O Manuel Oliveira Maia fez há dias uma primeira tentativa para entrar em contacto connosco e ser admitido na nossa Tabanca Grande. Não mandou fotos, por que ainda anda às voltas com estas novas tecnologias... É o que deduzimos, de resto, da leitura do seu blogue,
, aberto em Janeiro passado e contendo já vários postes sob o título "Evocação da Guiné". Diz ele, em jeito de apresentação:
Pois é, Manuel, isso com o tempo (e a teimosia) a coisa vai. Tudo se aprende, haja força de vontade.
Entretanto, recebemos hoje um segunda mensagem do Manuel Maia, que diz o seguinte:
"Português dos quatro costados, apreciador de ditados populares, decidi tomar a nuvem por Juno e utilizar o conhecidíssimo 'quem cala consente', daí o atrevimento de escrever, de forma faseada, aquilo que tinha solicitado há dias e que dá o título a este mail, esperançado em que alguém da companhia possa lê-lo. Desde já o meu muito obrigado".
Pois é, Manuel, a gente não cala mas consente. Isto quer dizer que estás mais do que autorizado, tens luz verde para entrar na nossa Tabanca Grande e sentar-te à sombra do poilão. Com tempo e vagar, mandas-nos algunas fotos e conta-nos por onde andaste, com a tua 2ª Companhia do BCAÇ 4610/72 (já percebi: Bissum, na região de Bula, Cafine, Cafal Balanta., na região do Cantanhez / Cacine..).
E, olha, parabéns, pela arte e engenho de narrar, com humor, os feitos gloriosos dos Terríveis que ousaram penetrar no Santo dos Santos, que era, para o PAIGC, o Cantanhez. Furriel Maia, estás aprovado com 20 valores. São trinta e três sextilhas, ou seja, estrofes de seis versos de dez sílabas métricas. Não os revi todos, mas batem certo: são mesmo decassílabos... Ou não fosses tu um homem de letras, e quiçá um émulo de Camões.... O Camões do Cantanhez!
Fico a aguardar o resto do poema épico, agora a entrar - espero bem - no mítico Cantanhez, lá por alturas de Novembro/Dezembro de 1972, quando o velho Spínola decidiu reconquistar e ocupar essas míticas terras de Tombali, numa prova de força contra o PAIGC: Cobumba, Chugué, Caboxanque, Cadique, Cafal, Cafine, Jemberém... Vou ver depois como chamar a esse novo Cancioneiro... (LG)
2. Assunto - HISTÓRIA EM SEXTILHAS DA 2ª CCAÇ BCAÇ 4610/72
2ª CCAÇ BCAÇ 4610/72,
OS TERRÍVEIS
1. Da mais remota aldeia ou simples terra
chegaram aprendizes para a guerra,
à Eborina urbe alentejana.
Três meses lá passados chegou dia
do voo p´ra Guiné que ninguém queria,
p´ra trás ficava o Templo de Diana...
2. Corria o ano dois após setenta,
manhã dia antonino,calorenta,
em terra há corações despadaçados.
No voo baptismal p´ra maioria,
vai tropa dos
Terríveis,que escondia,
seus medos peito adentro,bem fechados.
3. Pousada a nave,agreste é a paisagem...
em camiões
Berliet se faz viagem
até ao Cumeré, p´ro I.A.O.
Em cada face há rios de suor
vincando esgares e rictos de estupor,
nas rugas desenhadas pelo pó...
4. No Cumeré surgiu nova instrução
com muitos
pius saudando a comissão
que ora começavam,
coitaditos...
De fardas novas, pele esbranquiçada,
são alvo da chacota e gargalhada
dos
velhos que gozavam
periquitos...
5. Desajustado,bronco e petulante,
republicano guarda é o comandante
do nosso batalhão de Bissorá.
Destino de Bissum foi libertário
livrando-nos do velho salafrário
a Bula, a administração nos ligará.
6.
