terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23016: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte I: De Bissau a Kiev, como estudante bolseiro ou o poder da "sétima sorte": É Deus quem afasta as moscas da vaca sem rabo...


1. Alguns dos nossos leitores mais recentes, que não acompanharam, na altura, a série "Memórias do Chico, menino e moço" (de que se publicaram, a partir de 2011,  mais de meia centena de postes), terão por certo curiosidade em saber algo mais sobre o percurso escolar e profissional do seu autor, o Cherno Baldé, no contexto do pós-independência da Guiné-Bissau..
.

Já sabemos que, em 1975, ele deixou Fajonquito (onde viveu, com os pais... e com a tropa,  desde 1968 até depois da independência), rumando a seguir, já em 1975, para Bafatá onde prosseguiu os seus estudos: ciclo preparatório e o início do ensino secundário. 

 Não temos muita informação sobre os anos de Bafatá, era ele já adolescente e e depois jovem (dos 15/16 aos 19/20 anos). Mas sabemos que não foram tempos felizes. 

Em 1979, irá para Bissau, para frequentar o liceu ex-Honório Barreto (rebaptizado, tal como quase tudo, a começar pela toponímia, com o nome de um dos fundadores do panafricanismo, Kwame N’krumah, 1909-1972).

No ano letivo de 1982/83 é colocado em Quinhamel como "professor voluntário" do ensino primário e, entretanto, habilita-se a um a bolsa de estudo para poder frequentar uma universidade estrangeira. Calha-lhe na rifa uma das repúblicas da então URSS, a Ucrânia. Será na universidade de Kiev que irá tirar o seu curso 
de Planificação e Gestão Económica, depois de ter feito um curso intensivo de língua russsa na Moldávia.

Voltará ao seu país, em 1990, já depois da queda do muro de Berlim e do fim do "império dos sovietes", e a independência da Ucrânia...Mikhail Gorbatchov era então o Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética, o 7º (de 1985 a 1991) e depois o Presidente da União Soviética (o 9º) (de 1988 a 1991)... (Curiosamente, flho de pai russo e de mãe ucraniana.)

Recorde-se que a ex-União Soviética (tal como  outros países da Europa de Leste, do então bloco soviético, mas também a China e Cuba) não se limitou a fornecer armas e munições ao PAIGC, durante a guerra colonial, ajudou a formar grande parte dos seus quadros e dirigentes políticos e militares e, depois da independência, concedeu bolsas de estudo (não podemos quantificar) aos jovens guineenses para acederem ao ensino superior.

Fomos justamente "repescar" alguns dos postes do Chemo Baldé com memórias desse tempo (1985-1990) (*)... Com a devida vénia ao seu autor, e nosso colaborador permanente para as questões etno-linguísticas, o Cherno Baldé, hoje quadro superior numa orgnização internacional a operar em Bissau: mais exatamente é gestor de projetos  na empresa MF CAON FED, Guiné-Bissau. (Vd. aqui a sua página do Facebook).


Memórias do Chico no Império dos Sovietes, 1985-1990 (Cherno Baldé)  - Parte I:   De Bissau a Kiev, ou o poder da "sétima sorte": É Deus quem afasta as moscas da vaca sem rabo...


Cherno Baldé, Kiev, Ucrânia, 1986


por Cherno Baldé


(i) Bafatá a cidade de todos os sofrimentos (1975-1979)

Após cinco longos anos passados na cidade de Bafatá, em Setembro de 1979, o Chiquinho rumou para Bissau onde devia continuar os estudos. Do grupo de mais de cinquenta estudantes que, com ele, tinham vindo de Fajonquito e Contuboel, já não restavam, na corrida, mais do que cinco.

A viagem de Bafatá a Bissau já não se fazia de barco, como antigamente, mas por via terrestre, em autocarros de uma empresa pública (Silo Diata) que seguiam por uma estrada tortuosa penetrando o Óio pelas localidades de Banjara e passando depois por Mansabá e Mansoa, com as suas vendedeiras de sandes a enxamear a estrada de saída para Bissau. Nesta época de magras receitas, são muitas as famílias que vivem do labor fortuito destas incansáveis Bideiras de rua.

Mesmo se a euforia dos primeiros anos da independência ainda continuava a alimentar as nossas jovens esperanças, entretanto, muita coisa tinha mudado, pode-se dizer mesmo que, passados os primeiros cinco anos de independência, a auréola do partido libertador estava muito ofuscada. 

