Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) > Vistas aéreas da tabanca e aquartelmento do Xitole, em 1970, no tempo seco... Aqui viveu, combateu, sonhou, sofreu, suou, amou, tocou viola e sobreviveu, nestes vastos domínios, o nosso camarada David Guimarães que está há seis anos connosco, na Tabanca Grande... No seu bilhete de identidade, diz-se que é um SEXA. Faz anos hoje, 62 se bem li. O ano passado (e anos anteriores) passou, discreto e incólume, por entre as fiadas de minas & armadilhas da margem direita do Rio Corubal, mas este ano foi apanhado pelo Pel Ref Info do Carlos Vinhal... Em suma, passa a estar cadastrado. E a pagar imposto de palhota. O Parabéns a Você foi bisbilhotar a sua (dele) ficha. Sabe-se, por exemplo, que é casado com uma santa, de seu nome, Lígia. Vive em Espinho, ou dorme lá de vez em quando. Trabalhava no Porto, na Segurança Social, mas deixou-se dessas lides, reformou-se, que o trabalho é bom p'ró mouro... Consegue cometer a proeza de ser filho de um herói da I Grande Guerra!... Gosta de saltar de tabanca e tabanca. E anda sempre acompanhado da sua viola, pronto para o que der e vier. É um dos últimos heróis, românticos mas trôpegos, do Séc.XX. na Tabanca Grande, seguramente, um senador, um grande senhor... Faz parte de várias máfias, do Triângulo Verde & Rubro Bambadinca-Xime-Xitole até à Tabanca de Matosinhos...É fã do fado de Coimbra. E, claro, é também um Grande Dragão. O pior que lhe pdoe acontecer na vida é um dia não poder ir ao Encontro Nacional da Tabanca Grande. Fará tudo, mas tudo, para alterar a data, incluindo remover céus e montanhas, entre Espinho e Monte Real... Este artista é PORTUGUÊS!... e merece uma salva de palmas!!! Parabéns, David, em meu nome, e dos restantes editores e demais camaradas e amigos... Este anmo tens direito a rancho melhorado! Para o ano logo se vê... LG
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados
Em matéria de saias (ou melhor, de panos presos à cintura), o nosso David também tinha opinião abalizada e falava de cátedra. Escreveu ele um dia, ajudando também a quebrar um certo tabu (ou simples pudor dos machos) *):
Lembro-me de um romance de um camarada que comprou a liberdade de uma mulher. Os nativos pensaram que ele se tinha casado com ela... Bem, porreiro para ele! Não é segredo, foi verdade, e a testemunha foi o chefe de posto, isso mesmo, aquele que a mulher - linda ali, no Xitole!!! - morria de amores por um camarada nosso, já falecido...
E o Cardoso (outro furriel que estava lá desde 1966) ... Esse pedia-me para eu fazer guarda mais pela noite... Vinha-me acordar, para eu seguir para a tabanca: vinha sempre de casa da Mariana, com as calças na mão, descomposto... E ria, ria... Lá ia eu, sempre furioso:
- Seu porco! - e ia ter com a Mariana e ela, coitada, queixava-se:
- Guimarás (pronúncia dela), Cardoso manga de tolo, mas Mariana gostar dele (...)
Foto: © Luís Graça (2006). Direitos reservado
Em 6 de Abril de 1971 - ai foi há dias ! - , regressava eu das férias que tinha vindo gozar à metrópole… Chamava-se licença disciplinar - alguém me saberá explicará porquê, o Marques Lopes pelo menos saberá, teve tempo de aprender, poça !.... - mas era assim que se chamava...
E Lisboa ficava para trás, víamos as luzes, lindas. Voltávamos ao escuro... O Branquinho e eu... Sim, sim, esse mesmo que estava em Fá Mandinga e era mais Alentejano que eu - pois ele era de lá e eu não... No ar, a ver Lisboa ainda, diz-me o Branquinho:
- Guimarães, dói-me a cabeça...
- Chama a hospedeira, toca nessa campainha! - Que linda bajuda veio até à nossa beira...
- Faz favor...
- Olhe, fazia o favor, dói-me a cabeça...
- Momento - disse a hospedeira, linda (ou ... nós achávamo-la linda).
Daqui a pouco aí vem ela com um copo de água e uma pastilha que entrega delicadamente ao Branquinho, dizendo-lhe:
- Se não passar com isso chame que eu dou-lhe outra coisa... - E lá foi...
