1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 23 de Agosto de 2017:
Queridos amigos,
No meu cardápio de tesouros avultam as aldeias serranas da Serra da Lousã, aqui passei férias inesquecíveis, juntei família e amigos, foi sempre um agrado geral a singularidade destes cenários, há estradas sombreadas que evocam Sintra ou o Buçaco, os declives metem respeito e ciranda-se por estas aldeias percebendo como foi duríssima a vida serrana, não foi por casualidade que todos os habitantes daqui fugiram antes do 25 de Abril, era uma vida rudimentar, em estrita sobrevivência, transacionando lenha e objetos artesanais no mercado da Lousã.
É com grande alegria que vos deixo o convite, para quem não conhece estas paisagens edénicas, de experimentar esta descoberta que a ninguém dececiona.
Um abraço do
Mário
As aldeias serranas da Serra da Lousã
Beja Santos
O viandante, com o concurso do seu amigo Teles Grilo, desenhou uma viagem que passava por Coja, Avô, Aldeia dos Dez, ensaiou-se pousar em Arganil e Góis, era a semana entre o Natal e o Ano Novo, não se encontrou onde dormir, em desespero de causa, ao anoitecer, tomou-se a decisão de avançar para a Lousã, aqui houve acolhimento, nesse final de 1995. Na manhã seguinte, procedeu-se ao reconhecimento da vila, marcada por pequenas indústrias, algumas casas nobres e sobretudo um entorno florestal magnífico. A jeito de descoberta, avançou-se para um local chamado Cacilhas, subiu-se até às Hortas e aqui se fazia menção das aldeias serranas, algumas delas fazem parte na atualidade do conjunto das aldeias de xisto. Caminho horrível, saibro escorregadio, com declive profundo e panoramas de cortar a respiração. E chegou-se à primeira aldeia, Casal Novo, desceu-se a escadaria em Xisto, aliás por ali é a pedra e o xisto que pontificam, e parou-se na contemplação do Alto do Trevim, houve quem suspirasse por ali fazer férias. Pela mesma estrada tortuosa e escalavrada avançou-se para outro povoado que à distância parecia uma aldeia medieval perdida, Talasnal, também aqui o enamoramento foi espontâneo. Encurtando razões, no regresso à Lousã encontrou-se um proprietário de Casal Novo, o senhor Pedro Gomes Santiago, e apalavrou-se uma casa para as férias do Carnaval. Sucesso completo, quem veio quis repetir, assim nasceu a institucionalização das férias nas aldeias serranas, vieram famílias e amigos, ficaram quilómetros de recordações e memórias que não se apagam. Daqui, um dia, se partiu em passeio para Castanheira de Pera e se seguiu por caminhos ínvios até Casal dos Matos, em Pedrógão Grande, onde se reconstruiu uma casa de proprietários agrícolas, foram dois anos a aformosear o local, houve a seguir uma troca por uma casa em Tomar, mas ficaram recordações incandescentes, tão ou mais incandescentes quanto o cataclismo de 17 de Junho de 2017 tudo derruiu, restam paredes calcinadas. Voltou-se em romagem às aldeias serranas, num dia quente de Agosto. Aqui ficam as impressões.
Há muita casa reconstruida, mas dá-se logo nas primeiras impressões pela ausência de presença humana, tal como se sentiu naquele final do ano de 1955. São pessoas que se entusiasmam, que reedificam, que têm hoje a facilidade do piso alcatroado, mas aqui não há discotecas, só o silêncio da montanha, os mais novos não apreciam tanta e tal quietude. É preciso descer uma encosta íngreme até chegar à praia fluvial da Lousã, junto de um castelinho único no país, e de onde se avista, sempre coberta por uma aura de misticismo, a ermida da Piedade. Por aqui se cirandou, em pleno Agosto eram escassos os veraneantes. Mas sabe muito bem ter vindo reviver o passado.
Esta escadaria foi sempre o quebra-cabeças dos mais velhos, naqueles saudosos tempos fazia-se a lista de compras ao pormenor, situações houve em que por esquecimento se teve que regressar à Lousã para comprar caixas de fósforos ou pacotes de leite. Tomava-se o pequeno-almoço e subia-se esta lauta escadaria, descia-se a montanha, mercadejava-se na Lousã, tomava-se café na Túlipa Negra, às vezes a companha exigia ir para a praia fluvial, nestes casos comia-se ligeiro e voltava-se a meio da tarde. No regresso, ninguém se lamuriava a descer todos estes degraus.
