domingo, 19 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17989: Blogues da nossa blogosfera (80): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (1): "Ao redor do nevoeiro" e "Uma virgem de branco"


Do Blogue Jardim das Delícias, do nosso camarada Adão Cruz, médico, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos dois textos e duas imagens da sua autoria.



Ao redor do nevoeiro

Adão Cruz

© Adão Cruz

Hoje sou eu que vou ao teu encontro por dentro deste nevoeiro denso que tudo esconde.
Mas não sei onde estás nem sinto os teus cabelos de incenso.
Sei que moras para lá do tempo, entre dálias e gerânios, entre memórias e sonhos de um segredo.
Mas o coração diz-me para seguir em frente e não ter medo.
Sem saber ao certo quem sou, levo comigo a razão, único caminho que rasga o nevoeiro e rompe as algemas, e me deixa ver a luminosa transparência do teu corpo, para lá das algas e dos peixes verdes dos poemas.
Tu estás do outro lado de um beijo, e eu quero abraçar-te pela cintura neste apagado incêndio dos sentidos, ainda que seja demasiado tarde para a verde ternura de um desejo. Hoje sou eu que vou ao teu encontro em meu corpo de terra antiga que já não seduz.
Vou dar um passo em falso no nevoeiro, para lá dos olhos sem luz.
Assim o decidi ao ver-te perdida, na altura em que o nevoeiro sem sentido caía pesadamente sobre a rua.
Mas não eras tu… era uma chama de lábios e lume ardendo em estranho leito nupcial de um qualquer tempo já perdido.
Foi então, que no ventre do nevoeiro inventei a noite entre lençóis de neve, mordidos de uma luz oblíqua que não era minha nem tua, e se perdia na pele branca de um qualquer corpo que eu não sentia.
Era como se um rio cantasse entre a lua, as águas e o nada… e fosse demasiado tarde para ser música no violino da madrugada.

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Uma virgem de branco

Adão Cruz

© Adão Cruz

Ela percorre a noite com a vida suja enfiada num saco, tentando vendê-la ao desbarato, enquanto a chuva pegajosa lambe as paredes negras sem lua, e os olhos caiem no chão dos curtíssimos horizontes de todas as incertezas.
No ar húmido paira um cheiro a palavras mortas e orações podres amontoadas numa lixeira, e o chão é um corpo inundado de terra enlameada de todas as virtudes.
Ela percorre a noite com a alma nua enfiada num saco, esperando que do espesso... nevoeiro irrompa uma virgem vestida de branco com uma pedra de sol em cada mão.
Mas a noite negra e sem lua apenas lhe promete a morte de estar viva, porque o sol é uma mentira tão grande como a verdade das pernas enroladas no medo e na fraqueza.
Ela percorre a noite por entre os buracos da ilusão, com a vida suja e a alma nua enfiadas num saco, tropeçando nas horas e nos absurdos do sentimento.
E as dores são gemidos mudos entre a cama fria e o vestido rasgado, e os braços repartidos numa esquálida vaga de fundo entre carnes a desfazer-se.
Ela percorre a noite remotamente mansa, escorrendo o corpo injusto e servil da chuva oleosa de um céu faminto de tempestade, e ninguém lhe compra a vida nem a alma.
No duro sono de um vão de escada, a morte vestida de virgem branca espera pacientemente entre a vida e a alma, a hora de ser a ponte para os restos de um sonho.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17979: Blogues da nossa blogosfera (79): Carlos Esteves Vinhal, editor de mais um blogue, o da Associação Universidade Sénior de Matosinhos (Luís Graça)

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