segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7830: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (67): Na Kontra Ka Kontra: 31.º episódio




1. Trigésimo primeiro episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 20 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


31º EPISÓDIO

Um elemento da coluna tinha accionado um engenho explosivo, ficando com o corpo todo dilacerado. Nunca se chegou a saber se o engenho já lá estava na passagem anterior. Provocou ainda pequenos ferimentos nos que iam mais perto. Não produziu mais danos pois o Alferes Magalhães tinha sido muito preciso nas instruções dadas, no sentido de irem afastados uns dos outros seis ou sete metros. Um dos feridos ligeiros foi o Dionildo, que soltando meia dúzia de c… e f… depressa se recompõe.

Como autómatos, os homens tinham-se atirado para o chão e os mais nervosos, contrariamente às instruções recebidas, fizeram alguns disparos sem qualquer objectivo. Seguiu-se o silêncio, quer dos homens, quer dos animais da floresta. É então que o Alferes Magalhães com a garganta cheia do pó vermelho da picada, num grito rouco pergunta ao João Sanhá:

- Quem foi atingido?

À pergunta do Alferes Magalhães: - Quem foi atingido? O João Sanhá logo respondeu:

- Foi o Samba. Está todo desfeito.

O Alferes pelo hábito de conviver com o Dionildo solta, mas só para si, um c… f…

- Logo ele.

Naquele momento o Alferes quereria que tivesse acontecido aquilo a qualquer outro milícia menos ao Samba. Pensou na Asmau que mesmo que não ficasse viúva iria com certeza ficar com um homem mutilado, dependente. Gostou muito da Asmau e ainda gosta e isso está a angustiá-lo muito. Um sentimento de culpa instala-se nele. Pensa, sem qualquer razão, que podia ter dispensado o Samba, naquele dia. Tinha subestimado o inimigo quando pensava que qualquer aproximação a Madina Xaquili se faria pelo lado de Padada e sentia-se culpado.

O Alferes Magalhães monta uma defesa com alguns elementos metidos na mata, pois nunca se sabia com o que se contava, e depois de concluir que aquela mina não passava de um acto isolado, manda de imediato quatro homens à tabanca para que o rádio-telegrafista faça um rápido pedido de evacuação.

O Samba acaba por morrer durante o transporte para a tabanca.

Cerca de uma hora depois chega um helicóptero que parte como veio. A guerra estava ali e as coisas iriam precipitar-se.

Embora o Samba não tivesse família na tabanca toda a população organiza e participa no “choro”. Para todos os metropolitanos mais parecia uma festa. Houve música e cantares, tendo o Adramane disponibilizado uns cabritos para todo o pessoal comer.

Dada a falta de condições para conservar minimamente o corpo, ao fim da tarde é enterrado no “cemitério”, local incaracterístico, situado na mata logo a seguir à zona desmatada. O Alferes acompanhou todos os rituais embora sempre acabrunhado. Da cabeça dele não saía a pergunta: - Porquê ele? Tentou ver a Asmau, para lhe dar uma palavra de conforto, mas não conseguiu descobri-la. Devia estar recolhida na morança dos pais.

Tinha mandado uma mensagem para o comando de Galomaro a contar o sucedido e aproveitou para pedir um reforço de material e munições, especialmente para o cano do morteiro 60. Pouco comeu ao jantar e logo se dirigiu para o “bentem” para conferenciar com o Chefe da Milícia. Se o Alferes Magalhães andava incomodado com a morte do Samba, o João estava apavorado com o agravar da situação. Não era para menos, tratava-se da primeira acção do PAIGC nas imediações da tabanca. Talvez já não fosse colher os próximos produtos das suas lavras…

Coube ao Alferes Magalhães, com a sua melhor preparação militar, acalmar o João e explicar-lhe que se tinha que reagir e sobretudo não demonstrar aos subordinados qualquer sentimento de insegurança. Acrescentou que, perante o acontecido, os comandos de Galomaro e de Bafata iriam com toda a certeza reforçar a guarnição da tabanca. Convencido ou não o João parece mais calmo.