Ele vira-se para mim e pergunta:
- Que será? - Eu respondi, a rir, claro:
-Dorme...
Daqui a pouco, ilha do Sal e logo depois Bissalanca... e lá estávamos nós outra vez na Guiné... Caminho para a pensão Chantra - ou Chantre, já não me lembro… Bom, não interessa, era uma residencial onde se dormia. Que não era má e sobretudo não era cara, aliás nada era caro naquela terra ... para quem tinha dinheiro. E isso havia. Uma coisa: os graduados tinham, os outros nem tanto, parecia injusto, mas enfim...
Café Portugal ... que lindo, comprámos uma navalha cada um, três estalos (é que as havia de cinco). Aquela era de três. Mais um ronco... Aproveitei e comprei um relógio Seiko: que maravilha, trabalhava bem, o outro que eu tinha já havia apanhado água do rio Poulom… Mas, curioso, quem mo vendeu ficou com ele.... Esta do relógio nem conto, é mesmo de combatente e ignorante nestas merdas: não tinha rubi nenhum, mas funcionava, que se dane ! E dizia 17 ... Made in Japan. Fui a saber e parece que era made in Canarias....
À noite uma volta... Sim lá para o escuro, para lados de Pilão... Porra, a certa altura uma mulher a gritar por não sei quem... Poça, vamos lá, era o único lugar com luz... De trás da árvore surge uma voz:
- Oh furriel, furriel!?
Furriel ?... Mas nós estávamos à civil !... Bem, lá atendemos às solicitações da mulher, nem sei o que ela queria, e afastámo-nos rapidamente para os lados da luz, os canivetes de 3 estalos abertos no bolso… Correu tudo bem, lá chegámos à residencial... Bem, aconteceu nada, mas como é que nós éramos furriéis, vestidos à civil ? Fiquei a matutar nessa:
- Mistério…
E aí vou eu, passados dois dias. Lá aparece transporte para Bambadinca.... Barco civil, partida às três horas da manhã quando do macaréu… Tive tempo de levar o capitão do barco para o Bento e lhe dar vinho q.b. para ver se ele não ia... Bem, mas foi, levou o barco o ajudante dele... Mais duas garrafas de Casal Garcia para eles, pró caminho....
Passadas 13 horas estava em Bambadinca.... Lembrei-me do Camões, em perigos e guerras esforçados, pois que passei em cada sítio mais estreito do Geba!... Ainda bem que estava num barco a que chamávamos o barco dos turras, senão tinha apanhado um balázio na cabeça... A guerra existia aí, ao lado, Ponta do Inglês, Ponta Varela, do outro lado o Enxalé, mais à frente o Mato Cão… Mais isto e mais aquilo onde tanta porrada havia e eu, ali, num barco pequeno, cheio de géneros, o capitão caído de bêbado e foi o imediato que conseguiu atracar ao cais de Bambadinca...
Segui um cabo da intendência que era o responsável por aquele material.... Não, para o Branquinha tinham arranjado outro transporte, não me lembro agora. Coisas do destino: queriam que eu fosse naquele cruzeiro...
Finalmente, passadas 13 horas, estava eu dentro do Quartel em Bambadinca a fazer a barba para me ir apresentar ao segundo comandante… Merda, parecia a prova de matemática da maioria dos alunos de agora… Estava cansado e derrotado... Vou ter com o Alferes de Serviço, um rapaz do batalhão que me levou ao AC [Anjos de Carvalho]:
- Meu Major, eu venho de tal parte e vou para tal parte… -
Ena, que sermão!
- Vá aprender a apresentar-se!
Lá saí eu do gabinete, envergonhado, porra que o homem era maluco.... O Alferes dizia:
- Guimarães, ele faz sempre isto....
A seguir fui ao Saúl... aquele bom 1º Sargento que bebia muita aguardente e perguntei:
- Meu primeiro, como é que me eu vou me safar deste caralho ?
- Guimarães - dizia ele no seu inconfundível sotaque açoreano - tens que dizer como na recruta: Apresenta-se o Furriel tal, nº tal , que vem de tal parte e se destina-se a tal parte, por motivos de ....
- Vamos lá - disse eu para o lferes -, vamos lá ver se cola agora…
- V. Excia dá-me licença, meu major ?
