sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26263: Notas de leitura (1754): Ex-combatentes açorianos da Guiné falam das suas tatuagens (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
Ao fazer a minha ronda habitual na Biblioteca da Liga dos Combatentes, o solícito bibliotecário pôs na secretária este livro e, embora sabendo que a temática tem vindo a ser tratada com alguma proficiência, não hesitei em pôs estes antigos combatentes açorianos da Guiné a falarem calorosamente do que guardam na pele, simples infantes, enfermeiros, condutores, paraquedistas, explicam ao pormenor quando e como foi tomada a decisão, alguns arrependeram-se de pôr um nome e 50 anos depois vão a um estúdio de tatuagem para apagar o que os incomoda. Hesito em formular um comentário quanto à importância dos signos da tatuagem, curiosamente vi que na internet há gente a mexer no assunto. Não escondo que me comoveu a ternura desta iniciativa, uma viagem ao passado, à intimidade daqueles que quiseram selar na pele a memória de um tempo de guerra. E que não fique dúvidas de que é a frase "amor de mãe" ou "amor de pais" a que mais pesa.

Um abraço do
Mário



Ex-combatentes açorianos da Guiné falam das suas tatuagens

Mário Beja Santos

O livro intitula-se "Ultramar na Pele", texto de Diana Gomes e fotografia de Rui Caria, edição do Instituto Açoriano de Cultura, 2020. Testemunham ex-combatentes das três frentes da guerra, guardam memórias do que viram e experimentaram, deles sobrevive uma lembrança, sobretudo um braço tatuado, identificam lugares, datas, amor de mãe ou da mulher. Recorda um escritor açoriano de quem hoje tão pouco se fala e que combateu na Guiné, Cristóvão de Aguiar, legou-nos uma obra expressiva, "Braço Tatuado", tem a ver com um militar ressabiado pelo repúdio da namorada, quer à viva força retirar-lhe o nome do seu braço, tudo se consumará em tragédia. O que se gravava na pele, graças a três agulhas de costura juntas e enroladas em linha, molhadas em tinta-da-china, era fixar no corpo a saudade, o afeto pela mãe, a fidelidade à mulher ou à potencial noiva, tudo em desenhos de básicos, a dimensão ou perspetiva pouco contavam. Podem ter a forma de um coração, de um paraquedas, de uma palmeira, pode meter-se areias ou corações com setas – mas prevalece a palavra “mãe”. Como escreve Diana Gomes, estas tatuagens são impossíveis de copiar, parecem possuir vida própria, não exigem explicação e hoje em dia quem as observa é imediatamente invadido pelo sentimento de respeito por quem a carrega na pele.

Há de tudo para explicar estas tatuagens. Rui Teixeira, que esteve na Guiné entre 1968 e 1970, na Companhia “Os Furiosos”, tinha no braço “Viva Salazar”, volvidos 45 anos entrou num estúdio de tatuagem, cobriu as antigas e agora pode exibir “Viva Portugal”. Francisco Nunes Martins Nogueira, que combateu em Moçambique entre 1972 e 1974 ter-se-á lembrado de uma frase mítica de Churchill e tem no braço “Sangue, suor e lágrimas”. Francisco Melo partiu em 1971 para a Guiné, era condutor de carros de todo-o-terreno. A sua tatuagem é inusitada, como se pode ver na imagem: “God bless me with peace and love”. A autora explica a operação: “O algodão embebido em álcool foi passando pela pele várias vezes para limpar o sangue da luta que as três agulhas enroladas em linha foram metendo. Ao tatuar a pele, acontece, por vezes, um pequeno sangramento, no entanto, o efeito do álcool no sangue, faz esse sangramento ser mais acentuado, fazendo com que o sangue fique mais diluído. Nestas condições o pigmento poderá não ser tão fácil de aplicar ou o resultado não ser tão sólido.”

Há uma âncora no braço de Fernando Simas que partiu em 1967 para Angola. A autora esclarece: “A âncora é um símbolo que se vê frequentemente nas tatuagens dos soldados. Está associado à firmeza, força e fidelidade. É a âncora que garante a estabilidade.”

Vejamos agora Manuel Valadão, foi paraquedista na Guiné, a Companhia 121, quis deixar no braço o comprovativo de que foi paraquedista, Valadão, apesar da sua tatuagem estar desgastada, tem para ele um valor precioso. Há quem teve comissões benignas. José Fernando Lima, condutor em Angola, dirá à autora: “Foram as melhores férias da minha vida, gostei de estar lá e tinha muito gosto em poder voltar e ver como está agora aquela terra que nunca esqueci.” Norberto da Silva Goulart especializou-se na condução de lanchas rápidas em Bissau. Fez duas tatuagens. A primeira em homenagem à pátria, “Guiné 1973-1974”. Na segunda tatuagem, no antebraço direito, quis ver gravadas as iniciais do seu nome e as iniciais da sua namorada, tudo adornado com duas flores.

