Hospital de Bolama já em ruínas,
Fotografia retirado do Nô Pintcha, com a devida vénia
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2017:
Queridos amigos,
O teor destas informações levam vitríolo e marreta, é um descasca pessegueiro do governador à administração de circunscrição. As lutas truculentas entre frações republicanas faziam-se sentir na colónia, de acordo com este documento estava manifestamente paralisada.
Começava também um despique entre as agências de Bolama e Bissau, esta última via crescer o volume de negócios, ao Porto afluíam cada vez mais navios, por aqui se fazia o comércio, cada vez mais reduzido em Bolama.
É nisto que o gerente de Bolama se sente inspirado para propor um planeamento estratégico que metia caminhos de ferro em articulação com a África Ocidental francesa. Era moda na época, esta paixão pelos transportes e comunicações, a Escola Superior Colonial dedicará ao assunto a maior atenção na sua revista de 1922, como já aqui se escreveu. Mas o definhamento de Bolama, a despeito de alguns balões de oxigénio, como o tráfego aéreo, será inexorável.
Um abraço do
Mário
Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (4)
Beja Santos
A I Guerra Mundial deixara marcas profundas na vida guineense. No relatório de Bolama referente aos dois últimos anos da guerra, escrevia o gerente do BNU:
“A carestia de vida é espantosa; a alimentação custa o quíntuplo dos tempos normais e é escassa para os europeus; o vestuário na mesma proporção; o pessoal indígena faz-se pagar muito mais caro. A vida em Bolama está, em todos os sentidos, muito difícil”.
E o relato retoma a dura apreciação crítica, não poupa o descalabro administrativo:
“A justiça é toda interina: magistrados e funcionários; o juiz substituto em exercício é um capitão reformado mau pagador, jogador e de uma moral muito duvidosa, Theotonio Maria da Nóbrega Pinto Pizarro; o conservador do registo predial também é um curioso. Havendo faltas graves praticadas nos serviços judiciais, o governo na metrópole nomeou um juiz para proceder a uma inspeção extraordinária a todos os serviços judiciais da província e propor as providências que julgar convenientes a fim de que seja aqui melhorada a administração da justiça. A maior parte dos funcionários públicos, tais como o diretor da fazenda, o diretor dos correios, subdiretor da fazenda, alguns administradores de circunscrição, etc, estão desligados do exercício dos seus cargos, correm sindicâncias aos seus atos”.
Em 25 de Janeiro de 1918, Bolama informa Lisboa:
“Os indígenas de Canhambaque renderam-se pela fome. Vieram os régulos a Bolama prestar vassalagem, parecendo estar terminada esta guerra”. Alguém, na administração em Lisboa, escreve a lápis: muito folgamos com a notícia.
As informações sobre a colónia, constantes do relatório de 1918 e 1919 atingem o nível de franqueza inaudito, é percetível de que em Lisboa se pretende aclarar a situação da divisões nos partidos republicanos, extrair o máximo de informações. O gerente de Bolama é fustigador:
“Nesta parte do relatório cumpre-me dar informações sobre a colónia. Elas estão dadas pelos meus antecessores e só há que ampliá-las ligeiramente e atualizá-las. Os erros apontados por eles e a mesma incompetência governativa persistem. Sucedem-se os governadores e o que se vê feito é nada para o que havia a fazer; a administração não melhora; a imoralidade campeia indecorosamente. Os prometimentos do governo da metrópole de entregar à administração da colónia a coloniais experimentados não passam de vãs promessas; mais alto do que essa necessidade, levantam-se os heróis das revoluções, das sedições e os amigos políticos. Poderão nada conhecer da colónia, não importa, isso não obsta a que surjam como governadores, que venham cheios de projetos inexequíveis e que cada dia mais provas deem da sua inabilidade administrativa.
No exercício a que se refere este relatório, três governadores administram uma colónia; o primeiro, homem gasto, miserável, um cretino que nada fez; o segundo, interino sendo capaz talvez de fazer qualquer coisa, não o fez, porque ocupando o lugar por algumas dezenas de dias, até a chegada do efetivo, assim entendeu que devia proceder; o terceiro, muito novo, desconhecendo todas as nossas colónias, nada sabendo das estrangeiras, ignorando a legislação colonial, fraco de espírito, irresoluto, sem ponderação, sem um plano de governo definido, mudando de opinião quantas vezes lhe indicarem, nada tem feito a não ser aumentar excessivamente as despesas com o funcionalismo (…) Quando não se põe contar com a persistência de opinião do primeiro mandante da colónia, o que dizer dos seus julgados, com quem tem de lidar todo aquele que precise para as suas explorações ou para o seu comércio? Há exceções, mas são raras e essas desaparecem, pois ou são afastadas ou afastam-se voluntariamente, para dar lugar à incompetência.
