António Lúcio Vieira (1943-2020) |
Natural de Alcanena; viveu em Torres Novas.
Jornalista, poeta, dramaturgo, encenador; autor, entre outros, do livro "25 poemas de dores e amores", vencedor da primeira edição do Prémio Literário Médio Tejo Edições, 2017.
Faleceu ontem.
Deixamos este poema de sua autoria que nos foi enviado pelo seu amigo e nosso camarada Carlos Pinheiro.
"rua da memória"
não eram ainda os dias iluminados
da quinta das altas faias
dos mistérios das grutas
nos Olhos d’Água
dos poeirentos trilhos de aventura
nas terras dos Arneiros
o meu mundo era então apenas
nos tímidos dias de acordar
a singular rua onde nasci
e onde o sossego das horas
ecoava entorpecente pelas tardes
o meu pai montava altivo
uma Norton vermelha
de másculo motor
em cujo dorso voei aventuras
e de onde se libertavam odores
que ainda não esqueci
ao fim da tarde escancarava-se
rangente a larga porta da rua
com postigo de vidraças
e a moto vermelha entrava
levada pela mão cruzava a sala grande
seguia pelo corredor
até se deter em discreto canto
na imensa sala da lareira
junto à varanda das flores
por onde se filtrava a luz da tarde
não havia outro local onde guardá-la
e aquele espaço de forno e lareira
chão de soalho e cimento
era afinal quase meia casa
na salinha de costura
a avó Antónia suspendia o passajar
que a hora do jantar era já breve
e deslizava até à rústica bancada
junto ao forno onde no Natal
nasciam as negras broas com sabor a festas
lá fora a pequena rua
calçada de seixo castanho
ia então escurecendo
quando os restos de luz desmaiada
escorriam agonizantes
no alpendre da ti’Ludovina
um pouco abaixo
a noite chegava mais tarde
quando o sol se derramava
por detrás da vivenda com jardim
debruçada sobre os longos degraus
pequena quase envergonhada e discreta
a minha casa escondia-se no patamar
entre os dois lances da larga escadaria
e toda a encantada rua era calçada
em seixos que brilhavam com a chuva
arredondados polidos e castanhos
subia-se por ela ao Outeiro
e por ali se descia rumo à ladeira da fonte
ou à praça à Parreira à Varandinha
e ao miradouro à boca das Ladeiras
ao fundo dos degraus junto à padaria
e frente ao ladino alfaiate
no pequeno e fundo rés-do-chão
da “menina” Henriqueta
longe ainda dos tempos da escola
rasguei deslumbrado horizontes
e parti à descoberta das primeiras letras
que não mais me dariam tréguas
numa estreita serventia sem saída
logo acima dos degraus de cima
recolhia o meu avô António em acanhado e escuro palheiro
com cheiro a esterco a fava seca e a feno
a burra branca malhada que
resignada e pachorrenta me levava à horta e à fazenda
para as bandas do Peral
nas tardes de colher o sol
e soltar no regato barcos de papel
precursores das mil viagens
de um incurável vadiar
era porém pelos santos de verão
que a rua despertava e gritava vida
a Inês juntava braçados de alecrim
no cimo da rua incandescia-se a fogueira
onde se queimavam risos e alcachofras
noite dentro pulava-se o braseiro
a gaita de beiços do Fura-Palha
enchia de modas aquele recanto do Outeiro
vinha gente de outras ruas
debicar broas e fritos
e beber os prazeres da noite
espargiam-se os corpos
de fumos e de aromas
dos arbustos do campo
e a música e o perfume silvestre
ungiam a rua invadiam as casas
e seguiam pelas travessas tortuosas
ao encontro das sombras nas esquinas
já só as paredes recordam
a velha escola da menina ”Requeta”
e os fatos por medida do mestre Louro
mudaram-se as pessoas
secou a hera na parede do Polaco
e ninguém por lá agora lembra
a burra malhada do avô António
no patamar de seixo
as paredes do número onze
que em distante Janeiro me viram chegar
tombaram vencidas
num monte de escombros
restou-lhe de pé um rosto amarelo
e uma outra porta de postigos
debruada com vasos de flores
do saudoso tempo
partiram os rostos e as vozes
e daquele povo que a rua acolheu
já ninguém lá mora
sem dó levaram os seixos
brilhantes em dias de chuva
e vieram automóveis
violar a castidade da minha rua
é assim
tudo envelhece e se transforma
olham-se agora outros rostos
e até as ruas como a minha
sofrem incúrias e vexames
que as ruas têm alma e corpo
e adoecem e morrem
quando os homens querem
a minha rua de brincar
que o menino infante sonhava assim para sempre
não é agora mais que um espaço
maculado e raso de saudades
o resto de um passado
do pequeno sonhador
que bem cedo perdeu a inocência
a minha Rua da Cova
bem podia chamar-se agora
sei lá rua do Berço ou rua dos Sonhos
da Utopia da Saudade talvez da Inocência
ou apenas Rua da Memória
António Lúcio Vieira
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Nota do editor
Último poste da série de 1 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20405: Escritos do António Lúcio Vieira (5): Alvorar
3 comentários:
Conheci-o na Tabanca do Centro entre tantos que ali se juntavam todos os meses. mais tarde conheci a sua escrita e a sua poesia, que funcionava para além dos sentidos numa distribuição límpida e clara. Contava nas entrelinhas como e porquê a vida vai depositando sob os nossos ombros conhecimentos alívios e dores .
Hoje tomei conhecimento da sua morte através do Carlos Pinheiro .
Ficamos mais pobres.
Morte lamentável como todas as mortes quando morre um homem bom, porque quem escrevia como ele, provava ser um superior e que vai deixar um rasto aos vindouros nas suas palavras.
Há família enlutada bem como aos camaradas e amigos mais chegados quero deixar aqui os meus mais profundos pêsames e desejar que fique em paz.
É pena, também esteve como nós na guerra da Guiné.
Merecia ter estado mais uns bons anos connosco.
Os meus sentimentos.
Valdemar Queiroz
Como eu gostava de tê-lo conhecido! O retrato que António Lúcio Vieira nos fez, neste seu poema, da sua infância vivida na vila de Alcanena e da rua onde cresceu, não tem preço. Sinto-me como se eu mesmo tivesse vivido o que ele viveu. Conheço a vila de Alcanena, é verdade, mas conheço-a de uma forma muito superficial, e também os Olhos de Água (onde o Rio Alviela deixa de ser um rio subterrâneo para passar a correr a céu aberto e a dar de beber à cidade de Lisboa), Amiais de Baixo, Amiais de Cima, Arneiros e a Serra de Aire toda, incluindo Minde, Mira de Aire, Fátima, etc. Agora é tarde de mais para conhecer pessoalmente António Lúcio Vieira. Só posso desejar que, onde quer que ele esteja (se estiver), não deixe nunca de ser o menino da Rua da Cova, em Alcanena, e o notável poeta que foi depois de crescido.
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