
João Luís Barros Coelho
João Maria José
João Teotóneo Marques Leal
Joaquim Santos Pinto Caldas
Joaquim Vidigueira Ferreira (fur)
Joaquim Luís Barata
José Jorge Sousa Melo (alf)
José Manuel Felício Manco
José Rodrigues Chaves
Lourenço Silva Machado
Manuel Alves
Manuel Alves Martins
Manuel Ferreira Pinto
Manuel Gomes Ferreira
Manuel José Lopes Gonçalves
Manuel Sampaio Leal
Manuel Serafim C. Ferreira
Manuel Silva Loureiro
Mário Pereira Cunha
Orlando Santos Espadaneira
Virgílio Justo Marques
Victor Manuel M. Chaveiro
Armando Teixeira da Silva
ex-Soldado Atirador
CCAÇ 1498/BCAÇ 1876
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Nota do editor
Último poste da série de 24 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14514: Memória dos lugares (288): Gentes do Geba, parte I (A. Marques Lopes, coronel inf, DFA, na situação de reforma, ex-alf mil da CART 1690, Geba, 1967; e da CCAÇ 3, Barro, 1968)
2 comentários:
Amigo e camarada Armando T. da Silva.
Os nossos patrões americanos sempre muito diligentes em encontrar super-homens e heróis, nas suas guerras vencidas ou perdidas, já teriam feito um grande filme a glorificar os 48 heróis de Ponate.
A nossa industria cinematográfica pobre em meios financeiros, humanos e técnicos não consegue retratar mesmo sem exageros tanto sacríficio e heroicidade como houve em Ponate e noutros lugares sem nome da Guiné.
Os americanos perderam a guerra do Vietname, mas a indústria dos filmes americanos produziu tantos heróis que acabamos por ter a impressão que foram os americanos os vencedores.
A nossa deficiente indústria cinematográfica, salvo raras e honrosas excepções, entre filmes, filmes televisivos, novelas e telenovelas, entretem-se a descrever os dramas existenciais dos jovens e dos burgueses de meia-idade da peninsula de Lisboa até Sintra, por Tejo e mar, indecisos em escolher a loira ou a morena, o mercedes ou o jaguar. Outras vezes criam aldeias irreais, onde os seus habitantes a viver em espaços higiénicamente limpos e desinfectados, têm os tiques das tias da linha e um linguajar parecido.
Camarada fizeste uma bela descrição desses dias, foram tantos, em que passastes por tantos sacrifícios e provações dificeis que a Pátria tão depressa quis tapar num manto de esquecimento.
Mais conhecidos do que Ponate foram na Guiné outros quarteis martirizados pelo guerra e o isolamento, como Guidage, Guilege, Gadamael, Madina do Boé e outros.
De Ponate nunca tinha ouvido falar pelo que agradeço ainda mais o teu texto.
Um grande abraço
Francisco Baptista
Caros camaradas
Ainda bem que o Armando veio trazer esta memória!
De facto, como O Francisco escreve, a epopeia desses homens daria um filme de empolgamento, um filme que fizesse ressaltar as virtudes da determinação, do espírito de sacrifício e de coragem desse punhado de homens que foram capazes de suportar condições tão adversas.
A criação do local foi, está visto, um erro. Principalmente, e desde logo, pela falta de água e pela necessidade de se ter de abastecer a 13 km..... Só por isso não se deveria ter tentado implantar uma espécie de aquartelamento nesse local, mas havia também as outras "não-condições". Aquartelamentos com poucas condições temos conhecimento do "quartel-forte dos índios" do Cachil, com a sua paliçada, temos também a teimosia de Gandembel, mas realmente não me recordo de ter lido sobre Ponate.
Honra aos homens de Ponate!
Hélder S.
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