Como o Braima estava presente com o seu kora, depois da sua participação no “choro”, o Alferes pede-lhe para tocar qualquer coisa, o que ajudou muito a desanuviar o pesado ambiente.

Todos estiveram no “bentem” até mais tarde nessa noite a ouvir os acordes do Braima. O Alferes achava por um lado que os guerrilheiros depois daquela acção não iriam aparecer de imediato pois achariam que a tropa Portuguesa estaria a postos, por outro lado a mina detonada não se dirigiria à sua tropa mas sim a uma futura coluna de reabastecimento de Galomaro. Pensou em todas as possibilidades. Tinha-se enganado sobre a direcção da primeira aproximação do PAIGC e não queria cometer mais erros. Não tornaria a deitar-se tão cedo como era costume para não dar vantagem ao inimigo, se num ataque o apanhassem a dormir, tanto mais que é ele que manobra o morteiro 60. Poupar as dezasseis granadas era também essencial e só confiava nele próprio para isso.

Antes de se deitarem foram os três graduados dar uma volta pelos postos de sentinela, que à noite eram todos dentro da tabanca, incutindo ânimo e sentido de responsabilidade de forma a não se deixarem dormir e estarem de ouvidos bem atentos. Como a escuridão era total a vista não ajudaria muito a detectar uma possível aproximação dos guerrilheiros.

No dia seguinte ao incidente tudo já decorria como se nada tivesse acontecido, apenas se notava uma menor alegria nos semblantes dos africanos.

À hora do almoço, depois do patrulhamento habitual, já estavam os dezasseis metropolitanos sentados à mesa para almoçar quando chega o João e se dirige ao Alferes:

- Tenho uma coisa importante a dizer-lhe. Gostava que fosse a sós. O Alferes levantou-se, apreensivo, e afastou-se um pouco com o João. Este, em voz baixa, continuou:

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7809: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (66): Na Kontra Ka Kontra: 30.º episódio

Guiné 63/74 - P7829: Álbum fotográfico de João Graça (7): Djubis do Cantanhez, um lugar que tem de ser bom para nascer, crescer, aprender, brincar, trabalhar e viver... com saúde, em liberdade, em paz, em harmonia com a natureza (Parte III)






Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Faro Sadjuma > 10 e Dezembro de 2009 >  17h00 > De regresso a Bissau, vindo de Iemberém, com passagem por Guileje >  > Meninos tristes de Faro Sadjuma (*)...


Fotos: © João Graça (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


[ Selecção / edição: L. G.]
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Nota de L.G.:


(*) Vd. postes anteriores da série:


20 de Fevereiro de 2011 &gtGuiné 63/74 - P7827: Álbum fotográfico de João Graça (5): Djubis do Cantanhez, um lugar que tem de ser bom para nascer, crescer, aprender, brincar, trabalhar e viver... com saúde, em liberdade, em paz, em harmonia com a natureza (Parte I)


20 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7828: Álbum fotográfico de João Graça (6): Djubis do Cantanhez, um lugar que tem de ser bom para nascer, crescer, aprender, brincar, trabalhar e viver... com saúde, em liberdade, em paz, em harmonia com a natureza (Parte II)

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7828: Álbum fotográfico de João Graça (6): Djubis do Cantanhez, um lugar que tem de ser bom para nascer, crescer, aprender, brincar, trabalhar e viver... com saúde, em liberdade, em paz, em harmonia com a natureza (Parte II)












Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém > 6 e 9 de Dezembro de 2009 > Meninos do Cantanhez...







Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Farim > 9 de Dezembro de 2009 > Meninos do Cantanhez (*)...