Tinham conseguido, em pouco espaço de tempo, relativo sucesso na industrialização do país, com fábricas e importantes investimentos em projetos agrícolas para experimentação e vulgarização de técnicas e variedades de arroz (DEPA), mas ao mesmo tempo, a fome que grassava nas cidades, apelidada por fome de Luís Cabral, ameaçava criar fissuras no novo e frágil edifício da construção da unidade nacional.

O governo, recusando-se a importar alimentos, apostava na capacidade da produção interna numa economia pequena, fraca e extrovertida caraterizada por uma baixa produtividade e com nível elevado de pobreza. Nessas condições, tratava-se de uma decisão politicamente bem justificada, mas economicamente mal aplicada cujas consequências imediatas serviriam de pretexto para o golpe militar de 1980 que tinha posto fim ao primeiro governo saído da independência.


(ii) Rato de biblioteca em Bissau, especializado em biografias  

Em Bissau o Chiquinho encontrou o que não havia em Bafatá, sítios ideais para fugir da realidade e esconder-se da fome, chamavam-se bibliotecas. Foi nessa altura que ele deixou de ser o estudante aplicado, de caderno na mão, que sempre fora e passar a ser um rato de biblioteca, donde só saía para ir às aulas.

Adquiriu uma predileção especial na leitura de biografias de destacadas personalidades do mundo político, desde figuras sublimes e pacifistas onde pontilhavam o Mahatma Ghandi e Martin L. King, a algumas sulfurosas e místicas como Adolf Hitler ou do tipo subversivo e oportunista como Joseph Goebbels e Vladimir I. Lenine que, no fundo eram tão infelizes e solitários como ele próprio.

Quando terminava esta série, passava para os romances de Jorge Amado, vivendo os destinos trágicos dos seus personagens sui generis, tirados das favelas e praias de pescadores do nordeste brasileiro.

Dessas leituras deve ter cultivado, o Chiquinho, certa irreverência, sentido crítico e o pessimismo que ainda o caracterizam, assim como certa tendência para a evasão. Ele vivia no Bairro de Cupelum de Baixo em casa de um familiar, ex-combatente, e o sítio mais próximo era a embaixada da Líbia, na rua Pansau Na Isna, que liga o QG ao Hospital Simão Mendes, e onde metade do espólio era constituído por livros de Muahamar Kadhafi, de conteúdo intragável mesmo para um aprendiz de revolução, ainda verde.

Em Junho de 1982, com o término do ensino secundário no liceu Kwame N’krumah (antigo Honório Barreto) de Bissau, tinha-se cumprido, finalmente, uma meta importante na sua vida que, alguns anos antes, não passava de um sonho longínquo. Tinha sido necessário percorrer um caminho bastante atribulado e consentir um enorme sacrifício pessoal. Fazer o 7° ano dos Liceus ou finalizar, como se dizia na altura, era um objetivo a que muito poucos jovens da sua geração e condição social podiam almejar.

(iii) Visita à família em Fajonquito, aproveitando as férias grandes (agosto-setembro de 1982)

Pensando agora no futuro, ele tinha feito um pedido no Ministério da Educação solicitando um lugar para lecionar como voluntário, condição que, em princípio todos deveriam preencher antes de pretender candidatar-se a bolsa de estudos para o exterior, mas a que, na verdade, alguns conseguiam esquivar-se, acedendo diretamente às bolsas para países da sua escolha. Eram todos iguais, mas uns eram mais iguais que outros. Mais que poder continuar os estudos, a sua maior expetativa residia, de facto, na possibilidade de poder voar para longe, conhecer outros países, outras gentes, outras bibliotecas.

A seguir, ele aproveitou para visitar a família durante as férias grandes (de Agosto a Setembro de 1982) em Fajonquito. Na verdade tratava-se de uma visita de regozijo pessoal para acenar aos colegas o seu estatuto de finalista. Durante muitos anos tinha sonhado com este dia, imaginando os mais diversos cenários, como se o mundo fosse mudar com este trivial acontecimento. No fim, não só não aconteceu nada de especial, mas ainda teve que ouvir e engolir alguns ditos maldosos de colegas e de pais invejosos que diziam na sua cara preferir a sétima sorte em lugar do sétimo ano.

A sétima sorte, onde estava ela!?... O Chiquinho não sabia que o trabalho e o esforço pessoal pudessem dar a tal sétima sorte. Tratava-se de palavras ocas, carregadas de inveja e de mesquinhez de gente que era incapaz de fazer melhor. O seu pai, esse, estava feliz, imaginando poder contar em breve com a sua contribuição no sustento da numerosa família.


