terça-feira, 7 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P48: Samba Culo I (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1968), actualmente coronel (DFA) na situação de reforma:

Samba Culo era outra base conhecida do PAIGC na zona da CART 1690. Não vem nos mapas existentes agora, talvez porque não haja lá população. Além dessa base, havia várias casas de mato nessa região, elementos de apoio importantes para dormida e descanso dos guerrilheiros.

Sobre a Operação Inquietar I: foi um fracasso, pois não conseguiu o objectivo, que era a destruição da base, tendo sido destruídas, no entanto, várias casas de mato; a história do ferido mencionado é que se tratou de um soldado da CCAÇ 1689, que levou um tiro no bolso onde tinha uma granada de fumos, provocando o rebentamento desta; tentando apagar o fogo que se ateou nas calças do camuflado com as mãos, ficou com estas totalmente queimadas (os ossos dos dedos ficaram à vista). Com a única coisa que eu tinha - manteiga das rações - tentei minorar-lhe o sofrimento. Gritava pela mãezinha e dizia:
- O meu alferes é tão bom!... Enfim, só visto. Sei que ficou bom, embora com cicatrizes, e vive no Porto.

Sucedeu-me aqui uma coisa que eu nunca pensei que fosse possível: na noite de 10 para 11 de Junho de 1967 consegui dormir debaixo da chuva torrencial de um tornado, numa clareira completamente a descoberto. O cansaço já era muito. A retirada está exemplificada na fotografia que também envio em anexo: é pessoal do meu grupo de combate, que teve de se apoiar uns aos outros, tal era o cansaço, e porque o PAIGC vinha atrás de nós...

4. Op Inquietar I. 9 a 15 de Junho de 1967.
“Situação particular:
"Há notícias de que o IN tem um acampamento em Canjambari, além de outros espalhados pela mata do Óio. O IN tem-se revelado durante operações realizadas e implantado engenhos explosivos nos itinerários.

"Missão:

Executar uma acção em força sobre o acampamento IN de Canjambari em coordenação com as forças do Agrupamento 1976.

"Força executante:

Dest A - CCAÇ 1685 ; 1 Gr Comb CART 1690; 1 PEL MIL/CMIL 3

Dest B - CCAÇ 1689; 1 Sec. (+) CMIL3

Dest C - CCAÇ 1501 - (1 Gr Comb); CCAÇ 1499 (1 Gr Comb); 2 Secções CMIL 2; 1 Secção CMIL 4

"Desenrolar da acção:

9JUN67

Os destacamentos A e B deslocaram-se em meios auto de Fá para Banjara. À alta da viaturas militares para os transportar houve necessidade de recorrer a requisição de viaturas civis, utilizadas apenas no troço Fá - Sare Banda. A concentração das forças em Banjara foi morosa, pois teve que se fazer por escalões. Iniciada pelas 07H00 terminou pelas l6H00.

10JUN67
Pelas 02H00 os destacamentos A e B iniciaram juntos o movimento para Casa Nova que atingiram pelas 06H00. Pelas 06H50 as NT abriram fogo sobre 2 elementos desarmados tendo abatido l e ferido outro num braço, quando tentavama fuga. Interrogado este revelou a existência de una tabanca nas proximidades, localizado depois em Banjara 2A4. Pelas 13H50 atacaram este objectivo que o IN abandonou precipitadamente. As NT destruíram 10 casas de mato, depois de terem passado revista e capturado uma longa, roupas e utensílios domésticos.

Pelas 12H30 as NT atingiram Gendo, utilizando o prisioneiro como guia, onde pararam para comer. Em exploração das declarações prestadas pelo guia os Cmdts dos Dest A e B que estavam juntos decidiram seguir a corta nato para Samba Culo, durante a noite, se até iniciarem a progressão não fossem detectadas. Pelas 13H00 ouviram um tiro isolado do lado NW, que lhes pareceu de reconhecimento. Pelas 14H40 um Gr IN estimado em 15 a 20 elementos flagelou durante cerca de 20 minutos com armas automáticas, PM, LGF, e Mort 60, a po sição onde as NT se encontravam, mas sem consequências.

O Comandante do Dest B deidiu então, como medida de decepção desviar-se ara Banjara 5A5 e daqui progrediu durante a noite em direcção a Samba Culo.

Pelas 17H30 as NT já se encontravam em andamento quando ouviram o rebentamento de duas granadas de mort. 60 no local onde estacionaram. Cerca das 18H00 as NT avistaram 2 elementos dos que seguiam em direcção às NT. Ao detectá-los, internaram-se no mato. Momentos depois ouviu-se o lançamento de 1 granada de Mort., tendo as NT avançado imediatamente sobre a posição onde se supunha estar instalada a arma.

Assaltado o acampamento foram capturadas 2 longas, destruídos numerosos artigos e utensílios domésticos, roupas, alimentos, catanas, bicicletas e destruídas 50 casas de mato, acampamento de Cambaju, situado em Banjara 3CL.

O Cmdt Dest B decidiu então atravessar a bolanha do R Cambaju, para passar a noite em Banjara 3EL e progredir depois sobre Samba Culo.

11JUN67

Pelas 05H00, debaixo de chuva torrencial as NT progrediram ao longo do R Cambaju, seguindo o Dest B à frente. Pelas 08H00 o Dest B capturou l elemento IN, que explorado levou as NT a destruir outro acampamento. Cerca das 12H00 o PCV entrou em contacto com o Dest B, que lhe solicitou que sobrevoasas o Dest C que necessitava da sua presença e voltasse depois. Em vão
o PCV tentou contactar de novo com o Dest A e B. No resto da manhã e durante a tarde de 11JUN, pelo que não foi possível reabastecê-los como estava previsto, apesar de todos os esforços de ligação do PCV, dos T-6 e HELI.

Finalmente pelas 17H50 conseguiu o PCV contactar com o Dest B, que pedia a evacuação de um ido, evacuado momentos depois por um heli no seu regresso a Bissau. Depois de feito o reabastecimento do Dest C verificou-se que os Dest A e B se encontravam por região do ponto 38 (Banjara 2D4) e dado o estado precário do pessoal, pediu autorização para retirar o que
lhes foi negado.

12JUN67

Pelas 08H00, como o PCV não aparecesse e os Dest A e B não tivessem sido reabastecidos os Cmdt dos Destacamentos decidiram progredir para SW, tendo atingido Banjara pelas 09H00 altura em que surgiu o PCV e lhes comunicou que de Bafatá saíra uma coluna com os reabastecimentos e com as instruções a cumprir durante o dia 12 e na noite de 12/13JUN. O Dest A recebeu ordem de montar emboscadas sobre o itinerário Banjara-Mantida e o Dest B re-
cebeu ordem de montar emboscada por região de Bantajã, mas que não resultaram.

13JUN67

Iniciado o regresso, os Dest A e B chegaram a Fá pelas 12H50.»

segunda-feira, 6 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P47: O Alferes Lopes, com os balantas (CCAÇ 3, Barro, região de Cacheu, 1968/69)

Texto de A. Marques Lopes, alferes miliciano na CART 1690 (Geba, Zona Leste), onde foi ferido (1967), e depois na CCAÇ 3 (Barro, Cacheu, 1968/69), hoje coronel (DFA) na reforma e dirigente da Associação 25 de Abril (delegação Norte):

Barro fica a cerca de 3 kms da fronteira com o Senegal. Na altura em que lá estive, com a CCAÇ 3, o comandante era o capitão Carlos Abreu (depois do 25 de Abril foi adjunto do General Spínola;  conheci os pais dele, que tinham um restaurante na Calçada do Combro, em Lisboa).

 Antes dele esteve o capitão Ferreira, atualmente um quadro do PSD em Torres Vedras (como o é também o meu ex-camarada de armas da CART 1690, e amigo, o ex-alferes Moreira, actualmente em Torres Vedras, e o advogado que levou à minha reintegração no Exército).

Esclareço que todos os que conheci na guerra, e sobreviveram, têm cada um a sua ideologia política. Mas a amizade, cimentada em situações difíceis, sobrepõe-se às ideologias e somos todos muito amigos e o que faz com que nos encontremos com frequência. Discutimos sobre o agora e não estamos de acordo em muita coisa, mas abraçamo-nos e cimentamos a amizade com o que passámos em conjunto, no passado.

A missão da CCAÇ 3 em Barro (em Binta, não sei) era evitar a passagem dos guerrilheiros do PAIGC e das populações por ele controladas do Senegal para a mata do Óio. A missão deles era, sobretudo, fazer abastecimentos em géneros e em material bélico para os combatentes daquela zona. A nossa era evitar que isso sucedesse. Essas infiltrações vinham, nomeadamente, das tabancas Sano, Sonako e Samine, situadas no Senegal.

Além das emboscadas que montávamos, muitas armadilhas foram colocadas naquela zona para obviar a isso (quando ouvíamos bum!, íamos a correr pois devia ser uma vaca que caíu na armadilha). Às vezes, penso que duas vezes no meu caso (em Sambuiá e Senquerem), participávamos em operações do COP 3 de Bigene, comandado pelo tenente-coronel, na altura, Correia de Campos (não, não é o actual ministro da saúde), que foi um herói de Guidage em 1973, muito maltratado depois do 25 de Abril, em minha opinião.

Um dia, creio que em Junho de 1968, o General Spínola foi a Barro e perguntou:

- Vocês já foram ao Senegal? - Eu, e os outros, que não sabíamos o que ele queria, dissemos que não (já tínhamos ido várias vezes a Sano, Sonako e Samine para roubar vacas e queimar casas). E ele disse:

- Então, têm de pensar em ir lá -. E lá fomos mais à vontade. O roubar vacas era uma preocupação, pois era a nossa subsistência. Muito raramente, havia um abastecimento feito pelos fuzileiros através do rio Cacheu. Às vezes, vinha uma Dornier trazer o correio e os chamados frescos. A maior parte das vezes comíamos arroz e rações de combate, ou, então, uma dobrada hidratada que saltava da panela assim que aquecia. Só tínhamos carne quando havia vacas.

Na altura, o General Spínola deu indicação para se dividir a companhia em pelotões de acordo com as etnias (o tirar partido das rivalidades entre eles). Como eu era o alferes mais antigo, o comandante da companhia perguntou-me o que é que eu queria:

- Quero os balantas, disse eu. 

E o meu grupo de combate foi quase todo de balantas (tinha um cabo fula, o Mamadu, e três furriéis brancos, além de mim). Ouviam a rádio do PAIGC mas demo-nos sempre bem. Porque eu sempre fiz por isso. Por exemplo: um dia, fui com um que estava doente através da mata até Bigene, porque em Barro não havia médico; emprestei dinheiro a todos, mas todos me pagaram quando me vim embora...

Foi sempre minha preocupação não matar população civil (o tal Alferes Gonçalves terá alguma coisa a dizer sobre isto... lembro-me de uma situação). Mas era difícil, pois a visão e a filosofia da vida deles era diferente. Um dia, por exemplo, foi apanhado no meio de um tiroteio um velho cego.

- Mata! - foi a reacção.

- Não, disse eu - Mas foi complicado.

Numa das tais operações do COP 3, não sei já qual, um guerrilheiro do PAIGC levou uma rajada no baixo ventre e ficou com os tomates pendurados. Disse para fazerem uma maca para o levarem. Fizeram a maca, mas não o quiseram levar:

- Alfero, deixa estar, vem jagudi [abutre] e come ele...

- Não!

Eu e um furriel pegámos na maca e começámos a atravessar uma bolanha com água pelo pescoço. A meio da bolanha, vieram dois e disseram:

-Alfero, a gente pega.

Chegámos à base de operações, onde estava o tenente-coronel Correia de Campos, um helicóptero e uma enfermeira pára-quedista, e, azar, o homem do PAIGC morreu.

Em frente destes, formei o grupo de combate e, porque estava furioso, chamei-lhes todos os nomes. O tenente-coronel Correia de Campos estava de boca aberta. É evidente que nós, os ocidentais, temos uma maneira de ver as coisas, a vida e a morte, de uma forma diferente. Assim como outras, por exemplo, a democracia e a política.

Numa outra situação, houve um deles que ficou com a garganta aberta por um estilhaço de RPG2. Sucedeu mais ou menos a mesma coisa. Mas, com visões diferentes da nossas, era gente muito fixe, amigos. Tenho saudades deles e pena de não me poder encontrar com eles. Vou mandando fotografias e vou contado mais alguma coisas.



A. Marques Lopes


domingo, 5 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P46: Em memória dos bravos de Geba... (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967)...