Fotos: © João Graça (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados





[ Selecção / edição: L. G.]
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Nota de L.G.:


Vd. poste anterior da série > 20 de Fevereiro de 2011 >Guiné 63/74 - P7827: Álbum fotográfico de João Graça (5): Djubis do Cantanhez, um lugar que tem de ser bom para nascer, crescer, aprender, brincar, trabalhar e viver... com saúde, em liberdade, em paz, em harmonia com a natureza (Parte I)

Guiné 63/74 - P7827: Álbum fotográfico de João Graça (5): Djubis do Cantanhez, um lugar que tem de ser bom para nascer, crescer, aprender, brincar, trabalhar e viver... com saúde, em liberdade, em paz, em harmonia com a natureza (Parte I)







Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém > 6 de Dezembro de 2009 > Meninos do Cantanhez em dia de festa (baptizado)...









Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > São Francisco (entre Iemberém e Guileje) > 6 de Dezembro de 2009 > Meninos do Cantanhez em dia de festa (casamento)


Fotos: © João Graça (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados




 O João Graça,  médico e músico, membro da nossa Tabanca Grande, passou duas semanas de férias na Guiné-Bissau, de 5 a 19 de Dezembro de 2009.  Ofereceu os cinco primeiros dias  (de 6 a 10 de Dezembro de 2009), para trabalhar como médico no Centro de Saúde Materno-Infantil de Iemberém, no Cantanhez, com apoio da AD - Acção para o Desenvolvimento. 


Para além de Bissau e do Cantanhez, esteve nos Bijagós, na zona leste (Banbadinca, Bafatá e Gabu) e na região do Cacheu (São Domingos) ... 


As fotos referentes a miúdos do Cantanhez (de que publicamos a I Parte) foram tiradas nesse período, de 6 a 10, em sítios como Iemberém, São Francisco, Farim do Cantanhez, Guileje, Faro Sadjuma...  


Voltamos a  publicar a talvez a melhor do álbum do João, o menino de Iemberém, tirada no terreiro da tabanca, em dia de festa: Espantosa, a primeira foto de cima, em que o menino de Iemberém como que nos interpela, a todos nós, não só os pais-fundadores e os homens grandes da Guiné-Bissau,  mas também todos nós, portugueses, europeus e cidadãos do mundo...  Que lugar há para ele neste mundo que devia ser dele e  nosso mundo, o único lugar que ele tem, que nós temos, para nascer, crescer, aprender, viver, amar, trabalhar  e morrer... com saúde, em liberdade, com dignidade, em paz, em equilibrio com a natureza?


[ Selecção / edição: L. G.]
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Nota de L.G.:


Vd. postes anteriores da série:


24 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5531: Álbum fotográfico de João Graça (1): Médico em Iemberém por cinco dias


27 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5548: Álbum fotográfico de João Graça (2): O Fatango ou macaco fidalgo (Procolobus badius) do Parque Nacional do Cantanhez


1 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5577: Álbum fotográfico de João Graça (3): Os pescadores de Cananima, Rio Cacine


12 de Julho de 2010 >Guiné 63/74 - P6720: Álbum fotográfico de João Graça (4): Uma noite memorável na terra de Kimi Djabaté, a tabanca jacanta de Tabatô

Guiné 63/74 - P7826: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (36): Ida ao dentista em Farim

1. O nosso Camarada José Eduardo Oliveira - JERO -, (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Binta, 1964/66), enviou-nos hoje a seguinte mensagem:


Salvo as devidas distâncias e com o devido respeito recordei-me desta história a quando de uma recente postagem sobre uma ida do então General Spínola ao estomatologista. No HM 241, em Bissau. Com o seu monóculo a ser confiado a um Médico durante o tempo da consulta dentária.
«É evidente que quem o tratou foi o Chefe, mas havia necessidade que alguém tomasse conta do monóculo e logo me tocou a mim. É engraçado que senti aquele receio de ser o fiel depositário de tão solene objecto. Mas consegui não o deixar cair!!!»
(Mário Bravo)