(iv) Colocado em Quinhamel como "professor voluntário": É Deus quem afasta as moscas da vaca sem rabo...

Quando voltou à capital já tinham feito a colocação sem contar com ele. Por preencher restavam somente alguns postos de escolas situadas em localidades pouco atrativas. Assim, ele teve que escolher entre uma escola de Susana e outra de Quinhamel. 

Sendo originário do leste, era a primeira vez que ouvia falar dessas duas localidades, pelo que se deixou guiar pela intuição e pela música da intonação. Escolheu Susana, bonito nome, e parecia-lhe estar a ver a aparência das meninas locais, susanamente lindas. Devia voltar no dia seguinte para as formalidades.

“Deus ki ta bana baka ki katen rabu” (É Deus quem afasta as moscas da vaca sem rabo), diz um provérbio guineense e foi o que aconteceu com ele. No dia seguinte já só restava uma única possibilidade, a de Quinhamel, alguém tinha ocupado o posto de Susana. Ainda bem. Só muito mais tarde saberia da sorte que acabava de ter. 

Nesse mesmo dia pegou na guia de marcha sem perder mais tempo e foi descobrir, não muito longe de Bissau, uma pequena vila adormecida à volta de palmeirais e cajueiros e pendurada nos dois lados da estrada entre Bissau e Pikin, nas margens do oceano atlântico.

No fundo, o local de afetação era-lhe indiferente desde que não se chamasse Bafatá, a cidade de todos os sofrimentos. Assim, Quinhamel ultrapassaria todas as suas expetativas. Tinha uma escola nova, construída e equipada pela cooperação sueca, um excelente ambiente de vida e camaradagem entre os educadores pouco educados que eles eram, longe dos rigores religiosos do chão fula e muçulmano onde o gesto mais banal era um sacrilégio, onde jovens ainda na flor da idade tinham que encher os ouvidos com sermões obscuros em que o último dos profetas distribuía lugares no cruzamento entre o fogo do inferno e a frescura da glória.

Em Quinhamel residiam meninas simpáticas vindas das localidades circunvizinhas. Os costumes locais, superficialmente tocados por uma igreja católica que o advento da independência colocara fora de jogo, eram muito brandos, o que favorecia um convívio mais livre e saudável entre os jovens. Nos fins de semana ele voltava a Bissau para informar-se das notícias da família.

Aqui, de forma inesperada, ele começou a frequentar a missão católica local onde fez amizade com uma diocesana brasileira (Irma Beatriz) que lhe ensinava a arte de tocar violão com a Bíblia por baixo e, também, começou a colaborar nas atividades da Juventude do Partido (JAAC) através de colegas que faziam parte da sua direção regional e, por esta via, circulava muito entre as aldeias da zona, integrando, por vezes, as comissões de redação no decorrer das conferências do Partido que se organizavam todos os anos.

Se bem que colaborasse com a Juventude [do PAIGC], no seu forro íntimo, detestava o Partido pelos crimes cometidos na sua terra natal e tinha guardada dentro de si a promessa de nunca integrar as suas fileiras. 

Estes encontros, já sem qualquer interesse político, eram momentos de verdadeiras orgias festivas onde as bebedeiras eram uma constante. Não era raro acontecer em plena reunião que grande parte dos distintos camaradas delegados estivesse a dormir numa boa, embalados pela monotonia dos discursos e pelo vinho de caju, abundante na região. Sem o saber, esta sua aparente adesão viria a ser importante para a obtenção da bolsa de estudos.


(v) Pedida de bolsa para estudar no estrangeiro atendido em 1985: a "sétima sorte" contempla-o com Kiev, na Ucrània, URSS

Dois anos mais tarde, o Chiquinho fez o pedido da bolsa para o estrangeiro, com boas referências da comissão regional da Juventude de que fazia parte, ainda assim, só viria a ser atendido em 1985. Neste ano, ele fez parte do grupo de estudantes contemplados com bolsa de estudos para a URSS.

Depois de ter encabeçado durante muitos anos a sua lista de preferências, curiosamente, [a URSS] já não era o país que mais desejava, mas seria uma grande sorte se conseguisse partir. Durante alguns meses reinou a dúvida e a incerteza quanto à viagem, devido a informações contraditórias e às mudanças de última hora nas listas de bolseiros. Ele acreditava tratar-se da tal “sétima sorte” de que tanto ouvira falar na sua aldeia, durante as férias.