Bissum passou a ser morada nova
e os nervos aos
Terríveis pôs à prova
daí as muitas noites mal dormidas.
Enquanto
em casa a
música (a) descansa,
no mato ,atirador faz segurança
travando assim as
turras investidas...
(a) Pessoal que não ia ao mato
7. A sobreposição foi conseguida,
serena,com quem estava de partida,
de volta p´ra Lisboa, por Bissau.
Pintada fôra a manta com mil perigos
de ataques incessantes inimigos,
buraco...afinal nem era mau...
8. E desse tempo há coisas que ficaram,
partidas/praxe com que nos brindaram,
algumas bem gozadas,vejam bem...
Na messe à noite,em plena cavaqueira
connosco, bem bebido, em brincadeira,
alferes velho,ali,
conta vantagem...
9. No mato,
embrulhara manga deis...
(recorda pelo menos vinte e seis...)
nalguns sentira mesmo uns sustozitos...
Mostrava o seu galão,com arrogância
ao turra a quem cheirava, inda à distância,
julgando impressionar os periquitos...
10. Aterra no seu braço um vil mosquito
sem
respeitar velhice, algo esquisito,
com tanto sangue pira,ali à mão...
A frase foi marcante pois lembrava
que a sua comissão se acabava
e a nossa, acabaria um dia,ou não...
11.
Tainadas e petiscos, noite afora,
para empurrar o copo,sem demora
dos
piras, p´ra cerveja ,sai a massa...
caçadas p´la
velhice, são galinhas
do mato,algo enfezadas, mas durinhas...
que mais não são que abutres p´ra desgraça...
12. O tempo foi passando,devagar,
mais lento que a vontade militar,
até surgir primeiro
fogachal...
falhada e curta fôra flagelação
que teve p´ros
Terríveis o condão
de ensinamento p´ro perigo real...
13. Primeiro ataque há medo e confusão
que geram caricata situação,
no ar pairavam sustos, grande é o drama...
às quatro morteiradas do inimigo
Terríveis, responderam...do
abrigo,
a tiro de espingarda e dilagrama...
14. As balas tracejantes da milícia,
p´ra quem ataque é óptima notícia,
à noite dão um ar de foguetório...
na messe, alto betão protege
audazes,
Almeida e Maia,acalmam seus rapazes
formando o grupo frente ao refeitório...
15. Ao pânico de início seguiu logo,
a calma a analisar poder de fogo,
co´a ajuda da milícia sabedora.
Saído da tabanca,Eusébio(b) berra:
- Pára essa merda toda, acaba os guerra
mi misti poupa bala,cá põe fora!!!
(b) milícia
16. Do simples dilagrama, à morteirada,
angústia e raiva ali é despejada,
travado apenas foi grupo terceiro.
Enquanto no quartel,há confusão,
Almeida e Maia formam pelotão
havia que impor ordem no terreiro...
17. Às vezes,lembro aqueles fins de tarde,
a lavadeira ali,fazendo alarde,
dos dotes que lhe deu a natureza...
Bajuda prometida de milícia,
rasgado tem sorriso de malícia,
a torneada Quinta, uma beleza...
18. Coragem mostra ter milícia nova,
por actos de bravura que renova,
a cada compromisso para acção.
Nas notas p´ra Bissau,
branca é chefia,
Inchunfla é comandado com mestria,
de cada vez que faz golpe de mão...
19.
Milícia velha um dia, por ciúme,
da nova, p´ra quem
ronco era costume,
fogueira quis fazer em pleno mato...
a ideia era atrair a
turra gente
tomar as suas armas facilmente,
ganhar direito à fama, ao estrelato...
20. Coluna estava imóvel, faz bocado...
de trás, parti, semblante carregado,
à cata do porquê dessa inacção...
- Nós tem que ter fogueira furriel!
Faz frio,
manga dele aqi nos pele...
pessoal pá,não guenta a situação...