IDA AO DENTISTA A FARIM


Por volta de Novembro ou Dezembro de 1965, quando já contávamos cerca de 18 meses de comissão, chegaram ordens via rádio a Binta, vindas da sede do Batalhão em Farim, para uma ida ao dentista.
Militares da “675” aguardam transporte para Operação “TIRA-DENTE”

O Alferes Médico Martins Barata deu-me as devias instruções e em pouco tempo arranjei uma lista de militares com necessidade de cuidados de medicina dentária. À distância no tempo há que recordar que a visita a Farim era para arrancar dentes e não para os arranjar.

Num dia de manhã a coluna dos militares com dentes “estragados” arrancou para Farim.

Sentados nos Unimogs, com a G-3 entre as pernas e com o lenço na boca. Era naqueles dias que quem seguia atrás da primeira viatura comia pó que se fartava.

Chegámos a Farim sem problemas de maior e como Furriel Enfermeiro recebi instruções para orientar a consulta .Ao ar livre, está claro. Duas cadeiras e duas filas, frente a um Alferes Médico e a um 1º.Cabo auxiliar de enfermagem.  Cada “cliente” abria a boca, dizia qual era o dente ou os dentes estragados, levava uma injecção (anestesia) e vinha para o fim da fila. Passados uns minutos avançava para a extracção. Abre a boca, respira fundo e… alicate. Já está.
Meia dúzia de minutos depois do início das primeiras extracções, e como é comum na vida militar, alguém segredou ao parceiro do lado que o cabo é que era “bom”.

A fila que destinava ao médico ficou reduzida ao mínimo. Tentei perceber o que se passava e refazer a “fila” pró Alferes. Mas não consegui grande coisa.

A fila do Cabo engrossava e deve ter “facturado” o triplo das extracções em relação ao seu superior.  Foram recomendados alguns cuidados de higiene aos desdentados e com a malta toda a cuspinhar sangue lá regressámos a Binta. O lenço verde deu um jeitão.
O pó avermelhado da “estrada” é que foi difícil de suportar… mas a meio da tarde estávamos em “casa”.Sem problemas de maior. Além das dores na boca, está bem de ver.

Termino o registo desta operação “tira-dente” com um testemunho pessoal. Também então precisava de ter ido ao dentista… mas não fui.
Quando em Maio de 1966 regressei da Guiné andei cerca de 2 anos a tratar dos dentes. E tiveram que me extrair 11 (onze) dentes. Uma das extracções correu mal e tive uma alveolite. Como o próprio nome indica é uma infecção no alvéolo. Regressei ao dentista e ele mandou-me abrir a boca. Enquanto o diabo esfrega um olho fez-me uma raspagem. A frio, sem anestesia. Mais tarde explicou-me porquê. Mas naquele momento dei um berro que se deve ter ouvido dois andares acima do consultório. Dei um berro e um salto na cadeira.
Na “descida”… lembrei-me do Cabo. O de Farim. Porque é que não fui para a fila dele?
Não me tinha doído tanto e tinha sido à borla…
Acabei por contar a história do Cabo-dentista de Farim ao Médico-dentista de Alcobaça.
E consegui, mais tarde, um desconto na esquelética. Que é uma das minhas recordações da Guiné. Onze dentes postiços. Seis em cima e cinco em baixo.
Bons velhos dentes, digo, tempos.
De Binta. Da Guiné.
E quanto partir… até posso cá deixar a esquelética.
Pró museu da minha Companhia. Da seis, sete, cinco.
Mas não tenho pressa nenhuma…
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
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Nota de M.R.:
Vd. o último poste desta série em:
3 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7544: O Mural do Pai Natal da Nossa Tabanca Grande (34): Quem tem cu… tem continuação… (José Eduardo Oliveira - JERO)

Guiné 63/74 - P7825: Os nossos médicos (24): Convite ao Cor Art Ref Morais da Silva para "partir mantenha", quando vier ao Porto (Amaral Bernardo)





Guiné > Região de Tombali > Bedanda (?) > 1971 >   Foto do Álbum de Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Med, CCS / BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72)... Junto ao obus (não se percebe se está inoperacional, ou se está camuflado)... Recorde-se que ele esteve em Bedanda, durante todo o ano de 1971, tendo sido rendido no final do ano pelo Mário Silva Bravo. Ambos são formalmente membros da nossa Tabanca Grande.