Pensando bem, havia muito tempo que convivia com ela, a sétima sorte, desde os dias em que ainda criança, armado com um simples bastão, seguia atrás de manadas de gado bovino em louca correria, fugindo das rajadas de vento carregadas de chuva, pelas bolanhas de Berecolon, zonas deixadas há muito para a gente do mato ou quando se pendurava escondido, nas traseiras de um velho Unimog que ia buscar água para a tropa em Contuboel, no rio Geba, a uma distância de 30 km, colocando o seu amigo Dias perante o facto consumado.

(Continua)

Fotos (e texto): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

[Fixação / revisão de texto / negritos / título e 
subtítulos: LG]
_________

Nota do editor;

12 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Julgo que o Cherno nunca escreveu sobre as desventuras do Chiquinho em Bafatá... Terá sido assim tão mau esse período de cinco anos ?

Anónimo disse...

Caro amigo Luis Graca,

Em 1975 a cidade de Bafata ja nao era a princesa do Geba que voces conheceram durante o periodo da guerra e, ainda tentava recuperar do choque causado pela saida da tropa e fecho de muitas casas comerciais devido a falta de clientes bem como a queda da producao do amendoim que fora o grande motor de crescimento da economia da Guine na epoca colonial. Assim, Bafata ja era uma cidade meio adormecida onde as familias enfrentavam grandes dificuldades de sobrevivencia, pelo que nao admira muito que nao pudessem ajudar os parentes vindos do interior para estudar. Hoje, eu faco uma leitura diferente da realidade de entao e posso compreender a situacao, mas na altura 1975/79, pensava que os habitantes eram maus e nao cumpriam a sua obrigacao de solidariedade para com os outros, na verdade passei muita fome que, muitas vezes enganava com alguns frutos que iamos roubar nas plantacoes vizinhas e/ou com os poucos meios que a familia enviava quando podia.

O cenario que acabo de descrever, nao era uma situacao exclusiva de Bafata, pois mesmo em Bissau, a minha situacao em nada tinha melhorado, simplismente ja era um pouco mais crescido e melhor preparado para fazer frente as dificuldades da vida de um jovem estudante sem recursos e sem apoio de familiares, mas como disse "Baka ki katem rabu, Deus ki ta banal" e ja tinha compreendido que o mais importante e nunca desistir dos nossos objectivos. Em Bafata, tinham corrido comigo por 3 vezes e por 3 vezes consegui agarrar numa outra moranca (casa), com ajuda dos meus pais, e continuar a lutar. Em Bissau visitava restaurantes para fazer pequenos servicos ao pessoal das limpezas e/ou da cozinha para colmatar algumas insuficiencias, enfim, era preciso nao desistir e tudo era bom para o efeito.

Obrigado e um grande abraco,

Cherno Balde

Antº Rosinha disse...

Os jovens guineenses da geração do Tcherno estudavam com tal fúria no tempo do Luis Cabral, ao ponto de aproveitarem as raras ocasiões em que havia luz nos candeeiros da rua, para estudar debaixo desses candeeiros.

Era impressionante ver a ansiedade para conseguirem uma bolsa nem que fosse para o "inferno".

Claro que filho de ministro ou de um grande, não iam para Kiev ou Cuba, havia EUA, Lisboa, Paris, Londres, e de preferência ficavam por lá.

Entretanto â falta de bolsas, alguns, tanto de Bissau como Senegal, Serra Leoa e arredores, hoje saem de canoa via Canárias.

Mas aquelas bolsas para milhões de jovens africanos para a União Soviética faziam parte do projecto de um mundo infalivelmente democrático e socialista, e que alguns portugueses também almejavam e sonhavam.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

E impressionante o que nos conta ou relembra o Cherno (, confirmado pelo Rosinha, que conheceu bem o "consulado" do Luís Cabral)... Foram tempos muito difíceis e só jovens, com uma indomável vontade de lutar e vencer, como o Cherno Baldé, podiam chegar ao fim, como chegaram, com todo o mérito, numa sociedade em que, como ele diz, "todos eram iguais mas uns mais iguais do que outros"... Dos alunos de partiram com ele, de Fajonquito e Contuboel, para Bafatá, uma meia centena, mais de 90% ficaram pelo caminho, não podendo prosseguir os estudos no liceu de Bissau... Simplesmente brutal...

Para além da "sétima sorte", valeu-lhe seguramente a dura aprendizagem da vida no quartel de Fajonquito e ao longo da guerra... Afinal, ele foi um menino que não teve infância...