- Sim, senhor! - responde ele, perfilado. – Apresenta-se a V. Excia o Furriel miliciano nº 17345368 Guimarães, pertencente à CART 2716 que se encontra em trânsito para a Companhia por motivos de ter cessado a sua licença disciplinar...
O Major, agora mais calmo, diz:
- Poça, vocês sabem apresentar-se porque não o fazem de imediato ?!
- Saiba V. Excia que venho de barco civil de Bissau há 13 horas e ainda não me encontro refeito da viagem…Para além disso ando medicado com Valium e a falta de descanso, de um cigarro e de um bom sono teria sido a causa da minha má apresentação.
O homem senta-se e diz:
- Guimarães, calma que nós já nos conhecemos da Pesada 2 [Vila Nova de Gaia] … Tome um cigarro e depois vá descansar… Agora sente-se aí...
Ai, quando saí de lá e contei ao Oficial de Dia, ele ficou espantado:
- O quê, ele fez-te isso?
E lá fui eu para a Tabanca do Brito.... Sim, foi lá que eu fiquei dois ou três dias até ter transporte para o Xitole....
E, pelo fim de tarde, o Machado e o Vacas de Carvalho, este á Viola, cantavam a cantiga com que comecei o texto... Era assim: o Vacas de Carvalho tocava e cantava e o Machado cantava com ele:
Lá porque usas sacola
e só por isso te dão esmola...
etc., etc.
Foi a primeira vez que ouvi esta tão linda cantiga e lembrei-me de mim, pelo meio dia, em frente ao temível Major, aquele Major a quem o Luís chamou uns nomes bem apropriados… Mas era assim... E mais me lembrava daqueles que, no mato, lutavam por aquilo que era deles, e lembrava-me de mim e de nós que ali andávamos... A fazer o quê, afinal ?
E eu que, quando estava com cerveja a mais, só tocava o silêncio por preferência - aquilo que os outros gostavam e pediam… Agora, mesmo sem uma cerveja, tocava esta também, no Xitole:
Lá porque usas sacola
e só por isso te dão esmola...
Porque era linda e fazia mais sentido ....
Um abraço.... David Guimarães
PS - Na altura tinha eu no aquartelamento um livro - Repórter no Vietname.... Porra, se o gajo tivesse ido à Guiné morreria mesmo, não de uma bala na cabeça mas só de susto....
Porto > Tertúlia do Porto > 24 de Maio de 2006 > O David Guimarães e o António Marques Lopes, da nossa... Tertúlia do Porto... O nome acabou por não ir avante, ou melhor, a Tabanca de Matosinhos acabou por vingar, agregando camaradas nossos do Grande Porto... E mais uma vez, o David estava lá, para a posteridade, para a história, para a fotografia.
Nessa noite fazia-se as honras ao famoso Chabéu de Frango, do Braima, um guineense que tinha (espero que ainda tenha) um restaurante no Centro Comercial de Santa Catarina, no coração do Porto...
E na legenda da foto, escrevi: "Pois é, amigos e camaradas, a nossa caserna, porque é virtual, não tem limites físicos, tal como o universo está em permanente expansão...Por isso, é bom saber notícias dos amigos e camaradas que se juntam para beber um copo, matar saudades, tabaquear o caso (como dizem os alentejanos), seja no Porto ou em Bissau... Eles foram dos primeiros a arranjar lugar na nossa caserna virtual, por mão do Sousa de Castro (se a antiguidade fosse um posto, entre nós, o Sousa de Castro hoje era marechal)... Entretanto, vamos continuando a marcar encontro, todos os dias, no Luís Graça & Camaradas da Guiné... Até um dia a gente decidir encontrar-se, mesmo de verdade, olhos nos olhos, para beber um copo, matar saudades, tabaquear o caso, incluindo o Zé Neto que é o veterano dos veteranos mas que, neste momento, anda a travar uma luta danada contra o cigarro: por favor, não lhe falem em tabaquear... coisa nenhuma!"...
Infelizmente, o Zé Neto (1929-2007) já não está cá para nos honrar com a sua companhia, o seu humor sarcástico, a sua experiência: era o patriarca do blogue, a morte privou-nos, cedo, da sua sua presença afectuosa e amiga... Resta-nos a sua lembrança, a sua saudade, os seus escritos...
Foto: © David Guimarães (2006). Direitos reservados
Nota de L.G.:
(*) Vd. poste de 17 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLVIII: Nem santos nem pecadores (David Guimarães)