Foto: © Amaral Bernardo (2011). Todos os direitos reservado

1. Mensagem do nosso camarada e amigo Amaral Bernardo, médico e professor universitário, dirigida ao Cor Art Ref Morais da Silva,  também professor universitário, com um Post Scriptum ao editor L.G.:

Senhor Coronel Morais da Silva,

Apesar de o senhor entender, a propósito de um acidente que poderia ter acontecido a qualquer mortal e não necessariamente a um médico, me colar a mim, médico, a essa situação, independentemente das consequências para mim, não me deve qualquer pedido de reparação (simples desculpas, nem que seja a fazer figas), porque a sua estrutura e orgulho de militar não lho permitem fazer publicamente. Não obstante, eu gostaria de me encontrar consigo, para exorcizar. 


O senhor tem as minhas coordenadas. Aguardo que me envie as suas. Será o sinal de que o senhor também desejará falar nestes lamentáveis assuntos, longe deste palco, com a sinceridade e, porque não, a humildade que merece. Se assim o entender, partiremos mantenha  e um café - e, porque não,  um almoço -,  aqui nesta cidade que é "uma naçõn"... à moda do Porto, claro!

Por mim dou este assunto encerrado, aqui. Amaral Bernardo [, foto à esquerda].


PS -  Luís, agradeço-te a maneira com conduziste este delicado assunto.Sai enaltecido este espaço que comandas e principalmente tu. Tenho duas ou três notas breves para te enviar, mas vou deixar que isto serene mais. Se vieres à Tabanca de Matosinhos ou ao Porto, liga-me .Diz ao homem do blogue aqui do norte que me contacte. Queria ir encontrar-me com a malta de Bedanda. Obrigado. Abraço forte. AB

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Nota de L.G.:

Guiné 63/74 - P7824: Blogoterapia (177): A minha gratidão, com um abraço do tamanho do mundo, a todos os que se preocuparam com o meu estado de saúde (Rui Ferreira)

1. Mensagem do nosso camarigo Rui Ferreira ( Cor Ref, que cumpriu uma comissão de serviço na Guiné como Alf Mil na CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67 e outra como Cap Mil na CCAÇ 18, Aldeia Formosa, 1970/72):

Data: 19 de Fevereiro de 2011 12:27

Assunto: Gratidão

Meu caro Luis,

Na tua pessoa, saúdo todos os Camarigos da nossa tertúlia, de quem, por motivos da maioria conhecidos, tenho estado afastado desde que há cerca de três meses, quando comecei o meu calvário repartido entre o hospital de Santa Maria e o hospital de Viseu. Só regressei a casa esta quarta-feira. 

Foi, como deves calcular, uma luta desigual contra o espectro da morte. Recusando-me a aceitar o abandono desse ténue sopro de vida, lá fui suportando as dores que nem ao pior inimigo desejo.

Penso que finalmente estou no bom caminho da recuperação. Aproveito para vos desejar aqui p que não pude na altura: um bom ano de 2011. A todos que se preocuparam com o estado precário da minha saúde, a minha gratidão, a todos um abraço do tamanho do mundo.

Rui Alexandrino Ferreira
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Nota de L.G.:

Guiné 63/74 - P7823: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (5): Pedaços da vida dum bígamo...