Falou-se acima que depois de Casal Novo, naquela manhã de descoberta das aldeias serranas, em 1995, se avançou para Talasnal. O panorama era tão inacreditável que se saiu do carro, questionando que mundo parado era aquele. Muitos anos mais tarde, o viandante leu uma tese de mestrado intitulada “Terra que já foi terra” sobre a vida dos serranos que aqui levaram vida tão mortificada, daqui fugiram, o último habitante das aldeias serranas aqui se suicidou no dia 25 de Abril de 1974, quando chegara um progresso a estas alturas, a eletricidade. Fugiram todos da miséria, da má memória, muitíssimos poucos regressaram. Agora é um paraíso turístico e mesmo residencial. Há alternativos alemães e suíços a viver noutras aldeias, como Chiqueiro e Vaqueirinho. Talasnal tornou-se uma aldeia flamejante, tem comércio, casas para alugar, sente-se que lateja a regeneração permanente.
O viandante e companha vezes a fio desceram uma encosta íngreme, cuja subida fazia suar a estopinhas, à procura do bálsamo desta água corrente, sempre murmurante, circundada por cenários edénicos. Não poucas vezes e fizeram passeios pedestres a caminho da velha estação elétrica e depois tudo se palmilhava até Talasnal. O viandante já não tem pernas e sofre de maleitas na coluna para saborear tal aventura. Preferiu reviver Talasnal, encontrar o senhor Jorge que em 1997 ali montou bar, e que tem sido um sucesso, dedica-se também ao negócio de velharias, o viandante comprou mil páginas dos romances de Italo Svevo, edição de Gallimard, em estado novo, por um euro, há horas de sorte. E também chegou a hora de regressar.
Em jeito de despedida, aqui se mostra a aldeia de Candal, vindo da estrada de Castanheira de Pera a caminho da Lousã é a primeira aldeia de Xisto a visitar, antes de Cerdeira, já em 1995 estava composta e bem mantida. Olhando a imagem, a penúltima casa era um aprazível tasquinho onde se procurava uma bebida fresca e uma sombra. É assunto do passado, o negócio fechou. E assim se viveu um dia magnífico que dá para perceber que a palavra saudade é intraduzível em qualquer idioma.
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Nota do editor
Último poste da série de 15 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17973: Os nossos seres, saberes e lazeres (240): De Manchester para Lisboa, ficam as saudades (9) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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5 comentários:
Linda reportagem de Beja Santos sobre uma região onde não houve "reforma agrária" nem "ocupações" na Revolução dos Cravos.
Foi uma oportunidade perdida! Foi uma pena!
Antº Rosinha 'reforma agrária', 'ocupações', então ? A zona era/é inferior a minifúndio e as casas ou propriedades são dos próprios que as trabalham.
Valdemar Queiroz
Valdemar, mas não eram terras abandonadas antes do 25 de Abril, como atesta o nosso BS, talvez, porque a malta não queria mais fazer calos? digo eu!
Só já serviam para grandes caçadas, tal como os latifúndios para caçadas dos fascistas?
Alí nas serranias sim, é que é e era urgentíssimo fazer uma enorme "reforma agrária", mas claro, trabalhar faz calos, e até o cérebro pode gripar e fazer fumo.
Ant. Rosinha, então se os próprios habitantes fugiram, para trabalhar no 'duro' nas cidades ou na emigração, à procura de melhores condições de vida, o que e que se havia de fazer?
Valdemar Queiroz
Amigo Valdemar, com certeza que solução ideal não seria com "colonos" como o nosso amigo Beja Santos que ocupou lá o seu espaço, para ocupar aquelas serras, apesar da sua boa vontade, mas também ajudariam alguma coisa.
Mas aquele entusiasmo de Abril pela agropecuária contra o qual nenhum latifundiário arranjou argumentos, será que os pequenos pastores e agricultores de Arganil, Lousã e outros penhascos, vinham da França e do Brasil ou da função pública, resistir àquele entusiasmo?
Claro que os pessimistas daquelas paragens, sempre acharam que a "agricultura era a arte de empobrecer alegremente", e o pessoal de Abril devia conhecer esse ditado, mas não saberemos se daria resultado, porque ali ninguém tentou pegar na enxada.
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