A Carta Orgânica, panaceia apregoada pelos coloniais da metrópole para todos os males da Guiné, primeiro posta em execução, depois suspensa, depois e agora em vigor, mas já alterada e em vias de sofrer ainda mais projetadas alterações, nada veio melhorar as condições da província; a repetida descentralização passa desapercebida, e talvez seja um bem a sua não-existência. O principal corpo consultivo e deliberativo da colónia, o Conselho do Governo não está à altura da sua missão, os seus membros na quase totalidade são os primeiros a dizer que nada se importam com “aquilo”, que não devia existir; outros que não estão para se incomodarem e que votam tudo, e ainda outros têm em sessão uma opinião e fora dela outra! Esse corpo não devia existir numa colónia atrasada como esta e para onde, com raras exceções, vem parar o refugo do funcionalismo; só serve e servirá para entravar a ação do governador quando ele seja um verdadeiro governador e para sancionar a incompetência ou encobrir a responsabilidade de quem não tenha envergadura para o ser.
Foi feita uma nova divisão administrativa da colónia. Criaram-se novas circunscrições com os correspondentes administradores, secretários e chefes de posto. O pessoal novo para preenchimento de tantos lugares foi recrutado sem escrúpulo algum. É certo também que a maior parte do ano passou em descanso em Bolama e Bissau com todos os vencimentos. Chegada a ocasião do arrolamento e cobrança do imposto de palhota, tudo foi para os seus lugares a fim de terem direito às grossas gratificações sobre a cobrança.
Devendo este pessoal administrativo ser escrupulosamente escolhido dado o seu constante contacto com o gentio, que tem de ser civilizado, e sendo de absoluta necessidade a sua larga permanência nos seus lugares para se inteirarem dos usos e costumes gentílicos, para dirigirem a construção de estrada e a execução de outros melhoramentos, em cada circunscrição, fácil será avaliar o que seja o progresso dessas circunscrições quando o pessoal andou de passeio os meses que não foram da cobrança do imposto. É por isso que as estradas continuam por fazer, os rios e canais se vão obstruindo com os restos de arvoredo e que com pequenas exceções nada se faz de útil pelo interior da província”.
Dá informações de caráter económico, nomeadamente sobre a mancarra e o coconote, e esclarece que não há indústrias, menciona uma exceção, a da Companhia Agrícola e Fabril que uma fábrica de óleos em Bubaque mas cujos resultados têm sido nulos.
Já despontou a rivalidade entre as agências de Bolama e Bissau, é o momento propício para o gerente de Bolama querer mostrar a Lisboa que o futuro está em Bolama e daqui para o interior da província. É um documento espantoso que iremos seguidamente apreciar.
(Continua)
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Notas do editor CV:
Poste anterior de 6 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17828: Notas de leitura (1001): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (3) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 9 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17838: Notas de leitura (1002): “A Última Viúva de África”, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2017 (Mário Beja Santos)
1 comentário:
Estas leituras de Beja Santos ilustram principalmente a desordem (romântica) dos "colonialistas" que foi aquele período da 1ª república de antes do nosso período salazarista.
Na nossa época, antes da guerra do ultramar, também era muito romântico, mas disfarçava-se mais por causa do...Salazar.
Havia coisas bastante caricatas e até cómicas, alguns tentavam levar a sério, mas era muito difícil não se rirem a bom rir com os outros mais levianos.
Mas se no Ultramar a 1ª República foi um atraso, cá na metrópole, parece que foi pior, há muitos mais relatos que foram autênticas catástrofes.
Quem conheceu aquilo antes da guerra do Ultramar e durante mesmo os 13 anos de Guerra, via que quem tinha mais fé no projecto colonial, eram os próprios homens e mulheres "grandes" colonizados.
Ingénuos, eles não viam que eramos (quase)todos historicamnte uns irresponsáveis?
No caso da Guiné, (um pequeno quintal) este caso de um simples gerente de Banco chamar incompetente e irresponsável a toda a gente de cá e de lá, imagine-se em territórios do tamanho de Portugal, Espanha, Catalunha, Berlengas e Algarve tudo junto, o que ia para ali de bandalheira?
Eu vi alguma, não tanta como aquela a que chegámos há 40 anos para cá.
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