Texto de Belmiro Tavares, ex-Alf Mil, CCAÇ 675 (Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), Prémio Governador da Guiné (1966), empresário hoteleiro, camarada e amigo do nosso Jero, membro do nosso blogue, nosso camarigo:

Pedaços da vida dum… Bígamo
Texto e fotos:  © Belmiro Tavares (2011). Todos os direitos reservados

Todos sabemos, pelo menos em termos teóricos, o que é a Bigamia; se perguntássemos aos soldados do senhor de La Palisse o que é Bigamia eles responderiam, mais ou menos, como segue: 


- Bigamia é o oposto a Monogamia!  - A verdade à La Palisse não é bem isto, mas à falta de melhor.

Também é do conhecimento geral que, segundo a Lei Portuguesa, um homem não pode casar com segunda mulher enquanto não se livrar da primeira por divórcio ou morte; a libertação do homem (ou da mulher) pode ainda ser conseguida (caso raro) através da anulação do casamento via Papal.

Todos aprendemos, há mais ou menos tempo, que não há regra sem excepção; acontece porém que, por vezes, a excepção é própria regra.

Será que perante um tal axioma – afirmação tão simples, tão clara, tão evidente que não carece demonstração – é possível haver excepção?!

Também neste caso há lugar à ressalva quando mais não seja… para confirmar a regra.

Verdade, verdadinha! 





Ainda vive, graças a Deus, na região da Grande Lisboa, um português, dito de rija têmpera, que, embora não tenha convivido em simultâneo com duas mulheres, debaixo do mesmo tecto… foi legalmente casado com duas senhoras e convivia com ambas em dias determinados… sob tecto diferentes.

Possuía (ainda possui) duas casas na região da grande Lisboa: uma no Beato onde passava as noites de segunda, quarta e sexta-feira com a senhora com quem casou em primeiro lugar (era mãe da sua única filha que lhe deu três netas); e um apartamento na Amadora onde passava as noites de terça, quinta e sábado com a segunda esposa da qual não teve filhos, propositadamente – problemas conjugais já ele tinha em abundância. Os domingos eram divididos religiosamente e alternadamente pelas duas.

Aquecidos os motores com este intróito, passamos a narrar a história (alguns retalhos) do nosso bígamo começando pelo alicerce.

O nosso herói, Jaime de seu nome (e mais não digo),  nasceu na década de vinte do século passado, na zona oriental de Lisboa, casa que pertencia a seus pais.

A vida era difícil para todos – ou para quase todos –; o Jaime começou a trabalhar ainda cedo – fazia pela vida – para apoiar o equilíbrio do orçamento doméstico de seus pais, era uma atitude comum naqueles tempos economicamente complicados.

Foi conseguindo empregos à sua medida e, trabalhando duro, conseguiu ir amealhando umas magras notas no escaninho da sua mala. Naqueles tempos, no campo, trabalhava-se de sol a sol; na cidade… não havia horário ou, se havia, era só para fiscal ver… ou quase. 



No início da década de cinquenta casou com pouca pompa e alguma circunstância com uma senhora de nome Elisa (e por aqui me fico) que era cozinheira; convirá referir a profissão, porque, creio firmemente que o facto de ela ser cozinheira tenha influenciado positivamente o relacionamento entre ambos; O Jaime sempre foi um bom garfo.

Nos anos que se seguiram à guerra, a vida continuava a não ser fácil: o trabalho escasseava; as dificuldades avolumavam-se; o nosso herói, não sendo excepção, decidiu procurar novo meio de vida noutras paragens, emigrando para o Brasil donde, roído de saudades, regressou à Pátria, menos de dois anos depois de ali ter chegado.

De regresso a Lisboa conheceu a Joquinha passando a dividir o tempo disponível com ela e com a Elisa. Além do emprego, dedicava-se ao biscate que além de uma receita extraordinária (sem impostos) permitia que fácilmente pudesse desenfiar-se de ambas.