(...) "Pensando bem, havia muito tempo que convivia com ela, a sétima sorte, desde os dias em que ainda criança, armado com um simples bastão, seguia atrás de manadas de gado bovino em louca correria, fugindo das rajadas de vento carregadas de chuva, pelas bolanhas de Berecolon, zonas deixadas há muito para a gente do mato ou quando se pendurava escondido, nas traseiras de um velho Unimog que ia buscar água para a tropa em Contuboel, no rio Geba, a uma distância de 30 km, colocando o seu amigo Dias perante o facto consumado." (...)


Valdemar Silva disse...

Admiramo-nos muito com a chegada em 'canoa via Canárias'.
Cada um entra na onda com o melhor barco que arranja, em busca de uma vida melhor.
Nós, aos milhões, apanhamos barcos à vela e depois a motor para atravessar o Atlântico com destino às Américas.
Foi sempre assim, estranho a admiração.
Seja, agora, dos confins do Burkina Faço, seja há muitos anos de todos os cantos da Europa.

Valdemar Queiroz

Fernando Ribeiro disse...

Caro Valdemar,
Há razão, sim, para nos admirarmos (muito!) com a chegada em "canoa via Canárias" a partir das costas da Guiné, Senegal, Gâmbia e Mauritânia. Se vires uma representação das correntes marítimas no Atlântico, entenderás porquê. Aqui está uma:

https://1.bp.blogspot.com/-KJ-FD-oaBMs/Xrb6EMYio5I/AAAAAAAA2DA/UelSn_BKvAMD9GIUldWL0vW8dXbrbqTVACLcBGAsYHQ/s1600/Mudclima520.0.jpg

Como podes ver, há uma corrente de norte para sul ao largo da costa ocidental de África. Ora as Canárias ficam ao largo de Marrocos. Para atingirem as Canárias, as canoas terão por isso de navegar contra a corrente. Só por milagre é que algumas chegam às Canárias. Em comparação, a travessia do Mediterrâneo é equivalente a um passeio no lago do Campo Grande.

Nunca saberemos quantos desgraçados morreram e continuarão a morrer em canoas arrastadas pela corrente para o mar largo. Há algum tempo, foi encontrada uma canoa à deriva ao largo das Caraíbas cheia de mortos. Todos mortos.

Um abraço

Fernando de Sousa Ribeiro

Valdemar Silva disse...

Caro Fernando Ribeiro
O eu achar haver 'estranha admiração' é dito com ironia, e reconheço não ser para brincadeiras.
A minha mãe costumava dizer 'desde que foram lá cima, nunca mais tivemos tempo como deve ser', a propósito da ida do homem à lua e as mudanças do tempo.
Eu agora digo 'desde que foram ao Iraque' começaram as canoas a atravessar o Mediterrâneo e o Atlântico para chegar às Canárias. Até parece que são os passadores que fazem rebentar os conflitos para ter clientela.
E temos mais um conflito à porta, mas desta vez não vão aparecer canoas com refugiados, vai ser mesmo só de canos de pitrol e gás para a comidinha.
Afinal também é assunto de pitrol como os outros.

Abraço e saúde da boa.
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cherno, obrigado pelas tuas lembranças de Bafatá, em 1975... Infelizmente, o Estado Novo, o regime de Salazar-Caetano (que não se deve confundir com Portugal...) nem sequer um liceu deixou em Bafatá, a segunda maior cidade da Guiné...

Foi preciso improvisar muita coisam a seguir à independência, a começar pelas escolas de ensino secundário... Lembras-te de alguns dos teus professores ? A maior parte deviam ser cooperantes estrangeiros,portugueses e outrs ?! Um deles sabemos que foi o Lino Bicardi, italiano, ex-missionário do PIME, o Pontifício Instituto para as Missões no Exterior, já te referiste a ele...

Antº Rosinha disse...

Valdemar, (e Fernando Ribeiro), todos esses emigrantes, de África, Afeganistão etc, viajam sem carta de chamada, a tal carta de chamada que nós precisávamos, como eu próprio para ir para Angola, e outros para o Brasil e Estados Unidos, essa "cartinha de chamada" está a ser negada a esses milhares ou milhões, e o mundo inteiro impávido e sereno a olhar para o "espectáculo" de naufrágios como sendo uma rotina normalíssima... qualquer semelhança com a diáspora eterna portuguesa (500 anos)com o que se passa hoje, século XXI, que se vais já à lua, é pura coincidência.