A CART 1690 esteve na Guiné de Abril de 1967 a Março de 1969. O que vos contei desta companhia adquiri-o através dos dados da "História da Unidade", de alguma pesquisa pessoal e de alguns elementos em meu poder. Mas não terminou este meu trabalho e pode ser que, no futuro, outros elementos que, então, venha a possuir, cheguem ao vosso conhecimento.

Procurei não individualizar críticas, mas, sim, dar exemplos do que se passou e do que aqueles homens passaram e sofreram, tal como outros da nossa geração passaram e sofreram, eu sei. Houve mais operações e acções (como podem depreender pelo "resumo da actividade operacional"), mas aquelas de que vos dei conhecimento foram as mais exemplares desse sacrifício (como dele são exemplo as baixas sofridas, mesmo nos escalões mais elevados).

Sempre que possível, fiz-me acompanhar de um atirador-fotógrafo, que atirou algumas fotografias sempre que pôde. E pôde poucas vezes, é claro, como podem calcular. Algumas das fotografias não corresponderão, provavelmente, às operações relatadas, porque já não as consigo situar, mas servem de ilustração do que era normal em todas elas [vd. também Banjara e Cantacunda].

Era uma zona muito propícia a azares, como têm visto. Também me calhou a mim (não era mais que os outros, claro, apesar de ter estado 24 horas no campo do inimigo... "teve de ser assim", como disse o Comandante Gazela). Um dia, quando ia no caminho de Geba para Banjara, fui ferido (e sortudo, mais uma vez), assim como o soldado Lamine Turé, do meu grupo de combate ; na mesma altura morreu o comandante da CART 1690, que quis ir comigo nessa viagem, o capitão Manuel C.C. Guimarães (tinha 29 anos, era filho de um sargento-ajudante e sobrinho da Beatriz Costa), e morreu o soldado Domingos Gomes, também do meu grupo de combate.

Levei o corpo do capitão, porque me pareceu que estava ainda vivo, e o Lamine, directamente para Bafatá... porque em Geba não havia médico, vejam lá! Não levei o do Domingos Gomes, porque ficou aos bocados, não deu tempo nem tive condições para os recuperar. De Bafatá fui evacuado para o HM241 [em Bissau], primeiro, e para o Hospital Militar Principal,[em Lisboa], passada uma semana.

Lá se foi, pois, o régulo de Geba... (gostei desta, amigo Luís Graça!). Não há relatório desta situação, obviamente, uma vez que não ficou quem o pudesse fazer.

Falar-vos-ei, depois, da CCAÇ 3 [Barro, 1968], onde fui colocado depois da minha estadia no HMP, embora dela não tenha senão a minha lembrança e as fotografias que um outro atirador-fotógrafo teve oportunidade de atirar.

Estive quase uma semana no Arquivo Histórico Militar, em Santa Apolónia, mas nada consegui de documentos sobre ela. Era uma companhia de naturais da Guiné e é possível que, com a independência, muita coisa se perdesse (ou fosse destruída). Mas ainda não explorei o Arquivo Geral do Exército, nem para a CCAÇ 3 nem para a CART 1690, e pode ser que, quando o fizer, consiga mais alguma coisa, quer de uma quer de outra.

Só consigo falar destas experiências convosco e com os que estiveram comigo, porque sei que as compreendem, pois as tiveram como eu tive. Não com a família, não com os amigos que por elas não passaram. Sinto que para estes é um peso ou algo irreal, alguns pensam, até, que estou a pintar. Não, para estes custa-me falar disto, tenho procurado não o fazer. É com tristeza que sinto em alguns um certo desinteresse.

No entanto, e por isso, talvez, sinto também que deve ser feito um esforço para fazer ver a todos o que foi a guerra colonial para mais de um milhão de jovens que por ela passaram, naqueles que deveriam ter sido os melhores anos das suas vidas, mas onde, ao invés, 8.290 morreram; onde, ao invés, milhares ficaram feridos, 30.000 destes com deficiências físicas; e onde, ao invés, 140.000 ficaram afectados psiquicamente (dados do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra). E os pais, e os filhos, e as mulheres deles, que também foram afectados.

Esta juventude perdida estupidamente devia merecer mais atenção e consideração. Felizmente, por alturas das comemorações da revolução dos cravos, a Associação 25 de Abril costuma ser convidada por algumas escolas e fala sobre estas coisas. Por exemplo: no passado dia 30 de Maio, estivemos com os alunos da Escola Secundária do Padrão da Légua, em Matosinhos, num debate sobre a guerra colonial.

Com muita estima e consideração.
A. Marques Lopes

Anexo- Resumo da Actividade Operacional da CART 1690

Operações (com nome de código) ...................49
Operações (com nome de código) com PCV (*)........12
Patrulhamentos..................................1561
Emboscadas........................................36
Outras acções....................................442
Total de acções realizadas......................2100

(*) Posto de Comando Volante

Guiné 63/74 - P45: Sinchã Jobel VII (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes:


O Alferes Fernandes, referido no relatório que se segue, foi, mais tarde, substituído pelo Alferes Carlos Alberto Trindade Peixoto, o Aznavour, por ser parecido com o Charles Aznavour, que morreu também, em 8 de Setembro de 1968 num ataque a Sare Banda (ver relatório).

O soldado Fragata (Manuel Fragata Francisco), um alentejano de Alpiarça, do meu grupo de combate, ficou nesta operação. Mas a história toda foi-me contada pelo Comandante Gazela [do PAIGC ]: ficou furado por vários estilhaços de uma roquetada e foi levado, em maca, pelos guerrilheiros desde a mata do Óio até a um hospital de Ziguinchor, na Casamansa, Senegal. Foi obra, hão-de concordar, e não foi fácil, como calculam. Aí, em Ziguinchor, foi tratado pelo portugês Dr. Pádua, um médico desertor, e que me confirmou isto quando, há alguns anos, o encontrei em Lisboa.

Depois desse tratamento foi repatriado pela Cruz Vermelha Internacional e foi para o Anexo do HMP, na Rua Artilharia Um, em Lisboa. Disse o Comandante Gazela que, com a simplicidade própria daqueles nossos soldados, o Fragata, ao apanhar o avião de regresso, disse: "Obrigado. Graças ao nosso partido – referia-se ao PAIGC -, "posso voltar para casa".

Infelizmente, o Fragata, passado pouco tempo após a saída do Anexo, morreu num desastre de motorizada na sua terra.

Depois desta operação, aquela zona foi considerada ZLIFA (Zona Livre de Intervenção da Força Aérea), isto é, só os T6 e os Fiat é que passaram a voar para lá para despejarem toneladas de bombas e napalm sobre a floresta que rodeava a clareira de Sinchã Jobel. Sem grande efeito prático, pois as bombas rebentavam no cimo das copas das árvores, deixando praticamente intactas as partes no solo. E a guerra continuou...

Em 1998, o Comandante Gazela confidenciou-me que, naquele dia 24 de Junho de 1967, eles não se aperceberam que eu tinha ficado na bolanha. Só o souberam dois dias depois, quando o Suleiman Baldé, chefe dos milícias de Sare Madina, lhes disse que me tinha emprestado uma bicicleta.

Este Suleiman Baldé, embora nas milícias, era do PAIGC e acabou por ser morto mais tarde pelas NT. Quando consegui sair de Sinchã Jobel, no dia 25, cheguei a essa tabanca de Sare Madina e foi, de facto, o Suleiman Baldé que me emprestou uma bicicleta. E foi de bicicleta que cheguei à sede da companhia, em Geba.

Fui chamado, depois, ao Comando do Agrupamento. Primeira preocupação dele: se eu tinha trazido a G3... e, não sei se a sério se a brincar, “há um problema, é que você passou 24 horas no campo do inimigo”… Não fiz boa cara, com certeza, pois o Comandante do Agrupamento teve de sorrir e disse-me: "Você, agora, tem aí história para contar num livro”. Não sei quando ele aparecerá, mas estou a trabalhar para isso.

Uma reflexão: na Guiné, e estas operações são prova disso, quem fez a maior parte da guerra dura e prolongada não foram as tropas especiais (sem pôr em causa o seu valor), mas sim o sacrificado Zé Soldado, isolado no mato, sem farras em Bissau, pau para toda a colher e, as mais das vezes, sacrificada carne para canhão.


“22. Op Invisível. 16 de Dezembro de 1967

“Situação particular:
Em face das acções realizadas sabe-se que o IN actua no regulado de Mansomine onde possui a base de Sinchã Jobel.

“Missão:
Executar uma batida nesta região tentando desalojar o IN.

“Força executante:

Dest A – CART 1742, a 2 Gr Comb.

DEst B - CART 1690 a 2 Gr Comb ref. c/ 1 PEL MIL 110 / C MIL 3


“Desenrolar da acção:
"Em 18 de Dezembro de 1967, às 22H00, as forças intervenientes saíram auto transportadas de Geba em direcção a Sare Gana, progredindo em seguida apeadamente em direcção a Ganhagina, que atingiram em 19 , às 04H00. Não se pôde efectuar a cambança da bolanha nessa altura, em virtude do guia não conhecer o caminho, para atingir a bolanha pelo que as forças intervenientes se instalaram, montando a devida segurança.

“Pelas 06H00 as forças intervenientes iniciaram novamente a progressão à bolanha, que atingiram pelas 07H50 hora a que se iniciou a cambança da mesma. Nesta altura foram avistados elementos IN em cima de árvores, pelo que se tomaram as devidas medidas de segurança para a travessia da mesma. A cambança terminou às 08H50, iniciando-se em seguida a progressão à base de patrulhas. Cerca das 11H50 fez-se um alto, devido novamente ao guia se ter perdido e precisar de se orientar. Foi destacada1 Secção reforçada para fazer a protecção ao guia, enquanto a restante força interveniente montava segurança no local de estacionamento.

“Às 12H45 iniciou-se novamente a progressão à base de patrulhas que foi atin- gida às 15H52. Nesta altura ouviram-se vozes de elementos IN, o que levou as forças intervenientes a supor que o IN se encontrava instalado naquele local. Devido a este facto a missão foi alterada e estabeleceu-se que o Dest B faria o assalto ao objectivo enquanto o Dest A faria a detenção do IN. Para o assalto ao acampamento IN o Dest B nomeou 1 Gr Comb, enquanto o 2º. Gr Comb faria a protecção ao 1.º e serviria de reserva.

“Estabeleceu-se também o ponto de reunião das forças intervenientes. Quando o 1º GR Comb progredia em direcção do acampamento IN, foi emboscado e surpreendido por um súbito desencadear de intenso e nutrido fogo IN. Tentou anular-se o mesmo reagindo as NT fortemente. Como o 1° Gr Comb fosse o que nessa altura se encontrasse mais submetido ao fogo IN, veio o2º Gr Comb em auxilio do primeiro, mas o mesmo foi atacado pela rectaguarda e, portanto, não pode proteger a retirada do primeiro.

“Começou também nessa altura o IN a fazer fogo com o Mort 82, com que abateu o alferes miliciano Fernandes. Verifiquei que nessa altura já o Dest B tinha as seguintes baixas: Alferes Miliciano Fernandes, 1º. Cabo Sousa da CART 1742 (que estava a fazer fogo com a ML MG-42), soldado metropolitano Fragata e um soldado milícia que não consegui identificar, além de vários feridos.

“Procurei trazer o alferes miliciano Fernandes para a rectaguarda, e quando o puxava pêlos pés, fui surpreendido por um grupo IN, que corriam em direcção aos furriéis milicianos Marcelo e Vaz e em minha direcção gritando que nos iriam apanhar vivos. Note-se que neste grupo IN avistei elementos brancos os quais usavam o cabelo bastante comprido (a cobrir as orelhas), facto também confirmado pelos já citados furriéis milicianos. Devido a tal, tive que abandonar o corpo do alferes Miliciano Fernandes e retirar. Quando retirava em direcção ao ponto de reunião, encontrei uma secção da CART 1742, e 4 soldados da minha Companhia que me informaram ser impossível entrar em contacto com a CART 1742, enviei 5 soldados desta última Companhia afim de averiguar tal impossibilidade, enquanto se montava a segurança com os restantes elementos. Logo após esses 5 Soldados regressarem, fui informado que a CART 1742 já retirara. Devido a tal e uma vez que o IN já nos estava a envolver, iniciei a retirada em direcção à bolanha.

“Durante a retirada fomos constantemente perseguidos pelo IN que disparava incessantemente rajadas de armas automáticas ligeiras e metralhadora pesada, além de encontrarmos diversos elementos IN já instalados ao longo do caminho que conduzia à bolanha e que fez com que este grupo tivesse que atravessar a bolanha num local diferente do que inicialmente estava previsto, e que batiam o caminho por onde nos deslocávamos.