21. Está a andar para o quartel,directamente!
Vais lá fazer um fogo que te aquente...
disse eu a Armando, o guia da secção.
-
Pessoal tem de ir nos sítio dos bandido
se não vais lá, furriel,
ficas fodido,
Armando...pá, faz queixa ao capitão...
22. Cantina foi o ponto de paragem
para
aquecer gargantas da friagem
daquela madrugada quase ronco...
Suborno fôra a via que eu usara
travando,com cerveja,a sanha ignara
do pessoal de Armando,guia bronco...
23. Com Marcelino Mata, a lenda viva,
operação fizemos, punitiva,
às tropas inimigas do sector.
Sucesso retumbamte o resultado
do chefe militar, idolatrado,
que olhava os p´rigos, sempre sem temor...
24. Do mato após dois dias regressados,
sofridos, fartos já dos enlatados,
comida,banho e cama são anseios...
Jantar nos negam dando por razão
abono de combate com ração,
sabendo não haver ali mais meios...
25. Do peixe da bolanha e arroz/cimento
que havia alimentado o regimento,
notada foi a ausência do Caseiro.
Já fartos do menú que este dispensa,
Almeida e Maia encontram na despensa
o dito, a comer frango com casqueiro...
26. Com
delicado pé, quarenta e cinco,
derruba Almeida a porta chapa/zinco,
com Maia,no apoio,do seu lado.
À guiza de castigo,fica então
contestatário Maia com missão
de vaguemestre,um mês, tendo agradado...
27. Deu frango, em quartos, com batata assada,
ração completamente inusitada,
e vacas extra em compra inolvidável...
A cada copo o preço era espremido,
cigarro tinha acção de lenitivo,
Rebenta Minas(c) fôra inigualável...
(c) Rodrigues
28. Rodrigues, ganadeiro,cá de fora,
que acolitava o Zé (d), a toda a hora,
manteve-se em funções por minha opção.
Provada foi justeza da medida
pois compra à populaça é conseguida
mercê dos seus recursos d´ocasião...
(d) Caseiro
29. P´la vaca são pedidos quatro contos,
cigarro e copo ali ganham descontos,
p´ra reduzir o preço ao animal.
-
Mil e quinhentos peso é pouco, pouco...
dou mil,cigarro e copo,não sou louco,
está magra e foi roubada,por sinal...
30. Nos mapas expedidos p´ra Bissau,
Terrivel,
capitão daquela nau,
seu nome apunha aos actos mais ousados,
daí
governadora rapidez
de olhar o
salvador do Cantanhez
em si e seu punhado de soldados...
31. Consolidada a imagem em Bissau,
João Terrível, tido um
homem mau
´statuto VIP, granjeou de vez.
Monocular figura,quase mito,
ao empurrá-lo a sul teria o fito,
d´impor a paz na mata Cantanhez...
32.
Cafal-Balanta asila meio cento,
garante-lhes espaço/sofrimento,
lugar junto à bolanha, em cova nua.
Dois dias p´ra aramar são preenchidos,
cansados dormirão,enfim,vestidos,
sem tecto,em colchão de ar,a olhar a lua...
33. Indescritível sensação de horror
com noites sem dormir, tal o temor,
desprotegido espaço nos calhara.
A urgência em aramar era ambição,
que todos partilhavam, pois então,
o medo já estampava cada cara...
Manuel Oliveira Maia
[Fixação/revisão do texto/edição: L.G.]
___________
Notas de L.G.:
(*) Vd. último poste desta série > 13 de Fevereiro de 2009 >
Guiné 63/74 - P3882: Tabanca Grande (117): Gumerzindo Caetano da Silva, ex-Soldado Condutor da CART 3331 (Cuntima, 1970/72), que nos lê na Alemanha
(**) Há muitas referências a Cafal no romance do Mário Fitas, já publicado em 'episódios': vd. poste de 28 de Fevereiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2593: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (11) - Parte X: O preço da liberdade (Fim)