A sua vida na capital era cada vez mais era atribulada devido à sua imprevidência.

Depois de várias peripécias, a Joquinha sugeriu que fossem para a sua terra Natal – Fornos de Algodres -; lá poderiam viver calmamente o seu amor; o Jaime concordou e começou a tratar da viagem e do que levaria consigo. 



A Elisa apercebeu-se e escondeu-lhe a roupa para impedir – no mínimo dificultar – a sua saída de casa. 


Sugeriu à Joquinha que fosse de comboio; que arranjasse casa e ele encontrar-se-ia lá com ela dentro de dias. 

Reunidos os poucos haveres que podia levar consigo e algumas ferramentas (entre estas um torno que deve ser uma peça muito especial como veremos) montou-se na motoreta e abalou em direcção a Fornos.

Pernoitou em Coimbra e, logo pela manhã, continuou a viagem.

Era Janeiro! Uma chuva miúda mas persiste fustigava-o; sentia-se enregelado até ao tutano dos ossos.

Mais umas horas de motoreta e... Fornos à vista!



Apareceu-lhe ali um cão descomunal que se empinou à sua frente mostrando uns dentes enormes, ameaçadores; não teve tempo de se desviar. Atropelou o cão que, assustado e a ganir, desapareceu; o Jaime andou aos trambolhões no alcatrão, rasgou o casaco e bateu com o capacete num marco da estrada, amolgando-o. “Mais um salvo pelo capacete”, pensei eu. Ainda hoje o guarda aquele capacete como relíquia! 

O nosso herói sentou-se na berma da estrada para fazer contas... à vida. Entendeu que aquele cão seria o diabo a pretender impedi-lo de se aproximar de uma das suas queridas.



Reiniciou a viagem! Chovia ainda! Fornos Algodres escondia-se no nevoeiro. Assustou-se ao ver outro arrenegado que segundo ele, também quereria impedi-lo de se abeirar da sua Joquinha: viu na rua um grande molho de feno com um guarda-chuva em cima; “aquele monte de palha” começou a deslocar-se, levando o guarda-chuva consigo. 

O Jaime estarreceu! Seria possível que uma nova forma de mafarrico pretendesse impedi-lo de se reajuntar com quem levava no coração e não lhe saia da cabeça?!

Apareceu a Joquinha! Depois dos cumprimentos da praxe manifestou o seu pavor por causa daquelas aparições demoníacas. A Joquinha riu-se descaradamente e decifrou o enigma: - aquilo é um homem com uma palhoça; (uma espécie de sobretudo feito de palha de centeio) é usada principalmente pelos pastores para se protegerem do frio e da chuva.

O Jaime era um menino da capital: não sabia o que era um pastor e muito menos uma palhoça!

As casas eram de granito, muito escuras e não tinham chaminé; o fumo saia pelas juntas das telhas. Aquilo era para ele um mundo novo e assustador... era o fim do mundo!

Não demorou a arranjar emprego; era a época do volfrâmio que “dava dinheiro barato” aos mineiros e a quem o comercializava; vivia-se bem!

Em Lisboa a Elisa colocou anúncios nos jornais: “Marido desapareceu! Procura-se! Não me responsabilizo pelas suas dívidas”!

Começou a trabalhar numa serralharia e fez questão de ali instalar o “seu torno”.

Um indivíduo, ligado ao volfrâmio passou por ali; viu o torno; mirou-o por todos os lados e perguntou:
- De quem é este torno?
- É do Jaime; um gajo que veio de Lisboa e é casado com uma mulher de Fornos; veio para cá há pouco tempo.
- A mulher dele está em Lisboa; está é a amante; onde está o Jaime?
- Foi almoçar! Deve estar a chegar!

O Jaime chegou e... abraçou o irmão. Encontro puramente casual! O forasteiro reconheceu o torno! Aquele torno deve ser muito especial para ser tão facilmente reconhecida denunciando o seu dono.