Conheço e tenho ou tive (alguns já partiram) muitos conhecidos, vizinhos, parentes próximos ou afastados, que foram para França de assalto sem carta de chamada, ou para se safarem da guerra do ultramar ou para simplesmente ganhar a vida.

Muitos conseguiram o sucesso familiar e financeiro com que se sentem bem.

Mas posso respigar pessoalmente ao vivo e a cores, um ou outro desses meus antigos vizinhos e até bem próximos, a chorar em silêncio, simplesmente porque parte do seu esforço e riscos vários, foram parar aos BES e quejandos, e o mundo mesquinho de governantes e banqueiros e advogados (pós Estado Novo) todos impávidos e serenos a assistir de poleiro de braços cruzados.

Século XXI, o que vale é que a nossa geração já estamos com os pés para a cova, mas ainda vai dar para ver mais algumas coisas interessantes...de poltrona e braços cruzados.

Valdemar Silva disse...

Rosinha, não me referi, ou sequer incluir, a esquisita situação da "carta de chamada".
Não tenho a certeza, mas julgo que a "carta de chamada" só se verificava para o caso das idas para Angola ou Moçambique.
Dizia-me o pai (já falecido) de um meu amigo, retornado* depois de viver muitos anos em Angola,
'Valdemar tinhas que vir com essa da carta de chamada', por eu questionar mudar de Lisboa e passar a viver em Bragança sem carta de chamada, 'e depois andavas por lá sem emprego e quem te valia' continuou a explicação. Não me respondeu a 'então e quem quisesse ir passear?'.
Eu referi-me ao surto de milhões de europeus que nos finais do século XIX/início do séc. XX
partiram de Lisboa, Açores e Madeira emigrando para as Américas devido a guerras e miséria que assolava a Europa.
Casos houve de chegadas de comboio a Lisboa gente de vários países europeus para apanhar viagem nos barcos, acontecendo haver desgraçados com as famílias que ficavam a "ver navios" por terem sido enganados por passadores, incluindo o casos de famílias de alentejanos que abandonavam os seus fracos pertences e enganados sem poder regressar às suas terras.
Eram estes europeus branquinhos e loiros ou mais morenos, incluindo milhares de portugueses, à procura de vida melhor. Referia-me a estes.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

*retornado : aquele que regressa ao lugar donde partiu, ou historicamente aquele que tendo emigrado, ou descendente, para os territórios ultramarinos portugueses e regressado depois de 25Abril1974.

Antº Rosinha disse...

Valdemar, foram 500 anos, mas nem com mais 500 em cima, entenderíamos África. Voltando à carta de chamada, ficava isento de carta de chamada, quem desembolsasse o preço de uma passagem de regresso, que ficava retido esse valor durante um ano.

Ou seja, qualquer turista podia ir e vir sem carta de chamada, logicamente, teria as passagens de regresso liquidadas-

Eu não ponho aqui ponto final, Valdemar, simplesmente porque na Guiné Bissau de Nino Vieira, eu e portugueses tais como por exemplo o nosso Patrício, conhecemos portugueses que por não terem ido para lá com carta de chamada, (alguém amigo que os orientassem) se "esborracharam" completamente que foi preciso alguns portugueses socorre-los.

Houve um caso de um "investidor" agricola perto de Bambadinca...caso muito triste, não devemos descrever aqui.

Estava escrito na porta de uma retrete de uma cervejaria em Luanda, frequentada por desempregados: Africa! meu-deus, que ilusão.

Quem precisou de carta de chamada e se lixou, por não ter alguem de confiança que lha passasse, pelo menos já o vi queixar-se de se sentir desamparado em Angola, esse alguem foi o Ricardo Salgado do BES (BESA).

O da Guiné sem dinheiro (muito) só lhe restou o alcool, sem ter a quem se queixar.

Salgado em Angola tambem ninguem o ajudou.

Não é que a carta de chamada tivesse responsabilidade alem de um ano.

Valdemar Silva disse...

Rosinha, já percebi, já tinha percebido antes.
A "carta de chamada" era como um movimento corporativo arranjado por os que já dominavam o terreno, ou então era como ir para um país estrangeiro em que necessitava de ter um visto de trabalho caso não fosse fazer turismo, parecia ser este o caso, disfarçado com a questão do ter com que se manter.
No primeiro caso, fazia lembrar existir em Lisboa a necessidade de autorização para abrir um negócio em determinada rua, evidentemente os que já estavam no negócio não queriam mais um concorrente. Concretamente aconteceu com os antiquários para os lados da Rua de S. Bento.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz