segunda-feira, 3 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17202: Notas de leitura (943): “O país fantasma”, de Vasco Luís Curado, Publicações Dom Quixote, 2015 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Janeiro de 2016:

Queridos amigos,
É uma boa oportunidade de conhecer os acontecimentos angolanos entre 1961 e 1975. É um romance histórico, Vasco Luís Curado não se atém exclusivamente à narrativa dos factos, forja personagens-tipo, desde o funcionário colonial que descobre, desde jovem, qual a dimensão das relações colonialistas naquela próspera colónia, passando pelo delinquente que percorre os três partidos da luta de libertação, até o alferes que depois de duas comissões descobriu o fascínio angolano e pôs uma fazenda a prosperar.
E assistimos à hecatombe da guerra civil, Vasco Luís Curado usa com mestria as cores de que se veste o horror nas colunas em fuga, as cidades reduzidas a escombros por onde revolteiam saqueadores. É uma outra dimensão do fim do Império, e que deixou mazelas que durante anos dava pelo nome de retornados.

Um abraço do
Mário


O país fantasma, por Vasco Luís Curado (2)

Beja Santos

“O país fantasma”, de Vasco Luís Curado, Publicações Dom Quixote, 2015, é um soberbo romance histórico que se inicia com os massacres de 1961 e culmina com a ponte aérea de 1975 e a chegada dos retornados a Portugal.

Há muitos lugares para esta trama, mas o tempo histórico mais influente passa-se na Gabela, onde dois casais partem com milhares de fugitivos à procura de segurança entre o fogo cruzado dos movimentos de libertação já enfronhados na guerra civil.

Havia muita expectativa com os Acordos de Alvor, formou-se um governo de transição com membros dos três movimentos independentistas, previam-se eleições para uma Assembleia Constituinte e a independência estava marcada para o dia 11 de Novembro. Angola encheu-se de rumores e também de ódios. Falava-se num golpe contra independentista, contava-se com a ajuda sobretudo dos mercenários sul-africanos e rodesianos. Assistimos à degradação das relações entre pretos e brancos na Gabela, os três movimentos abriram aqui delegações e preconizam a paz para todos. Mas as tensões cresceram imediatamente, definiram-se zonas de influência para os três movimentos, agravaram-se as discórdias, ao princípio os brancos não eram hostilizados. Alexandre é oportunista que muda facilmente de partido, cobiça a fazenda gerida pelo cunhado, vai instilando os seus ódios. Os três movimentos continuam a emitir mensagens de um futuro de concórdia para Angola:
“Só os brancos que tivessem cometido crimes contra os africanos teriam problemas. Ninguém perguntou como se iriam apurar essas culpas nem o que iria acontecer aos culpados. Os delegados manifestaram que os soldados estavam bem disciplinados pelos comandantes e acrescentaram que não se vingariam de tantos anos de opressão, que os brancos poderiam estar descansados”.
As reuniões entre brancos são muito acaloradas, um deles desabafa:
“Eu não vou perder a minha indústria para os colonistas. Piro-me daqui antes. A coisa piora para o meu lado se descobrem que estive no Exército e combati a guerrilha”.
Um jovem demente, cunhado de Capelo, julga-se em contacto com Jesus Cristo, será assassinado. Quando Capelo leva o cunhado a Luanda, assiste ao estrondo das batalhas entre os guerrilheiros do MPLA e da FNLA, acabaram-se as promessas de concórdia:
“Havia fogo de armas ligeiras em Luanda. Os movimentos emancipalistas erguiam barreiras em avenidas e ruas importantes para exigirem a identificação dos condutores; assim detetavam os militantes rivais e faziam ajustes de contas. Bandos de delinquentes faziam surtidas nos bairros brancos, roubavam casas, escolas, repartições públicas. Sem obedecer aos seus chefes, grupos de guerrilheiros agiam por conta própria e espalhavam o terror”.