“Quando atravessámos a bolanha o IN bateu a mesma com granadas de morteiro 82 (algumas das granadas estavam equipadas com espoleta de tempos), rajadas de armas pesadas, ligeiras e roquetadas, tendo o mesmo entrado na bolanha em nossa perseguição, e ainda após concluída a travessia depararam-se-nos alguns elementos IN instalados deste lado da bolanha. Conseguimos, no entanto, fazer a travessia da mesma e iniciarmos a progressão em direcção a Sare Ganá, que atingimos às 21H00.

Chegados a Sare Ganá, verifiquei que a CART 1742 já aí se encontrava e que faltavam 16 elementos da minha Companhia e 1 elemento da CART 1742. [estes militares foram recuperados no dia 21 de Dezembro de 1967, durante a Op Invisível II, realizada com esse objectivo] .

“Resultados obtidos:


Baixas sofridas pelo IN: Mortos confirmados 14; numerosas baixas prováveis.»

Guiné 63/74 - P44: A estória da cabra do mato e do prémio Governador Geral (David Guimarães)

Uma estória do David J. Guimarães, passada no Xitole, nos primeiros tempos da comissão da CART 2716 (1970/1972).

Um dia, novinhos ainda, piras, com as fardinhas novinhas em folha, aí vamos nós. Sai o 1º Grupo de Combate. Patrulha em volta do aquartelamento para os lados de Seco Braima, o que era normal: acampamento IN....

Era bem de manhã. E a certa altura, zás, ouve-se o matraquear de espingardas automáticas:

- Que coisa!... Oh diabo, estão a enrolar

Os morteiros fixos lá fazem fogo de barragem. Novamente os experientes homens de armas pesadas. E que eficientes! Como eles faziam aqueles morteiros dispar tão amiúde e certeiro... Cessar fogo, tudo silêncio à volta, fora os abutres que logo foram ver o que acontecia.

- Que aconteceu? E agora... Estará alguém ferido ? O que aconteceu ? O que vamos fazer ?

Nenhum deles disse nada... mas voltaram depressa. E nós nem percebíamos ainda porque que é que eles voltaram assim tão rapidamente... Bem, lá regressa, da patrulha, o 1º Grupo de Combate. Ofegantes, e agora dentro do aquartelamento esboçando sorrisos, todos pretos... Que coisa, sempre que havias tiros ficava-se todo preto!

- Que aconteceu ???

Lá vem a explicação: o grupo estava a instalar-se, para um tempinho em posição de emboscada. Uma cabra de mato passa em frente... Um soldado diz para o Alferes muito baixinho:
- Alferes, cabra de mato!
- Atira-lhe, responde o Alferes… Há rico tiro, pum, pum!!!

E não é que o IN estava lá emboscado, do outro lado da cabra ? Seriam poucos, mas ao sentirem-se detectados deram uns tiros e fugiram, pois que entretanto também começaram a cair bem perto as granadas do morteiro do aquartelamento....

- Manga de cu pequenino…
Olha que sorte, a santa cabra do mato! ... Foi ela, afinal, o nosso anjo da guarda. O Correia voltou com o seu grupo de combate inteiro e o soldado que detectou a cabra... herói. Mais tarde foi-lhe proposto e concedido o prémio Governador Geral. Todos achámos muito bem, veio à metrópole. Se não fora assim, nunca iria lá de férias, porque não tinha dinheiro para isso...

Ninguém soube se a cabra morreu ou não, mas os homens, depois de contados, estavam todos... E os abutres também voltaram ao aquartelamento e continuaram a comer o que restava da vaca morta nesse dia...

A guerra tinha disto também, e ainda bem... Como entendê-la ? Só um combatente... Este era o nosso tempo de recreio de guerra dentro da guerra.

David J. Guimarães

sábado, 4 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P43: Antologia (1): O que era ser periquito... (Luís Graça)

Há páginas na Net que correm o risco de desaparecer... Miseravelmente. Como aconteceu com as páginas no Portal Terrávista. O maior portal, em língua portuguesa, da segunda década de 1990.

Algumas das páginas que encontramos na net têm um maior ou menor interesse documental para a história da guerra colonial na África Portuguesa. Por exemplo, mostram, com maior ou menor propriedade, rigor e talento, o que era a vida de um tuga na Guiné. Por isso merecem ser objecto de antologia.

Hoje seleciono aqui a página de um ranger, que esteve na Guiné entre 1971 e 1974. É um ranger convicto, endoutrinado, disciplinado, "como mandava a puta da sapatilha". A guerra acabou, não serei eu seguramente a alimentar as idiotas rivalidades que levaram a troca de insultos e até confrontos físicos, em Bissau, entre a tropa de elite (paras, comandos, fuzileiros, operações especiais) e o resto: a tropa-macaca (como a CCAÇ 12 ou a CCAÇ 3) ou os cassanhos (como a CART 1690, do Alferes Lopes).1.

Comneça por escrever o nosso ranger:

"A viagem durou aproximadamente cinco dias a bordo do navio Niassa e decorreu sem incidentes, com chegada ao largo do porto de Bissau ao anoitecer do dia 24 de Dezembro de 1971.

"Ali aguardámos, fizemos a nossa ceia da noite de Natal e desembarcámos nas primeiras horas da manhã do dia 25 de Dezembro. A excitação do jantar, a ansiedade do desembarque, de conhecer aquela terra tantas vezes falada (com apreensão!), aquelas gentes, não deixou que alguém pregasse olho. Bebemos, conversámos, cantámos até ao amanhecer cinzento, tórrido. Cansados, desembarcámos quase em silêncio".

2. "Uma vez desembarcados, fomos transportados para o aquartelamento do Cumeré que dista da cidade de Bissau uns 40 km por estrada e 12 km em linha recta, e onde permanecemos cerca de vinte dias.

"Este período foi destinado à habituação física, ao contacto com os naturais e, principalmente, ao primeiro encontro com a operacionalidade versus realidade da guerra. Daqui fomos transferidos para as localidades do interior do território (denominado mato).

"Pelo Rio Geba acima, em lanchas de desembarque da Marinha [LDG], fomos levados até ao Xime onde desembarcamos já ao fim da tarde".

3. E a viagem continua, pelas estradas da zona leste (Xime, Banbadinca, Galomaro, Saltinho):

"Ali, no Xime, esperava-nos um esquadrão de cavalaria com os blindados chaimite que nos iriam escoltar até á próxima paragem, Bambadinca.

"Já noite, pernoitámos e ganhámos forças para o dia seguinte que, segundo os velhos (aqueles que já lá estavam, na Guiné), seria bem mais difícil pois o risco de flagelação à distância ou emboscadas era muito grande, ou quase certo. Iríamos ter de atravessar o Rio Pulom onde fatidicamente algumas vidas já se tinham perdido. É um local de selva densa, temível.

"Dirigimo-nos então para Galomaro onde deixámos uma Companhia (CCS) e, de seguida, para o Saltinho sempre acompanhados de perto pelos caças FIAT e bombardeiros T6 da Força Aérea. A tensão era muita, uma grande prova de nervos, mas, felizmente, não chegámos a ser presenteados pela hospitalidade do PAIGC

"Chegámos finalmente ao local onde eu iria passar a maior parte do meu tempo de comissão".

4. No Saltinho, "fomos recebidos pelos velhos como periquitos, com muita alegria e carinho. Estavam ansiosos pelo regresso às suas casas, e nós quase sentíamos inveja disso. Finalmente foram e assim ficámos entregues a nós próprios num misto de orgulho e saudade.

"Começámos então o nosso trabalho concentrados num objectivo: Havemos de fazer um grande ronco, estar cá para receber os nossos periquitos e regressar.

"Para isso passamos de imediato à acção que não se fez tardar,com algumas escaramuças com o PAIGC de Amilcar Cabral e de Nino Vieira.

"A vida ali não sofria grandes alterações para além das constantes incursões pelo mato, as operações de maior ou menor envergadura, as emboscadas, as flagelações nocturnas, os apoios a outras unidades em perigo, o bater à zona, a preparação no terreno de mais uma coluna de reabastecimento, o pedir apoio aéreo ou artilharia, o montar e desmontar de minas e armadilhas, fazer fornilhos, esticar arame farpado, abrir e restaurar abrigos, as noites sem dormir... os ataques de abelhas, os mosquitos e outros mais, o calor abrasador, a micose insustentável,... o whisky, a cerveja... e muita saudade!

"O aquartelamento do Saltinho era formado por abrigos em betão, capazes de resistir ao temível foguetão 122 mm,de origem soviética, cuja granada ao explodir produz cerca de 15.000 fragmentos mortais.

"Situava-se junto á fronteira com a Guiné-Conacri, na margem do Rio Corubal e constituía a defesa da ponte sobre o mesmo rio. Na outra margem tínhamos um destacamento. Mais para lá era terra de ninguém. Havia por perto, a Norte (a uns 30 km), uma das principais bases de ataque do PAIGC, a base de Kambera.

5. Prossegue o nosso ranger:

"A Sul, sensivelmente à mesma distância, a não menos importante base de Kandiafara que muitos e graves problemas causou aos nossos camaradas de Guileje e Gadamael Porto. A Sul do Saltinho, contavamos com o apoio dos obuses da eficaz artilharia do aquartelamento da Aldeia Formosa [hoje, Quebo].

"Água não faltava todo o ano (embora imprópria para consumo), de um rio que variava bruscamente o seu caudal conforme a época, seca ou das chuvas.

"Entretanto formei o meu grupo (GE) de nativos, por mim instruído e preparado para a execução de qualquer operação, reconhecimento ou acção irregular.

"Era um grupo constituído por naturais da etnia Fula e Futa Fula, homogéneo, com excelentes capacidades de combate, resistência física e grande camaradagem.

"Passámos juntos por situações de muito perigo como, por exemplo, em operações para além da nossa fronteira onde se tornava difícil qualquer apoio que não fosse o aéreo (quando possível !). Tomamos parte em grandes operações um pouco por toda a região de Bafatá, Galomaro, Bambadinca e Aldeia Formosa.

"Estávamos equipados com o tipo de armamento utilizado pelos guerrilheiros do PAIGC, desde a HK-47 (Kalashnikov) até ao temível lança granadas foguete RPG-7. Não havia dúvidas de que estas armas de origem soviética eram mais eficazes, tendo em conta as características da guerra que se travava (guerrilha), as acções a levar a cabo no terreno, assim como pela facilidade de manejo. No entanto o objectivo da utilização deste equipamento prendia-se sobretudo com a intenção de confundir o inimigo e obter daí as vantagens do efeito surpresa.

"Lamento sinceramente não saber qual o foi destino destes homens após a independência da Guiné. Pressuponho apenas que não terá sido o mais feliz, desgraçadamente.

"Terminado o tempo que a própria conjuntura determinou para a minha comissão (teoricamente 18 meses mas na prática dois anos e 94 dias), regressei à Metrópole novamente embarcado no navio Niassa cuja tripulação, pelo carinho e atenção que nos dispensaram, merece todo o apreço.

"A reintegração para mim não foi difícil. Com traumas da guerra não fiquei, caso contrário não me teria servido para nada a forte acção psicológica a que fui submetido durante a instrução do meu curso de Operações Especiais. Lá, no CIOE, formam-se Rangers, de Firme Vontade e Indómito Valor".

sexta-feira, 3 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P42: Convívios: CART 1690 (Geba), CART 2716 (Xitole), CCAÇ 12 (Bambadinca), CART 3494 (Xime), BCAÇ 2852 (Bambadinca)

3 de Junho de 2005:

Caros amigos

Amanhã, sábado, vou-me encontrar em Lisboa com os alferes da CART 1690 (com os que ficaram vivos).

No dia 18 de Junho haverá um encontro (dos ainda sobreviventes) perto de Sever do Vouga.

Estes encontros têm sido promovidos pelos sempre amigos e gloriosos furriéis. Quem quiser saber mais histórias da CART 1690 apareça. Eu lá estarei.

Um abraço. A. Marques Lopes


1 de Junho de 2005:

Luís Graça:

Estive no sábado passado a minha reunião e almoço com os ex-militares da minha CART 2716 [Xitole]. Informei-me correctamente sobre o nome do Capitão do Xime que Comandava a CART 2715 que seguiu com o BART 2917. Era o Capitão Amaro dos Santos. Foi evacuado após essa célebre operação em que tu foste testemunha tomando parte [Op Abencerragem Candente, 25-26 de Novembro de 1970, na região do Xime].

Estou a recolher mais material e histórias para poder enviar. Oportunamente terás noticias (...).

David J. Guimarães

30 de Maio de 2005:

Carvalhido da Ponte:

Antes demais apresento-me. Sou o Castro, de Vila Fria, Viana do Castelo, como deves estar lembrado. Apanhei o teu endereço electrónico num artigo escrito por ti no jornal Aurora do Lima ( "O 'Santa Luzia dos meus amores...' num djemberem de Cacheu" ).

Também é para informar que apareceu um djubi, de seu nome J. C. Mussá Biai, natural do Xime, Guiné, mas a viver em Lisboa, formado em engenharia florestal. Diz ele que queria encontrar o Carvalhido da Ponte, o professor de ensino primário que ele teve no Xime em 1972 e que nunca o esqueceu. Mandei o teu endereço para o caso de poder contactar-te.

Anexei uma hiperligação onde está o texto dele e muitas estórias da Guiné e para que aceites o convite para contares as tuas experiências vividas na Guiné enviando para o Luís Graça .

Espero encontrar-te no convívio em Pataias, a 11 de Junho de 2005, com concentração na Batalha, pelas 10 horas. Cumprimentos. Sousa de Castro .

26 de Maio de 2005:

(...) Fui eu que o meti [,ao Manuel Castro,] nestas andanças, trabalhamos ambos na mesma empresa, a ENVC (Estaleiros Navais de Viana do Castelo), e o facto é que ele já conseguiu encontrar alguns colegas da CART 6254 a que ele pertenceu ["Os presentes", que estiveram no Olossato, e cuja missão na Guiné vai de Março de 1973 a Agosto de 1974].

Eu ando há muito tempo nisto, tenho feito alguns apelos pela NET e ainda não apareceu ninguém da minha CART 3494, "Os Fantasmas do Xime" (Dezembro de 1971/Abril de 1974).

Já agora digo-vos que irei participar no XX Convívio da CART 3494 a realizar em Pataias, Marinha Grande, no dia 11 de Junho de 2005.

Cumprimentos, Sousa Castro.

25 de Maio de 2005:

O pessoal que esteve em Bambadinca, no leste da Guiné, entre 1968 e 1971, vai encontrar-se mais uma vez, para o seu convívio anual. Este ano será na Ria Formosa, com local de encpontro em Faro, no próximo dia 11 de Junho. A festa está a ser organizada pelo José Manuel Amaral Soares (Largo Vieira Caldas, 6A, 3º Dtº, 1685-585 Caneças), que pertencia â CCS do BCAÇ 2852 (Bambadinca).

Há uma lista de endereços que vai sendo actualizada todos os anos. Eu próprio (Luís Graça ou, como era conhecido, Henriques) e o Humberto Reis (ambos furriéis milicianos da CCAÇ 12) podemos tomar nota de novos contactos.

É partir desta lista que têm sido convocados os antigos camaradas de armas que estiveram, connosco, naquela região da Guiné, a saber (entre outros):

(i) Comando e Companhia de Comando e Serviços do BCAÇ 2852 (que esteve sedeado em Bambabinca desde finais de 1968 até Julho de 1970, altura em que foi substituído pelo BART 2917);

(ii) Forças de intervenção: CCAÇ 12 / CCAÇ 2590 (Bambadinca); Pelotão de Caçadores Nativos 52 (Missirá) (a partir de Junho de 1970, Pel Caç Nat 53, aquartelado em Fá-Mandinga);

(iii) Subunidades em quadrícula: CART 2530 (Xime), CART 2339 (Mansambo) e CART 2413 (Xitole), substituídas em Junho de 1970 pelas CART 2715, 2714 e 2716, respectivamente (estas três companhias pertenciam ao BART 2917).

Guiné 63/74 - P41: A região do Xitole, por onde andou o Nino... (David Guimarães)

Texto do David J. Guimarães:

Tocou-me a vez... Creio que vale a pena no momento consultar o Mapa do Sector L1 / Zona Leste - Xitole.

A Zona de intervenção do Xitole não era muito grande em área - bem, mas era uma zona bem quentinha, sim. A norte era limitada pela ponte do Rio Jacarajá onde começava a Zona de Intervenção de Mansambo; zona de Salifo, a leste do R Jacarajá. Salifo tinha sido uma tabanca importante que, quando fizemos um dia uma operação de assalto para a destruir, eles já tinham feito o favor de se retirar de lá... Ufa, que alívio!...

Continuando a nossa Zona de Intervenção tínhamos depois toda a outra zona até ao Rio Corubal, Galo Corubal, Satecuta, até às matas do Fiofioli, Seco Braima. Seguindo a estrada na direcção do Saltinho íamos até ao limite deste mapa, onde havia uma tabanca (Sincha Mádio, deve ser assim) que era depois de Cambessé. Tabanca importante que estava confinada a outra e onde existia o Cussilinta - a parte mais bela, ainda hoje, [do Rio Corubal],parecia uma colónia balnear....

Todas essa s zonas eram diariamente pratrulhadas. Um grupo de combate seguia para os lados periféricos do aquartelamento, para os lados de Seco Braima. Outro grupo seguia sempre para as tabancas (em missão psico). Um grupo instalava-se na Ponte dos Fulas onde residia e era rendido ao fim do mês... Vida monótona, rotinas e sempre armados até aos dentes...

Assinalarei aqui um facto importante e que sempre nos incomodou: a margem esquerda do Rio Corubal, na nossa zona, que era uma área de intervenção no COM-CHEFE [Comando-Chefe]. Era daí que eles [o IN] apontavam os canhões sem recuo e, enfim, tentavam fazer tiro ao alvo para o nosso quartel....

Pelas sete, oito horas, da noite aí estavam eles: Nino e seus canhões, assim dizíamos nós... Digo Nino e ele mesmo confirma isso, como o Luís Cabral (Este na Crónica da Libertação). O Nino, ele mesmo em pessoa, falou, antes de voltar recentemente para a Guiné. Ele morava aqui, em Vila Nova de Gaia... Um dia o ex-comandante da CART 2716 [, a minha companhia], passou por ele e disse:

- Olha o Comandante!... Bem lá falaram. O Nino confirmou ser aquela a zona [a região do Xitole] onde ele andou, sim, no tempo da Guerra Colonial....

Mas a grande chatice eram as colunas e o reabastecimento:

- Ora amanhã há coluna... Porra, um dia no mato!... Mas tem que ser!...

Três grupos de combate instalados desde a Ponte dos Fulas até Rio Jacarajá. E lá começava a passar o comboio de viaturas: uma Daimler, depois o resto dos camiões, enquadrados por viaturas militares. Pior:

- Quem vai a picar hoje? - E lá ia o 1º grupo, depois o 2º e, outra vezes, o 3º ou o 4º. Como eu residia no Destacamento da Ponte dos Fulas, bem, eram os outros...

Tocou-me a mim num belo dia. Eu é que ia a comandar o grupo (o Alferes estava de férias). E lá já bem perto de Jacarajá:

- Mina, mina, porra!... E agora!?

Tocou-me a mim: afinal eu é que era o artista. Em Tancos tinham-me ensinado a trabalhar com aquilo: "manga de cu piquinino", protecção feita, suores frios ao sol quente... Bem, lá consegui operar... Tínhamos que comer... Lá ficou o buraco feito e do chão extraí isso que envio em fotografia... Um Mina PMD-6, espoleta MUV, duas barras de trotil de 4 kg, mais aqueles dois calcinhos do mesmo material a 200 gr cada cada um, sendo que dentro da mina lá estavam os 400 gr habituais da carga base onde actuaria o detonador depois de accionada a espoleta...

- Ufa, que merda!... Já está! - e daqui a pouco lá vinha a coluna, o barulho daqueles motores e, à frente, a Daimler do [Alferes]Vacas de Carvalho....

Prontos, e lá ficamos o dia inteiro até que lá a coluna volta a passar, mas de regresso a Bambadinca. Nós, por nossa vez, lá regressamos ao quartel no Xitole.

Mais tarde lá me deram os 300 escudos (prémio por levantamento de material explosivo):

- Pronto, mais um dinheirinho para beber umas bazucas [cervejas] ...

Foi um dia de rotina, um pouco diferente - uma mina sempre é uma mina.....

Envio uma outra fotografia da época: é do abrigo onde estavam instalados a maioria dos furriéis, junto à casa dos sargentos... Era ai que dormíamos. Era um abrigo amplo, voltado para o aeródromo. Lá dispunha do explosor que faria rebentar, caso necessário, um fornilho que eu tinha armado do outro lado do arama farpado, não viessem eles lembrarem-se de virem por aí... Nunca foi preciso, ainda bem....

A outra é a fotografia da mina com as cargas de trotil ao lado... Ainda bem que a Daimler não lhe passou por cima, era menos uma que ficava...

PS - A Daimler é um carro muito lindinho, de rodas maciças... Só tinha um defeito: era o depósito de combustível estar exactamente por debaixo da viatura ... Percebe-se que isso fosse um rebenta-minas?

David J. Guimarães

Nota de L.G.- O Guimarães era especialista em... minas e armadilhas. E fez muito bem o seu trabalho. A foto que nos mandou da mina PDM-6 ainda me causa calafrios... É que voei, numa GMC, com o meu grupo de combate [na altura, o 4º Gr Com da CCAÇ 12], quando accionámos uma mina deste tipo... Um dia deste falaremos dessa trágica amanhã, às portas do reordenamento de Nhabijões...

Estas duas fotos do Guimarães irão ser inseridas no respectivo álbum.

Guiné 63/74 - P40: Sinchã Jobel IV, V e VI (Marques Lopes)

Três textos de A. Marques Lopes (mandou uma série de fotos da CART 1690, aquartelada em Geba, que ficarão disponíveis no nosso álbum):


1. Foi a operação que se fez a seguir àquela em que entraram dois grupos de comandos, e que ficou em águas de bacalhau... Esta foi feita com cassanhos, só, e deu o que vão ler.

A operação foi comandada do PCV (Posto de Controlo Volante) pelo Comandante do Agrupamento. O Agostinho Francisco da Câmara (e não Camará), morto na operação, era açoriano e do meu grupo de combate; o Armindo Correia Paulino, aqui referido, também era do meu grupo de combate, o Bigodes, como lhe chamávamos, um minhoto que foi, mais tarde, aprisionado pelo PAIGC em Cantacunda e que acabou por morrer no cativeiro, em Conakry.

Um esclarecimento: os nomes das operações nesta zona começavam todos por "I" ou por "J".

"17. Op Imparável. 15 de 16 de Outubro de 1967:

"Situação particular:

"O IN tem-se revelado no regulado de Mansomine não só durante as operações, como em ataques a tabancas e aquartelamentos. Possui um acampamento na região de Sinchã Jobel que lhe serve de base às suas acções.

"Missão:

-Golpe de mão ao acampamento de Sinchã Jobel seguido de uma batida na região.

"Força executante:

Dest A - C CAV 1748.

Dest B -CCAÇ.1685 a 2 Gr Comb ref. c/ 1 PEL MIL/C MIL 3.

Dest C -CART 1690 a 2 Gr Comb ref. c/ 1 PEL MIL/C MIL 3.

"Desenrolar da acção:

Em 15, às 4H30, o Dest C saiu auto-transportado de Geba, em direcção a Sare Madina, progredindo apeadamente em direcção a Sucuta que atingiu às 08H45. Instalou-se no orla junto à bolanha, tendo mantido essas posições até 16 de Outubro, às 10H30.
"Durante a noite de 15 para 16 fomos flagelados com 4 tiros de morteiro e rajadas de armas ligeiras automáticas. Cerca das 03H00 foi avistado um Helicóptero IN que sobrevoou o acampamento IN.

"Quando o Dest A iniciou a travessia da bolanha, a 16, às 9H00, o mesmo foi atacado por tiros de morteiro e rajadas de armas ligeiras automáticas, tendo o Dest B e C feito fogo de morteiro às minhas ordens, sobre o IN instalado na margem oposta. Este Dest não conseguiu atravessar a bolanha, o mesmo sucedendo ao Dest B embora, quando este último tentou a travessia, já tivesse apoio aéreo (ATAP). O PCV ordenou então ao Dest C para nomear uma secção e tentar a travessia da bolanha às 11H30. Esta secção atravessou a bolanha sob fogo IN e com apoio aéreo dos T-6 chegando ao outro lado da bolanha às 12H45.

"As 15H00 os Dest A e C tinham atravessado a bolanha e preparavam-se para progredir em direcção ao acampamento IN. Antes de iniciarem a progressão teve de se rebentar uma armadilha A/P, constituída por uma granada do LGF. Os dois Dest A e C atingiram a clareira de Sinchã Jobel pelas l6H40, onde se estabeleceu que o Dest C reforçado por um Gr Comb do Dest A iria fazer o ataque ao acampamento IN.

"Pelas 17H00, caiu-se numa emboscada montada pelo IN. Tentou-se anular a emboscada, que seria conseguido senão fosse a hora tardia, a incapacidade de duas armas pesadas (LGF e MORT 60) e algumas G-3 encravadas do Dest C. Outra razão talvez decisiva e que fez com que as NT não calassem a emboscada foi o facto de o Dest A não ter envolvido o IN devido ao fogo cerrado do morteiro 60 e 82 do IN.

"Além destas armas, o IN possuía armas automáticas individuais, 3 MP [metralhadoras pesadas] e alguns lança rocketes ou LGF (Não sei precisar). Uma das MP foi calada pelo nosso LGF [bazuca]. Vários contras para nos surgiram durante a emboscada: O nosso bazuqueiro (passe o termo) Soldado Agostinho Camará que estava a fazer um fogo certeiro, foi atingido mortalmente (note-se que este LGF era o único que estava a fazer fogo). Foi o Soldado enfermeiro Alípio Parreira que se encontrava próximo e que estava a fazer fogo com a ML metralhadora ligeira] MG-42 (para a qual o referido soldado se oferecera como voluntário) pegar no LGF e continuar a fazer fogo com ele. Nesta altura tive que pegar na MG-42 e fazer fogo com ela. Logo a seguir tive que me dirigir à rectaguarda a fim de falar com o PCV que me chamava.

"Quando regressei à frente verifiquei que o já referido soldado enfermeiro recomeçara a fazer fogo com a ML MG-42 e que passado mais alguns momentos ficou impossibilitado de fazer fogo devido a uma avaria, ao mesmo tempo que o soldado enfermeiro e o municiador eram feridos por estilhaços. Mesmo assim este soldado enfermeiro veio para a rectaguarda, onde agarrou no morteiro 60 e continuou a fazer fogo com o mesmo.

"Foi-me impossível continuar o ataque ao acampamento IN, em virtude de se terem esgotado as munições que levava, as armas pesadas não funcionarem, a noite já ter caído por completo e desconhecermos o terreno. Deve notar-se, contudo, que nesta altura já o IN dava sinais de fraqueza e, segundo alguns soldados nativos que se encontram juntamente comigo na frente, estarem a gritar que tinham que fugir.

"Para retirar, pedi auxilio ao Dest A que foi à frente, permitindo que o Dest C retirasse para fora da zona de morte, donde protegeu a retirada do Dest A. Já fora da zona de morte, verifiquei que não se tinham trazido os mortos, pelo que enviei novamente à zona de morte alguns soldados para os trazerem. Tal não foi possível, visto estarem armas automáticas do IN apontadas para o local onde se encontravam os corpos. Ainda foram abatidos a tiro de G-3 dois elementos IN, um destes pretendia agarrar o Soldado Armindo Correia Paulino, quando este estava a arrastar um dos nossos mortos para a rectaguarda e que se salvou devido ao aviso oportuno do soldado Saliu Baldé e que permitiu ao primeiro soldado citado abater esse elemento IN, ao mesmo tempo que o soldado citado abatia um segundo elemento IN, que se encontrava armado e estava a proteger o outro elemento IN abatido.

"Seguidamente efectuou-se a retirada (e friso mais uma vez que esta teve de ser feita devido ao Dest C ter esgotado as munições e as armas avariadas), tendo o IN vindo em nossa perseguição até à bolanha onde os últimos elementos a atravessá-la (o Dest C) foram alvejados por rajadas de armas automáticas.

"Após a travessia da bolanha verifiquei que o Dest B já não se encontrava em Sucuta. Os Dest A e C atingiram Sare Madina pelas 02H00 de 17 [de Outubro de 1967], onde aguardaram viaturas do Dest C que os transportaram para Geba, tendo uma viatura do Dest C seguido para Bafatá com os feridos mais graves.

"Resultados obtidos:

-Baixas sofridas pelo IN: - Mortos confirmados 8 e baixas prováveis numerosas.

-Foi destruída uma armadilha A/P e destruída ou danificada uma MP.

"Comentários:

"O plano de acção inicial não foi cumprido. Se tivesse sido, o acampamento IN teria sido destruído porque o Dest A conseguiu chegar a 50 metros do acampamento IN sem ser detectado.

"Nota:

"Em 27 de Agosto de 1967 foi recebida uma noticia C2 em que referia que o IN tinha sofrido 54 mortos e muitos feridos ainda não controlados.

"As NT tiveram tarefa bastante penosa no regresso devido a terem que transportar 12 feridos graves e 22 ligeiros por as evacuações não poderem ser feitas de Helicóptero durante a noite.»


2. Poder-se-ia pensar que, agora, com a 5ª Companhia de Comandos é que vai ser!... Mas não foi. Este é o relatório da CART 1690, o dos comandos não o conheço e não sei o que disse. Fizeram a batida e não viram nada, com as coordenadas tão bem definidas... o que me parece é que não era ali exactamente. Além de que o IN não terá visto vantagem em confrontar-se com os comandos, também admito. Mas veja-se como a 5ª Companhia de Comandos se põe a andar, deixando para trás dois grupos de combate de cassanhos... A operação foi comandada do PCV pelo Comandante do Agrupamento.


"18. Op Insistir. 27 de Outiubro de 1967

"Situação particular:

"Desde Abril de 1967 que o IN se tem revelado nos regulados de Mansomine e Joladu. Durante a Op Imparável foi finalmente localizado de forma segura o acampamento de Sinchã Jobel que se situa em: 1455 1210 E9-76 [são as coordenadas topográficas].

"Missão:

- Ataca e destrói o acampamento IN de Sinchã Jobel.

"Força executante:


Dest A - 5ª Companhia de Comandos

DEst B - CART l690 ( a2 Gr Comb) + 1 PEL MIL 109/C MIL 3

"Desenrolar da acção:

"Em D pelas 05H00 o Dest B saiu autotransportado de Geba em direcção a Sare Madina, progredindo depois até em direcção a Sucuta que atingiu às 08H15. Instalou-se na orla da bolanha não conseguindo qualquer comunicação através do rádio com Geba ou Baftá para informar a nossa posição. Cerca das 09H45 foi feito fogo de morteiro de amas ligeiras afim de atrair a atenção do IN naquela direcção.

"Após o bombardeamento da FA [Força Aérea] e por ordem do PCV, um grupo de combate iniciou a travessia da bolanha onde permaneceu até que o Dest A fez a batida ao objectivo regressando em direcção ao Dest B.

"Gorando-se o encontro do Dest A com o Dest B, por ordem do PCV o Dest B retirou da bolanha vindo juntar-se ao Dest A que já regressava a Sare Madina.

"Em Sare Madina, o Dest B seguiu em viaturas para Geba onde chegou cerca das l6H30.»


3. Esta nunca entendi. Como continuo a não entender qual foi o "sucesso” da Op Insistir. Foi comandada do PCV.

«19. Op Instar. 28 de Outubro de 1967.

"Situação particular: a do planeamento operacional da Op Insistir.

"Missão: explorar o sucesso da Op Insistir; bater a região de Sinchã Jobel

"Força executante:

Dest A - CCAÇ 1790
Dest B - CART. 1690 (a 2 Gr Comb ref. c/PEL MIL 109/C MIL 3

"Desenrolar da acção:

"Pelas 06H15 iniciou a progressão para Sucuta que atingiu cerca das 08H00. Após instalado o pessoal junto à bolanha, um Gr Comb por ordem do PCV cambou a bolanha instalando-se do outro lado, onde emboscado aguardou a chegada do Dest A. Na passagem da bolanha, após a junção dos 2 Dest. em Sucuta fez-se a progressão para Sare Madina onde o Dest B logo seguiu
de viaturas para Geba aonde chegou cerca das 16H00.»

Guiné 63/74 - P39: Sinchã Jobel II e III (Marques Lopes)

Mais dois textos de A. Marques Lopes, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba), actualmente coronel (DFA) na situação de reforma:

1. Depois da minha "descoberta involuntária", mas sem surpresa para alguns, iniciaram-se algumas operações mais elaboradas com o objectivo da destruição da base de Sinchã Jobel.

Era, como vos disse, uma antiga tabanca, já destruída, sendo agora uma clareira de cerca de 2.000m2, cercada por uma mata densa, tendo a sul o Rio Gambiel, com água pelo peito e uma "ponte" submersa, isto é, dois troncos de palmeira debaixo de água, (quando fui para lá o meu guia indicou-ma, quando regressei, sem guia, tive de a descobrir); a Oeste e a Este tem várias bolanhas, uma delas mesmo perto da clareira (a tal onde durante a noite toda a minha vida me passou pelo pensamento); a Norte, até Banjara, tem uma floresta muito densa e dezenas de poilões (há lá, na Guiné-Bissau de agora, uma serração).

Nas margens do rio Gambiel e das bolanhas os guerrilheiros tinham sentinelas; pelo lado de Banjara, a floresta impenetrável tornava o acesso impossível. É claro que a base de guerrilha não estava na clareira de Sinchã Jobel (nem antes dela, pois não a encontrei quando ia para lá) mas em algum local deste contexto que vos descrevo, para Norte, muito bem situada e com óptimas condições de defesa.

Nesta fase, certamente ainda em início de implantação, é natural que os guerrilheiros só se manifestassem quando lhes parecesse conveniente (foi o que lhes pareceu quando viram trinta mecos a ir para lá...), por isso não se manifestaram nesta Operação Jigajoga 2. Além de que o seu principal objectivo era montar minas e emboscadas no itinerário Geba-Banjara e atacar os destacamentos. Mais tarde, quando fortalecidos e bem guarnecidos, creio que alargaram a sua acção até Mansabá e para o Xime e Xitole. Este enquadramento da base de Sinchã Jobel expliquei-o ao comandante do Agrupamento 1980, em Bafatá, mas, pelo que vão ver nos "próximos capítulos", não valeu de muito.


"15. OP Jigajoga 2. 31 de Agosto de 1967.

"Situação particular:

O IN tem-se revelado a sul de BBanjara, com mais intensidade nos regulados de Mansomine e Joladu. Em Sinchã Jobel possui uma base forte, que serve de apoio às suas acções.

"Missão:

-Assegura a ocupação do Sector, tendo em atenção os regulados da faixa Oeste e as linhas de infiltração que conduzem ao interior.

-Detecta, vigia ou captura elementos ou grupos suspeitos de subversão que se hajam infiltrado ou constituído no sector, impedindo que a subversão alastre.

-Captura ou aniquila os rebeldes que se venham a revelar, destruindo as suas instalações ou meios de vida e restabelece a autoridade e a ordem nas regiões afectadas.

-Armadilha os itinerários utilizados pelo IN.

"Força executante:

DEST A - CART 1690 (2 Gr Comb); CCAÇ 1685 (1 Gr Comb); CCVA 1693 (1 Gr Comb); 1 PEL SAP / CCS 1877 (2 secções); 1 PEL 109/CAÇ MIL 3

DEST B - CCS 1877 (1 Gr Comb) /CCS 1877 (1 Gr COmb); 1 PEL REC/EREC 1578.

"Desenrolar da acção:


"Em 31 de Agosto de 1967, pelas 4.30h., iniciou-se a progressão a partir de Darsalame. Durante a progressão foi batida toda a zona do itinerário, procurando vestígios e/ou trilhos que indicassem a existência do IN.

"Pelas 09H00 aproximação de Sare Tamba, os cuidados de pesquisa redobraram no sentido de localizar e assaltar o possível acampamento IN. Batida toda a mata durante 2 horas onde se supunha existir o referido acampamento, não foi possível localizá-lo nem o IN se revelou.

"No deslocamento para o objectivo pelas 11H00 foi ouvido um disparo de espingarda tipo Muaser ao longe, não sendo possível determinar a sua direcção. Continuada a batida foram encontrados restos de um camuflado IN não sendo possível, porém, encontrar mais nada. Pelas 11H50 foram ouvidos muito ao longe alguns rebentamentos fora da zona de acção.

"Por parecer mais fácil passou-se a bolanha junto a Sinchã Bolo e a seguir o Rio Jago na direcção de Sucuta (Madina Fali) onde se chegou pelas 15H00. Fez-se uma paragem para se conferir pessoal e material, porque as bolanhas foram de difícil travessia e foi a coluna atacada por um enxame de abelhas durante a transposição da primeira bolanha.

"Reiniciada a progressão em direcção a Sare Budi foi detectada pelas l6H00, em 1445 121.07H, 100 metros após a entrar na mata uma armadilha A/P a qual foi destruída pela Secção do PEL SAP/1877. Em Sare Budi no itinerário para Sare Madina foram montadas 2 armadilhas A/P cujo croqui será elaborado pelo Cmdt SAP/BCAÇ 1877.

"Continuando a progressão em direcção a Sinchã Fero Demori, não foi possível montar mais armadilhas em virtude do adiantamento da hora e não ser possível determinar o itinerário de acesso ao interior do sector desta CART.

"A chegada a Sare Banda verificou-se às 19H30, seguindo em meios auto até Geba, o que se registou às 20H30, tendo regressado às suas unidades o Gr Comb/CCAÇ 1685 e o 1 PEL SAP / CCS 1877 (2 secções)".


2. Nesta altura, as cabeças pensantes do Agrupamento [sedeado em Bafatá] já teriam concluído, e tinham provavelmente informações, que a base se situava a seguir à clareira de Sinchã Jobel, para Norte. Daí a presença de dois grupos da 5ª Companhia de Comandos para o eventual golpe de mão ao acampamento. Só que a guerrilha já se tinha também prevenido com minas A/P (já vistas na Op Jigajoga 2) e A/C como mais uma limitação no acesso à base e, ao mesmo tempo, um factor de alerta. Um dos feridos com o rebentamento de mina nesta operação foi o meu amigo Eng. Domingos Maçarico, então alferes miliciano da CART 1690, que acabou por ser evacuado para o Hospital Militar Principal da Estrela, e anda agora com uma placa de platina na cabeça.


"15. OP Jacaré. 16 de Setembro de 1967

"Situação particular:

"O IN tem-se revelado em operações realizadas nos regulados de Mansomine. Possui um acampamento forte em Sinchã Jobel que serve de base para as suas acções.

"Missão:

- Assegura a ocupação do sector, tendo em atenção os regulados da faixa Oeste e as linhas de infiltração que conduzem ao interior.

- Detecta, vigia ou captura elementos ou grupos suspeitos de subversão que se hajam infiltrado ou constituído no sector, impedindo que a subversão alastre.

- Captura ou aniquila os rebeldes que se venham a revelar, destruindo as suas instalações ou meios de vida e restabelece a autoridade e a ordem nas regiões afectadas.

"Força executante:

DEST A - CCAV 1650 (-); CART 1690 (2 Gr Comb); CCAÇ 1685 (1 Gr Comb); PEL MIL 111/C MIL 3

DEST. B - 01 PEL REC/EREC 1578.

DEST C - 2 Gr. COMANDOS.

DEST D - 1 Gr. Comb /CCS/BCAÇ 1877.

DEST E - 1 Secção / AML 1143.

DEST F - 1 Secção / AML 1143.

"Desenrolar da acção:

"Em 16 de Setembro de 1967, pelas 6H30, o Dest A menos o PEL MIL /C MIL 5 deslocou-se em meios auto em direcção a Cheüel. Após a saída de Geba uma viatura avariou, sendo o pessoal distribuído pelas outras viaturas que constituíam a coluna.

"Cerca das 08H00, uma mina anti-carro destruiu a terceira viatura da coluna a 100 metros de Chüel, projectando os ocupantes, dos quais 8 foram evacuados por Heli para o Hospital Militar 241, tendo os restantes ficado em condições de não prosseguir a operação, o mesmo acontecendo, com outros que ao saltar das viaturas se haviam magoado.

"Montada a segurança aos feridos e viaturas, procedeu-se a escolha e preparação do campo de aterragem para o Heli que imediatamente fora pedido pelo PCV [posto de controlo volante] que na altura nos sobrevoava. Posta a situação ao PCV, quanto a baixas, foi ordenado ao Dest A para regressar ao quartel depois de evacuar as viaturas, e onde chegou pelas 17H00.

"Devido à quebra do segredo foi ordenado pelo CMDT AGRUP 1980 o cancelamento da operação.»

quinta-feira, 2 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P38: Afinal, onde ficava Geba? (2) (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes, ex-alferes milciano da CART 1690 (Geba, 1967/1969), actualmente coronel (DAF) na situação de reforma:

Geba existe e está, de facto, quase completamente abandonada. Estive lá em 1998. Mas não deu para tirar fotografias (só uma ou duas). Mas ainda tem habitantes, embora poucos.

As instalações militares do tempo da guerra colonial, essas, estão em completa derrocada. Situam-se no morro existente a um quilómetro do lado direito (de quem está virado para o rio Geba) da povoação. Tinham acabado de ser construídas quando a CART 1690 lá chegou, em Abril de 1967. Mas o comando da companhia situava-se mesmo na povoação.

Na Bíblia, Geba era uma cidade da antiga Palestina, situada a 8 km de Jerusalém, local onde Jonatan derrotou os filisteus. Ainda hoje existe esse local e está na zona da Autoridade Palestiniana. Será que o nome vem daí? Não me admira, dado que, quando os portugueses chegaram à Guiné no séc. XVI, já essa terra estava islamisada. Geba, juntamente com Cacheu e Ziguinchor, foi o berço do crioulo falado na Guiné. Procurem neste link http://www.unb.br/ics/dan/Serie154empdf.pdf o que foi Geba nos séculos passados.

A jornalista Diana Andringa esteve há anos em Geba e fez um filme que me ofereceu. Emprestei-o a um ex-camarada de armas e ainda estou à espera da devolução... Mas vou insistir com ele e pode ser que consiga tirar desse filme algumas imagens relativamente recentes sobre Geba.

Abraços.
A. Marques Lopes

terça-feira, 31 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P37: Afinal, onde ficava Geba? (1) (Marques Lopes)

1. Segundo uma oportuna mensagem enviada por Fernando Rodrigues Junqueiro, Geba ficava a oeste de Bafatá, a 12 km de distância. Em Abril de 1997, quando o nosso amigo Fred por lá passou, Geba, o antigo entreposto comercial português, era um monte de ruínas.

E as instalações militares ? Será que estamos a falar da mesma Geba, a tal povoação que supostamente não vem nos mapas e que era a sede da CART 1690, a companhia do Alferes Lopes e de outros camaradas que conheceram o inferno de Cantacunda, Banjara, Sare Gana, Sare Banda, Sinchã Jobel e outros sítios de má memória do subsector de Geba (que no meu tempo pertencia ao Sector L2 / Zona Leste, e que incluía Contuboel, um paraíso, pelo menos no tempo que lá estive: Junho/Julho de 1969)?

Viagem à Guiné-Bissau > Abril de 1977 > Bafatá & Interior:


"Bafatá é a segunda maior cidade da Guiné-Bissau com 10.000 habitantes. Fica no interior do país na margem do Rio Geba, 150 kms a leste de Bissau. Bafatá é uma cidade surpreendentemente tranquila, caracterizada por uma predominância de edifícios e casas coloniais, infelizmente num estado avançado de degradação. O herói nacional, Amílcar Cabral, nasceu em Bafatá e esse facto está assinalado num pequeno monumento com o seu busto e na casa onde nasceu, perto do Mercado Central. A cidade fica numa colina sobre o Rio Geba. 12 kms a oeste ficam as ruínas de Geba, um antigo entreposto português".

2. Como se pode ver pelo mapa da Guiné Portugesa, carta de Bambadinca (Escala 1/50.000), dos Serviços Cartográficos do Exército (1955),a povoaço e entreposto comercial de Geba fica a norte do Rio Geba (ou Geba Estreito), antes de Bafatá.

Agradeço ao meu amigo e ex-camarada de armas Humberto Reis a gentileza da oferta de fotocópias de diversas cartas da Zona Leste da antiga Guiné Portuguesa (Xime, Xitole, Contabane, Bambadinca, Bafatá, Contuboel, Duas Fontes), além da Carta da Província (1961). Foram estas famosas cartas, para além dos guias locais, que nos ajudaram a encontrar o caminho... de regresso a casa!

Fica aqui também a minha modesta homenagem a portugueses ilustres como Avelino Teixeira da Mota (1920-1982) que dedicou uma parte da sua vida à etnografia e à cartografia da Guiné.

Em mapas actuais da Guiné-Bissau, como o que consta por exemplo no sítio da OMS, Geba figura ainda, claramente, como localidade, devido em parte à sua importância histórica, cultural e económica, no passado.

segunda-feira, 30 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P36: Na bolanha dá para pensar... (Marques Lopes)

1. Os meus parabéns ao A. Marques Lopes pelo seu belíssimo texto que eu encontrei no sítio do Didinho e que já havia divulgado, neste meu/nosso blogue, através da indicação de um link…

Mal o descobri, logo achei que ele merecia outro destaque, partindo do princípio de que o seu autor iria autorizar-me a sua reprodução. Tinha desafiado o Marques Lopes a, num dia destes, explicar-nos o texto e o seu contexto: as circunstâncias, o dia, a hora, o local, a operação, que o levaram a escrever esta peça, de grande tensão dramática mas também de fino humor...

Ele acabou por desvendar o mistério, descrevendo-nos as circunstâncias (diria que insólitas, quiçá caricatas e até burlescas, se não tivesse sido tão dramáticas) em que se perdeu no mato e descobriu, atónito, a base do IN em Sinchã Jobel, no decurso da Operação Jigajoga, na noite de 24 para 25 de Junho de 1967 (vd. poste anterior).

É um texto de uma grande riqueza humana e de excelente recorte literário... Um texto de cortar a respiração, ao reconstruir o inferno da guerra, o infermo físico e psicólogico daquela guerra, ao mostrar o absurdo daquela guerra e das raus razões de Estado...Fiquei com a ideia de que, mais do que uma simnples página de um diário, poderia ser o excerto de um livro em curso. Um daqueles livros que se vai construindo na cabeça de cada combatente da guerra colonial na Guiné, depois de passar à peluda. Um livro que todos nós, um dia, gostaríamos de escrever e de publicar. Ou de ter escrito e de ter publicado. Um livro que gostaríamos de dar a ler, porventura com secreto prazer mas seguramente com reserva e pudor, à nossa companheira, aos nossos filhos e netos, aos nossos pais, aos nossos irmãos e e aos nossos amigos, e até aos poucos companheiros da nossa geração que não foram à guerra. Talvez um livro, ou talvez apenas um conto, um conto de guerra, em todo o caso a merecer antologia...

Espero que o nosso ex-camarada de armas continue a escrever, sobre a sua experiência militar e humana na Guiné, que foi tão rica e que lhe deixou marcas no corpo e na alma. Tudo indica, pelo que já sei dele, que foi um grande operacional e um grande sortudo, apesar de tudo. Como todos nós, que regressámos do inferno e ainda estamos vivos para contar, aos vivos, o que um homem é capaz de sentir, pensar e fazer numa situação-limite como a guerra, como aquela guerra. Pelo menos no dia 25 de Junho de 167, de manhã, na região de Sinchã Jobel, o Alferes Lopes regressou do mundo dos espíritos da floresta, e disse: "É tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero! Bem, Braima, rapaziada, toca a sair daqui".

Faço votos para que O A. Marques Lopoes continue a escrever, para ele, para nós e para todo o universo dos falantes da língua portuguesa, agora que, terminada a sua carreira militar, ele está, presumo, mais livre ou se sente mais livre para o fazer... Porque talento de escritor e matéria-prima não lhe faltam. L.G.

2. Na bolanha dá para pensar... (A. Marques Lopes, 2005)

(Originalmente publicado, em 13 de Fevereio de 2005, na página pessoal do guineense Fernando Casimiro, o Didinho)

Bonito! Os outros foram-se embora e aqui estamos, meia dúzia de mecos, no meio da bolanha. Tenho cada ideia, ás vezes... esta, então, de escolher a bolanha para descobrir se eles têm aqui uma base é do caraças. Que havia de fazer?... eles não nos deixaram aproximar mais por outro lado... O que vale é que não perdi o quico. Sempre me dá jeito e vou já mergulhá-lo na água, para ficar com as ideias mais frescas... Sabe di más!... Como é que eu não perdi o raio do quico no meio desta baralhada toda?!... Tem estado agarrado à minha cabeça como qualquer coisa que é parte integrante de mim mesmo... mas não é, claro. No entanto, tenho-o enfiado na cabeça de tal modo que mais parece o contrário, parece que faz parte de mim.

Tenho que pensar para ver como nos vamos safar daqui. Por agora, é de aguentar. Aqueles gajos continuam a andar por aí, que eu bem os oiço, mas não os vejo, no meio destas cortinas de capim. Se eu não os vejo, eles também não me vêem a mim... mas, é melhor não me armar em avestruz e pôr-me mas é a pau! Há barulho de passos no carreiro e na clareira e oiço cortar ramos e bater no chão. Estão a montar armadilhas, com certeza. Com uma base aqui, era o que eu faria também, para prevenir novas aproximações. Não são parvos, não senhor... e isso não me ajuda nada, pois estou a sentir-me cada vez mais entalado. Mesmo que se vão embora daqui a bocado, não me atrevo a meter-me por esses caminhos. É mais que certo que vou topar com uma armadilha, e não me agrada nada... se não lerpei até agora, não será por minha vontade que isso vai suceder daqui para a frente.

É evidente que eles não podem armadilhar toda a zona... têm de garantir o regresso do grupo que foi até à margem do rio Gambiel. Deve haver, evidentemente, um caminho não armadilhado... mas como vou adivinhar qual é? Não me atrevo a voltar por aqueles que conheço, por onde vim até aqui, pois esses estão-no, com certeza... porque são os mais evidentes. Posso procurar outros... mas quem me garante que não vou pisar uma puta duma bailarina? Não me arrisco. Tenho de pensar noutra maneira de sair daqui. Mas como?... só se me armar em Tarzan de árvore em árvore, agarrado às lianas... Havia de ter piada!... De qualquer modo, nem isso pode ser, pois lianas... cá tem. Não vi lianas em lado nenhum deste matagal. Nos filmes é que elas estão ali, mesmo à mão de semear, no sítio exacto e necessário. Mas aqui, de facto, não há nada no seu lugar devido, para me facilitar a vida.

Já lá vai o tempo em que as coisas para mim eram fáceis. Em termos de garantia de subsistência, em termos de programação de vida. Quando eu estava nos padres. Tinha tudo. Pequeno almoço, almoço e jantar a horas certas, brincadeiras e estudos programados e dirigidos. Havia, apenas, que cumprir o regulamento e ser piedoso. Mas tinha um grande contra para mim: não se podia cometer pecados.

(...) Não vou, agora, pensar nessas coisas, senão ainda me ponho aqui a rezar em vez de puxar pela cabeça e ver se nos safamos... O mapa, o mapinha que trago sempre comigo quando venho para estas coisas! Sou um gajo cumpridor das regras...Goza, goza, mas o facto é que o mapa me vai fazer jeito. Braima, dá-me aí o mapa. Sare Ganá... Sinchã Sutu aqui... a picada para sul e, aqui à direita, o desvio de Sare Madina... mais à frente... aqui está Sucuta, a bolanha e o rio Gambiel... que atravessámos com cuidado, por cima do troco submerso... avançámos por este carreiro... e aqui está Jobel... Sinchã Jobel, como vem aqui no mapa!... Aqui, no extremo da clareira, foi a emboscada... e cá está assinalado o palmeiral e, ao lado, a bolanha onde... por aqui, mais ou menos... estou com o cú de molho!... E estou mesmo todo encharcado, pés, botas, calças... Debaixo deste sol, o melhor seria estar só com a cabeça de fora, como as rãs. Mas não pode ser. Já não é mau ter o material ao fresco.

A nossa posição, pelo que estou a ver no mapa, não é famosa. A bolanha, que deve ter servido para as culturas de arroz de Jobel, vai até ao rio Gambiel, formando no encontro com ele um ângulo recto. Portanto, segue paralelamente ao caminho por onde vim para chegar ao local da tabanca. Esta bolanha é uma espécie de braço do rio na época das chuvas, mas na época seca tem mais capim que água. Está à vista. Assim sendo, e se estou a ver bem, se regressarmos ao longo e por dentro da bolanha, vamos ter a umas centenas de metros mais a norte do sítio onde atravessámos o rio. E tem mesmo de ser assim. Não vejo outra alternativa mais segura. E também me parece que, se o local de atravessar o rio era aquele que me indicou o guia quando viemos para cá, é porque não havia outro mais acima. Não, não estou disposto a correr o risco de atravessar noutro sítio que não seja o que já conheço. Esta bolanha não a conheço e não tenho, portanto, outra alternativa senão ir por ela, com cuidado, só se tiver azar é que vou cair nalgum buraco. Mas, quando chegar ao rio, já sei que há um lugar seguro para passar, Sucuta. Temos de descer até lá. Um rio não é uma bolanha, para se ir assim à aventura.

Tem que ser. Descemos a bolanha até ao rio e vamos passá-lo no mesmo sítio da vinda. O problema é que, se nos pomos agora a andar pela bolanha abaixo, caçam-nos que nem patos na água. Topam-nos no meio e é só apontar calmamente. Quer dizer que não posso largar daqui em pleno dia. Não tropeço numa mina nem caio num buraco, mas o mais certo é não dar dois passos sem levar uma rajada nas costas. Merda! Será que tenho mesmo de fazer isto à noite, cair num buraco e enfiar-me pelo rio dentro?... Puta de vida! Mas, não, não posso estar condenado, tem de haver uma saída. Deixa pensar mais um bocado. Vou refrescar os miolos outra vez... mais uma chapelada de água... Parece sopa, mas é mesmo boa! A vantagem de ter abancado neste charco é que tenho água para me refrescar, quanta quiser.

(...) A única possibilidade que temos de nos safar daqui é arrancar amanhã muito cedo. Às 5,30 já se começa a ver alguma coisa. Já podemos ir vendo onde pôr os pés e orientar-nos... além de que, segundo dizem os manuais, as sentinelas têm tendência para abrandar a vigilância pela madrugada e deixarem-se adormecer antes de despontar a aurora... Terá de ser nessa altura que vamos desandar daqui p´ra fora. E oxalá os gajos não tenham lido os manuais também!...

(...) Que calor infernal faz aqui no meio do capim! O sol e o ar quente entranham-se por entre os caules e permanecem também eles poisados sobre a água. Não há a mais leve aragem. A estagnação é total, na água e no ar. Afinal, não é nada bom estar aqui de molho... As rãs devem sentir-se melhor, com certeza, mas eu mais pareço uma azeitona em água parada, opaca e gordurosa. Começo a ter sede. Não trouxe o cantil, pois não contava com esta variante no programa das festas. A estas horas já eu devia estar a comer um bom bife de vaca, isto é, um bife dos cornos da vaca... nesta terra parece que não há carne tenra. De qualquer modo, com batatas fritas e empurrado com cerveja, com muita cerveja, não há nada que não entre pelas goelas adentro. E cerveja não falta para a tropa. Valha-nos isso... Afinal, lamento-me com sede, mas estou rodeado de água por todos os lados, como as ilhas. É só enfiar a cabeça no charco e abrir as goelas... Mas há por todo o tipo de bicharada. Eu seja cão se vou beber esta porcaria. Prefiro beber mijo.

Há vozes e barulho. O IN continua por aqui, a rebuscar no mato e a montar armadilhas. O tipo que eu vi com um penso no braço e companhia não vão largar tão cedo. Devem estar bastante confiantes, uma vez que não largam este sítio e não se preocupam com o barulho que fazem. Devem ter montado uma sentinela do lado de cá do rio. Sabendo de qualquer avanço, poderão organizar a defesa ou montar emboscadas com facilidade e segurança. Este local é de acesso muito difícil. Segundo o mapa, só de um lado é que não está cercado de matagal. É o lado da bolanha e do rio. E mesmo este é um bom bico d'obra. Tenho de aguentar e ver, pois eles não estão com vontade de se ir embora.

Relax e esquece o IN... O IN! Toda a gente usa isto. É mais fácil dizer IN do que "inimigo". Acho que é por isso que usamos estas abreviaturas... No entanto, tornando mais fácil a referência àqueles ou àquele de quem falamos, o "in" e o "turra" são, de facto, expressões meramente referenciais e sem o significado profundo contido nas palavras "inimigo" e "terrorista". Se não abreviasse, é claro que eu acabava por me cansar a pronunciar as palavras por inteiro. Passaria, enfim, a tratá-los com demasiada familiaridade, teria que me arrimar aos inevitáveis "os gajos", ou "os tipos" ou mesmo "os filhos da puta". Era tratá-los como trato, às vezes, os que me são indiferentes, os que me pisam ou dão um empurrão... Isto seria, seguramente, o abandalhamento da guerra. Em vez de balas a malta começava a amandar-lhes com nomes feios, a gritar-lhes que fossem levar no olho, que não chateassem, que nos deixassem em paz... Era complicado. Não havia guerra que durasse. Poderia ser uma das consequências, resultante do cansaço pelas palavras difíceis e compridas demais para inserir na linguagem corrente da soldadesca. E poderia dar noutra coisa, se o maralhal não usasse profusamente estas abreviaturas: ao pronunciar por inteiro as palavras "inimigo" e "terrorista" é natural que começássemos a interrogar-nos sobre a correspondência entre o significado e o significante... Ai estas aulas de Linguística!... O que é isso de "inimigo"? Aqui, na terra deles, são eles meu inimigo?... Atacam-me para me roubar, para ficar com o que é meu?... Têm interesses opostos aos meus e atacam-me, por isso?... Para eles, sou eu o inimigo? Venho roubar o que é deles? Tenho interesses opostos aos deles?... Claro, cinco séculos de história, civilização, blá, blá, blá..., como diz o Salazar. O facto é que isso se traduz nos libaneses a dominar o comércio, no nazi Landorf, fugido da Alemanha depois da guerra, a vender quinquilharias aos pretos de Geba. Eu, aqui, só estou a perder uma coisa: o curso de Filologia Românica que estes filhos da puta não me deixaram continuar. ... Não me parece que o "in" seja meu "inimigo". Eu sou, com certeza, o "inimigo" deles. Linguística à parte, isto é mesmo uma situação aberrante.

(...) Há pouco, quando os vi ali todos juntos, ainda pensei em disparar. Acabei por não o fazer e acho que fiz bem. É claro que eles devem ser muitos mais do que os que andam por aqui... E, sei lá, disparar, assim à queima-roupa sem que eles esperassem, sem mais, ainda era capaz de ficar com algum peso na consciência... Os meus anseios nunca foram matar. Só por medo o faria, por necessidade, pela situação. Tenho encarado isto como uma aventura. A verdade é que nunca desejei vir para a guerra. Se me tivessem dado o adiamento da incorporação, estaria, agora, a terminar o segundo ano de Românicas. Eu até gostava daquilo. Mas aos senhores da guerra não interessam os doutores em Letras. Se eu estivesse em Engenharia ou Medicina, isso sim... há sempre pernas e braços para cortar, certidões de óbito para passar, há que fazer quartéis, arame farpado para erguer e picadas para abrir. Para os doutores ou candidatos de Letras há que pôr-lhes mas é uma canhota nas mãos. Na guerra não servem para mais nada...

(...) Se eu tivesse continuado nos padres, o mais certo era não ter vindo à guerra ou, então, vinha como capelão, um ofício que, aliás, também faz muito jeito na guerra. Há preconceitos a alimentar, consciências a adormecer e angústias para apaziguar. Sou vítima da vingança concertada dos senhores da guerra e dos senhores da consciência: já que não quiseste reconhecer os imensos benefícios da religião, sentir a honra de pertencer ao número dos eleitos, vais sentir as agruras da guerra... que é um inferno na terra.

(...) Dentro em breve será noite. Já se estendeu sobre a bolanha um manto enorme de sombras, sinal de que o sol se começou a esconder por detrás da grande floresta de poilões que rodeiam a clareira de Jobel.

Já não estou tão calmo e seguro. A previsão do perigo eminente, a expectativa da emboscada ou do ataque repentinos não são nada comparados com um perigo que nos rodeia mas que não sabemos qual é, nada em comparação com este manto de escuridão que se abate sobre nós, que se entranha na minha farda, que me cobre as mãos, as pernas, o local onde estou. As trevas, meu Deus, é o pior que me pode acontecer. Mil vezes a emboscada que desaba sobre o grupo, mas que eu vejo, que acabo por limitar em todas as suas proporções, do que o perigo que só se imagina mas que nunca se vê, nem mesmo quando está em cima de nós.

Nesta terra de ténues ondulações a noite surge depressa. Começo a não distinguir as minhas próprias mãos. Não percebo como os outros ao longe as poderão ver. Mas vou fazer o que mandam as regras, barrá-las, e à cara também, com esta lama onde me assento. Mas, antes, vou beber desta água que me tem de molho há várias horas. Os outros já estão também com falta de água...Que remédio, tenho sede. Nunca a fome me atacou durante todo este tempo, mas a sede é um tormento e eu quero que se lixe a limpeza. Vou mesmo beber esta água, agora que já não consigo ver o seu grau de sujidade e inquinação.

Os sons nocturnos assumem proporções descomunais em relação aos diurnos. Aquilo que durante o dia me parece uma grande algaraviada, uma sinfonia de cacofonias, aparece-me agora como uma execução em estereofonia. Consigo distinguir todos os sons e vozes de pássaros. Aquilo que me parecia uniforme na promiscuidade de vozes aparece-me agora como o conjunto de várias espécies de pássaros e mamíferos. Não sei identificá-los pelo nome, a não ser o dos macacos, mas sou capaz de os contar através das diferenças de vozes. Na margem da bolanha, entre as árvores, são os macacos e os periquitos que dominam. Aqui, por aqui mais perto, são as moscas e mosquitos que não cessam de zumbir aos meus ouvidos. De vez em quando há um ruído na água. Pode ser um peixe a saltar, mas também pode não ser... Ao longe, um pássaro, penso eu que é um pássaro, lança um pipilar modulado que mais me parece um uivo de lobo. Mas, segundo sei, aqui na Guiné não há desses bichos...

Quem me dera a mim que se ouvissem só os macacos, os periquitos, as moscas e os mosquitos! O que me enerva e causa medo são os mil sons que eu desconheço. Este borbulhar na água pode ser uma cobra e aquele chapinhar mais além pode ser um javali, o resfolegar que vem das palmeiras pode ser uma onça...

Lá mais para a frente, do outro lado da clareira, precisamente daquele sítio onde os guerrilheiros montaram a emboscada, vêm ruídos que parecem provocados por pessoas. Ia jurar que há uma tabanca para estes lados... Como é que eu não me apercebi destes ruídos durante o dia? Seria mais lógico que os ouvisse melhor , uma vez que as pessoas fazem mais barulho durante o dia do que à noite. As marteladas, ou outras pancadas em madeira, deveriam ser mais audíveis durante o dia, quando não há tanta preocupação em manter o silêncio, em não incomodar. A explicação tem de ser esta: a tal enorme cacofonia diurna, que não deixa qualquer hipótese de identificação dos sons a que nos habituámos no nosso dia-a-dia. Porque a noite não deve ter sons, qualquer um que surja é identificável e sobressai no meio do silêncio, como milhares de pirilampos que, apesar de minúsculos, sobressaem na escuridão sem, no entanto, se conseguirem juntar num sol que torne a noite em dia.

Distingo perfeitamente os toques na madeira. Pilão ou martelo, é bater de gente. E surgem agora sons que só podem ser vozes de gente também. Então, contrariamente ao que me garantiram, esta zona não é desabitada! Isto explica a emboscada. Entrei no terreno deles, com tanto à vontade... e estupidez! Tenho de falar com o palerma do major de operações... se conseguir sair daqui.

(...) De olhar no escuro, tentando fazer luz com os olhos e com a mente, ver mais além do que esta escuridão me permite, na expectativa. Esta noite faz-me lembrar outras noites que passei à janela, de olhar perdido no escuro ou na barreira de ciprestes que cercavam aquele pequeno mundo do seminário. Mas bem pior estava então, apesar de tudo. Neste momento, estou esperando, pacientemente; nervoso, mas não desesperado; receoso, mas não em pânico; sozinho, mas não perdido. Não estou triste, não choro e não desejo a morte. Pelo contrário. Impaciente, desesperado, perdido, em pânico e desejando a morte... assim era eu, não há muito tempo. Passaram-se apenas três anos. Tinha vinte anos e não tinha outros horizontes senão uma vida de torturas e recalcamentos, ou o inferno como alternativa.

Mais do que as obrigatórias meditações em conjunto no seminário, no meio dos maus cheiros dos "irmãos em Cristo", de olhos fechados em atitude piedosa, este é o ambiente ideal para meditar, ligado pela escuridão à natureza. Naquelas mais de mil noites nunca consegui estar sozinho, apesar de me lamentar de uma solidão terrífica. Os outros e a organização estavam sempre presentes em mim, quando lutava sozinho para me ver livre deles. Por isso mesmo. Enquanto tive dúvidas nunca me largaram. Só me deixaram quando eu passei a ter a certeza do que queria e do que não queria.

Aqui, na guerra, não há outra coisa que me ligue aos outros a não ser o desejo de sobrevivência, e este desejo liga-me efectivamente, mas não o sinto como prisão. Pelo contrário, liberta-me para este tipo de meditações, para aceitar e tirar partido desta noite, para estar com todos no desejo de regressar, de não morrer, de viver. Lá, não. Os laços que me prendiam aos outros só me arrastavam para desejos de morrer e de os odiar. Aqui, na guerra, não há perigo de ter dúvidas, a certeza surge-nos dos factos do dia-a-dia. É tudo muito real, muito directo, entra-nos pelos olhos dentro, por todos os sentidos. Quando se nos revela assim, e surge sempre, mais tarde ou mais cedo, é um facto que faz parte de nós e é, portanto, uma certeza. Quando vim para cá não sabia nada o que era esta guerra. Mas já estou a saber o que é.

Tenho-me interrogado variadas vezes sobre as razões por que entrei para o seminário. Mais para carpir uma mágoa por um passo mal dado do que para tentar esclarecer aquilo que já sei. Foi a minha condição de menino pobre que me pôs perante essa necessidade. Mas nem por isso, naturalmente, fui responsável por essa decisão. A necessidade foi dos meus pais, que aproveitaram o desejo de um padre que se arvorou em meu protector. As pressões daí decorrentes, o meio em que passei a ter de me mover, fizeram o resto. À distância, sinto em mim uma grande mágoa por não ter conseguido libertar-me mais cedo dessa catástrofe que sucedeu na minha vida. Mas, nem sei se poderia ter sido diferente. Para quem tinha fome, para quem passava o dia com uma fatia de pão com margarina ou, mais do que uma vez, com uma côdea seca, era impossível recusar a possibilidade de ter refeições a tempo e horas. Como não aceitar a perspectiva do café com leite e pão com marmelada, da sopa, da carne e do peixe, se cheguei, quando era puto, a ter que andar aos caixotes?... Já tenho desejado muitas vezes não acreditar em Deus. Mas não consigo. Numa guerra, nesta guerra em que me encontro como interveniente activo, a fuga, os desejos, a esperança, a ideia de quem morre são os outros e não eu, tudo está depositado em Deus, que me há-de proteger e guardar... Mas porquê a mim e não aos outros?... aos que morreram, aos que ficaram sem braços e sem pernas, aos que ficaram cegos e aos que ficaram loucos? É uma dúvida e, ao mesmo tempo, uma incompreensão muito funda que se afoga e perde naquilo que a minha formação religiosa chama "os insondáveis desígnios de Deus"... Quer dizer que, se eu morrer ou ficar estropeado, foi desígnio de Deus, se eu sair bem disto tudo, será também vontade de Deus. E posso, desta maneira, encontrar em Deus a "explicação" de todas as coisas, poderei continuar tranquilamente a fazer a guerra. Posso matar, porque nos desígnios de Deus tanto pode estar o castigo como o prémio. O desígnio que eu mate, o desígnio que o outro morra. O prémio para mim que matei e não morri e o castigo para o outro que não me matou e morreu? Ou serei eu castigado porque matei e o outro terá um prémio na outra vida porque não me matou? Se eu comparecer perante Deus, durante ou após esta guerra, serei condenado às penas eternas ou entrarei no rol dos bem-aventurados? Serei condenado ou premiado se tiver obedecido aos meus "legítimos superiores", àqueles que " têm sobre si a pesada responsabilidade de governar e mandar"? Serei condenado ou premiado se lhes desobedecer e não matar?

"A Deus o que é de Deus e a César o que é de César". A citação fatal do director do instituto filosófico onde andei, quando seminarista, o qual, desta forma, tentava calar as minhas dúvidas. Que confusão, se o que interessa a César vai contra o mandamento "não matarás"! É uma resposta hipócrita. Procura justificar a passividade da Igreja perante a guerra... Ou consentimento? Como admitir que a Igreja abençoe a guerra? Antes de vir para a Guiné, o meu batalhão foi obrigado - é o termo - a assistir a uma missa na parada do quartel. Tal como no tempo das cruzadas, quando se partia para combater os infiéis e libertar os lugares santos. O padre capelão, o senhor major-capelão, fez uma eloquente exortação ao cumprimento do dever para com a pátria, da necessidade de defender os valores da civilização ocidental e o património legado pelos nossos antepassados... enfim, a mesma conversa dos senhores da política, abstracta, situada em algo que não me toca, em valores que não compreendo, em património que não possuo. E, ainda por cima, era um dos padres do seminário onde andei, um que eu bem conhecia.

Pode a Igreja justificar a sua atitude perante a guerra pela necessidade que há de acompanhar, assistir os soldados que passam dias e meses, anos até, de profunda angústia e desespero? Que o objectivo não é apoiar a guerra, mas sim servir de consolo religioso a quem necessita da religião? Para mim, não serve. Tentando diluir as contradições que naturalmente emergem da mente de quem é religioso, está-se a colaborar na manutenção de uma situação que o soldado não deseja instintivamente, está-se a diluir as dificuldades para que essa situação indesejável se mantenha o máximo possível. E, o que é mais grave para mim, não se responde às angústias e interrogações de quem se vê confrontado com uma realidade que é pura negação de tudo o que lhe incutiram de bom, de justiça, de amor, de fraternidade. Utilizando uma única frase dos Evangelhos - dar a César o que é de César - subverte-se todo o restante texto dos livros sagrados. Por oportunismo, pela mais rematada hipocrisia. São muitas as críticas que tenho a fazer àqueles que dizem representar-te cá na terra, ó Deus. Mas confio que me hás-de ajudar a sair deste aperto.

Tenho os membros anquilosados de tanta imobilidade. A pele das mãos está toda encarquilhada pelo permanente e prolongado contacto com a água. O mesmo deve suceder com os pés e com o material, devo ter tudo mirrado e encolhido.... Sinto nas mãos, nos braços e pelo corpo todo uma imensa comichão que, curiosamente, nunca tive vontade de coçar. Estou cheio de bolhas e ampolas, que só vejo nos braços e nas mãos mas que devem estar por todo o corpo, até na cara. À minha volta há milhares, talvez milhões de mosquitos e moscas tzé-tzé. A minha esperança é que só tenha sido picado por novecentas e noventa e nove moscas do sono... segundo dizem as estatísticas, só uma em mil é portadora da doença do sono, não é?... De qualquer modo, não sei se me fariam efeito: estou tão cheio de vacinas contra tudo que essa tal milésima, se me picou, deve ter morrido entoxicada, com certeza...

Devo ser um nojo completo. Uma merda da cintura para baixo.

(...) Começa a surgir uma luminosidade por detrás das palmeiras, uma luz branca muito mortiça. Por aqui, começo a vislumbrar uma neblina leitosa a empastar a bolanha. Há outro silêncio neste despertar da mata e dos seres que a povoam. Imagino-os dolentes, agora conscientemente enrolados sobre si mesmos, sem se mexerem, como fazem inconscientemente durante o sono. Procuram forçar o prolongamento desse sono. Por isso, este, agitado ou tranquilo, deu lugar a modorra prolongada e estática, intencionalmente silenciosa, para não acordar. No entanto, porque não é só o ouvido que está desperto e atento, como sucede na mais completa escuridão, toda esta imensa calma que precede a agitação e luta de mais um dia na vida da natureza é apenas perceptível ao nível dos sentimentos mais íntimos do meu ser, pois a luz que penetra nos meus olhos desperta nestes uma segunda dimensão que faz sentir as coisas de uma forma avassaladora e total. Tudo aquilo que povoou a minha mente, os ruídos que se apossaram de mim através do ouvido, tudo isso passou a estar submerso pela impressão visual do que me é exterior. Durante estas horas de vigília nocturna estive dominado e cercado por mim mesmo, por toda a minha vida, pelo passado.

Agora não. Sinto que tudo se vai diluindo, que a realidade externa se apossa de mim, que a posse da totalidade dos meus sentidos me introduz novamente no seio do meu destino, composto também de exterior. É uma visão "ruidosa", na medida em que este contacto com a realidade da manhã consegue abafar o domínio exclusivista do ouvido e do raciocínio. O conjunto harmonioso da vida não deixará que prevaleçam as sensações parcelares e limitadas. A total percepção da realidade não deixará que me deixe dominar por um único dos seus aspectos. A prefeita e clara percepção em todos os sentidos, agora, não deixará que me domine o medo do desconhecido ou do indefinido. É tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero!

Bem, Braima, rapaziada, toca a sair daqui.


A. Marques Lopes