José Luís Correia de Azevedo seguiu para Bula. No seu pelotão havia um soldado que para além de adorar tirar fotografias fazia tatuagens quando lhe pediam, fez das tatuagens um negócio. Pediu para que lhe tatuassem as palavras “Amor de pais” e “Guiné 70-72”. Pagou ao camarada, ficou a promessa de que este lhe iria oferecer outra tatuagem, quando o José Luís fizesse anos. E no antebraço direito, desde o cotovelo até quase ao pulso está tatuado em letras maiúsculas “Micelina meu amor”. Micelina era o nome da mulher que ele namorava. Regressou a casa em outubro de 1972 e pediu Micelina em casamento. Um amor que já conta mais de meio século.

João Lourenço Oliveira conheceu um outro açoriano em Sare Bácar, na fronteira com o Senegal, foi Mário quem o tatuou com a frase “Justiça Lealdade Guiné 71-73”. Mais tarde, Mário tatuou no braço direito com o nome da sua madrinha de guerra, “Grimanesa”. Acabou por não casar com a Grimanesa, cobriu o nome com tinta-da-china. Pouco tempo depois, apaixonou-se por Isabel e estão casados até ao presente.

Quanto a açorianos, estamos falados. Diana encontrou aspetos muitos versáteis e impressivos nas entrevistas que fez, Rui Caria mostra as tatuagens, mãos calejadas, há mesmo rostos devastados, capta o que eles dizem à entrevistadora, como o tempo passava muito devagar, como a saudade apertava, como se sonhava regressar ao local onde se vivia. Diana Gomes terá razão quando escreve que “a tatuagem não deixou de ser uma pequena ajuda na expiação das más lembranças destes homens, que, por mais vulneráveis que se sentissem não viravam o rosto à luta.” Fizeram confissões, são captados pela máquina fotográfica a apontar a dedo fotografias dos álbuns, há mesmo Mário Areia que foi para Angola em 1970 que mostrou um poema popular, que ela transcreve: “Onze dias levámos/Naquela triste solidão/E à noite nos deitávamos/Lá no fundo do porão. /Quando a Luana chegámos/Era um tal chover/Ficámos todos molhados/E nada podíamos ver/Lá fomos para o Grafanil/Com grande tristeza no coração/Enquanto lá estivemos/Foi sempre a dormir no chão/Depois fomos para o Bom Jesus/Com o corpo a tremer/Fiz o sinal da cruz/Julgando que ia morrer.” E assaltou-me ao espírito o livro que escrevi com o poeta popular António dos Santos Andrade, do BCAV 490, continuo a pensar que é indispensável procurar-se fazer a recolha desta poesia e procurar contextualizá-la.

Saúdo este levantamento de tatuagens em gente açoriana, a escolha de depoimentos singelos, como o de Belmiro Miguel, que combateu em Xai-Xai, Moçambique, e cuja tatuagem, ele não esqueceu a data, foi feita no dia em que Portugal, no campeonato do mundo de futebol de 1966, venceu a Coreia por 5-3. E a entrevistadora usa frases oportunas como a propósito de uma palmeira e de uma cubata no braço de Belmiro Miguel, a necessidade de marcar aquele lugar no corpo, pelos medos que sentiu, pela força interior que tinha de encontrar para enfrentar aquela guerra. E escreve: “O cabo-enfermeiro Miguel é dono de uma imensa simpatia, sorriso e energia contagiante: um herói desconhecido que apenas se revela na sua tatuagem.”

Que se pode dizer mais? Uma terna viagem pelas tatuagens de guerra, um aviso claro que ainda se podem encontrar muitos mais testemunhos.


José Luís Correia de Azevedo
Francisco Melo
_____________

Nota do editor

Último post da série de 9 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26249: Notas de leitura (1753): A Guiné Que Conhecemos: as histórias sobre unidades do BCAV 2867 (3) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Anónimo disse...

Apreciei este artigo. Vi fazer algumas tatuagens, o tal uso das três agulhas com tinta da china e, claro, algumas infeções que elas provocaram. Por estes lados americanos, nas festas que os portugueses fazem no verão, é possível ver-se algumas tatuagens.
Abraço transatlântico.
José Câmara

Valdemar Silva disse...

Conta-se sobre tatuagens aquela da "AMOR DE MARIA", que entretanto o amor acabou e ficou a tatuagem.
Entretanto regressou da guerra e casou com outra Maria e que na Guiné já tinha na ideia de casar contigo, dizia.
Valdemar Queiroz