Chegara a guerra civil, primeiro nos musseques, depois avançando para o asfalto. Na Gabela, instalou-se a polvorosa, uma coluna de milhares de brancos põem-se em fuga, numa altura em que Porto Amboim e em Novo Redondo já havia combates entre a FNLA e o MPLA. A guerra chegara à Gabela no dia 31 de Julho, nunca mais houve descanso, a toda a hora se ouviam os tiros da artilharia pesada. Ao fim de uns dias de tiroteio, muitos tentaram uma saída coletiva, tiveram que retroceder. Chegou então uma força militar para escoltar a população e, após conciliábulos com os movimentos de libertação, os brancos puseram-se em fuga. Numa atmosfera dantesca em que há roubos das casas comerciais, em que a dona da farmácia oferecia biberons e fraldas, em que Gabela é pasto do saque, a coluna põe-se em marcha, a população das sanzalas assiste, depois irá participar no saque:
“A cidade ainda ali estava, suja, ferida, aguardando os golpes que derrubariam as paredes e os tetos. Uma parte da cidade branca estava metida nos caixotes deixados nas casas. Outra eram as próprias pessoas que fugiam, os seus carros e bagagens. A última era tudo o que não podia ser encaixotado, enfiado num carro ou num avião: as casas, os prédios, os muros, os postes de iluminação pública, os bancos dos jardins, as pedras da calçada e o asfalto das estradas que, cobrindo a terra, era o próprio símbolo da cidade branca, onde pés sempre calçados não tocavam o pé ou a lama. A cidade fragmentava-se em três grandes parcelas, mas estas iam fragmentar-se mais, quando os carros fossem largados junto dos portos e aeroportos e as bagagens se perdessem ou se fossem confiscadas, ou à medida que os refugiados, confluindo na sua maioria para Lisboa, se dispersassem nas regiões e cidades familiares ou por obra de colocações provisórias. O trabalho de fragmentação era infinito”.

A coluna dirigiu-se para a Quibala, vão na coluna 13 mil pessoas, circulam entre os 5 e os 10 quilómetros por hora. Surgem barreiras, é preciso parlamentar, chegaram a Nova Lisboa. Mas nem tudo correu bem:
“Houve pessoas que não tiveram a mesma sorte na estrada Quibala-Nova Lisboa. Uma família parou para fazer alguma necessidade e surgiram guerrilheiros que mandaram todos sair do carro. Uma miúda de 10 anos assustou-se, desatou a correr e foi abatida. Os pais tiveram de seguir viagem com o cadáver. Contaram-se variantes desta história. Alguns elementos da FNLA que integraram a coluna, disfarçados de mulheres ou escondidos em sacos de batatas, foram apanhados e mortos a tiro de metralhadora por elementos do MPLA”.

Em Malange, também se vive no Inferno. Quando Célia, a namorada e Alexandre, aqui chega, já se improvisam posições de defesa, o aeroporto está fechado:
“De todas as partes da cidade chegavam refugiados. O quartel, que tinha espaço para 300 pessoas, acolhia umas 10 mil. A tropa servia esparguete e salsichas. O ar estava empestado com o fumo dos incêndios e do cheiro a putrefação. Como noutros prontos atingidos pela guerra civil, organizaram caravanas de carros, com escolta militar, para levar a população para Nova Lisboa, cujo aeroporto estava a escoar milhares de refugiados para Portugal”.
Célia aproveitou a escolta até Nova Lisboa, dali seguiriam para Sá da Bandeira. O panorama é desolador: carros incendiados na berma da estrada. Numa dessas barragens em que os fugitivos eram obrigados a parlamentar, muitos perdem a cabeça, depois de assistir à brutalidade que exercem sobre as suas famílias, puxam das armas e atiram a matar. Nova Lisboa é igualmente um pandemónio.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de Março de 2017 > Guiné 61/74 - P17190: Notas de leitura (942): “O país fantasma”, de Vasco Luís Curado, Publicações Dom Quixote, 2015 (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Obrigado Beja Santos.

De facto o escritor relata mais ou menos como se falava na altura, sim porque ele relata o que ouviu aos mais velhos.

Chamou-me à atenção "com dor de alma" o seguinte pormenor: «A guerra chegara à Gabela no dia 31 de Julho, nunca mais houve descanso,...»

BS não menciona, mas a Gabela era um autêntico paraíso na terra, bom clima, bons acessos, grande produção agro-pecuária, vida baratíssima, sem qualquer tipo de guerra durante os 13 anos de guerra do ultramar e o Clube Desportivo ARA da Gabela eram enchentes no campeonato de Angola.

De notar que a guerra ao chegar à Gabela, a 31 de Julho, não é em 1974, é já em 1975, porque os povos, novos e velhos, brancos e pretos, na expectativa, não acreditavam que houvesse tanta irresponsabilidade que se destruísse aquele paraíso para se entrar numa guerra que duraria 28 anos...se é que já terminou.

É que lá, como cá, tinha já tudo ficado louco nessa altura, e ainda não há muito juízo.

Mas que bom ...que foi!