O Jaime, perante a insistência do mano para que voltasse a Lisboa. Respondeu que ainda era cedo: 

- Tenho de arranjar dinheiro para voltar; não posso aparecer junto da Elisa de mãos a abanar; só mais uns meses! 

Despediram-se!

O irmão veio para Lisboa e informou a cunhada do paradeiro do marido.

Uns dias mais tarde o mano mandou recado por outro “volframista” ao nosso herói que a Elisa e a filha estavam a caminho... de Fornos. O Jaime preparou o estratagema: num anexo à oficina “montou”as suas “instalações domésticas”; colocou lá um colchão, cobertores, tachos velhos, uns pratos e um fogareiro a petróleo.

A Elisa chegou com a filha e foram recebidas no “seu palácio”.  A Elisa chorou que nem uma Madalena e pediu perdão por lhe ter escondido a roupa e por ter “anunciado” o sei desaparecimento.

O Jaime almoçou com a esposa (a primeira) e a filha e convenceu-as a voltar a Lisboa; ele também voltaria depois de aforrar mais algum dinheiro.

A Elisa e a filha regressaram à casa do Beato, esperando ali, ansiosas, pelo regresso do marido e pai.

O Jaime começou logo a convencer a Joquinha que aquilo não era vida; o melhor seria voltarem ambos para Lisboa.

Acordo fechado!  Reuniram os “haveres” e viajaram até à capital.  Alugou um apartamento na Reboleira onde se instalou com a Joquinha e... recomeçou a fazer vida “dupla”.  A breve trecho comprou a casa da Reboleira, deixando de ser inquilino.

Passo seguinte: convenceu a Joquinha a “emigrar” para Lourenço Marques, onde tinha uma irmã bem instalada na vida; ele emigraria para a África do Sul e dava notícias; ela entraria na África do Sul e ali dariam início uma nova vida.

Bom planeamento! Tudo correu como previsto.

Na África do Sul teve de passar pelas dificuldades inerentes à entrada num país estranho onde deparou com clima, língua, mentalidade e cultura totalmente diferentes daquilo a que estava habituado. Comeu ali, como soi dizer-se, “o pão que o diabo amassou”.

Muito a custo foi vencendo as dificuldades que iam surgindo até que arranjou emprego dentro do ramo – ele era caldeireiro, canalizador e ferreiro mas também “arranhava” um pouco de pedreiro, soldador, electricista e ladrilhados; era o que se chama um “faz tudo” um polivalente ou ainda “homem dos sete ofícios”.

Amargurado pelo afastamento da Elisa e da filhinha que haviam ficado na sua casa do Beato, ia vivendo corajosamente... um dia de cada vez no seu “degredo”.  Logo que lhe foi possível ordenou à Joquinha que deixasse Moçambique e se lhe juntasse.

A Joquinha também era cozinheira – caso estranho – como convinha a um bom “garfo”.

O nosso Jaime entendeu (e fez constar, como lhe convinha) que era uma grande graça de Deus o facto de entrar na sua vida uma nova cozinheira.

Como não tinha averbado o casamento com a Elisa no seu BI, foi com a Joquinha ao Consulado de Portugal e ali deram o “nó” – eis a razão por que afirmo que ele era “legalmente” casado também com a Joquinha.

Viveram alguns anos felizes e contentes em África (assim suponho pelo que vi por cá uns anos mais tarde).  Prometeu à Joquinha que casaria com ela “com papel passado pelo padre”, logo que possível.

Cerca de 1960 decidem regressar à Pátria... e aos enredos provenientes da sua imprudência.

Recordo que o nosso herói era canalizador – picheleiro lá no Norte – e, deste modo, sabia “canalizar a água para o seu moinho”; como também era soldador, sabia “remendar os buracos” em que, incauto, se metia, umas vezes com a convivência de uma esposa, outras com o apoio da outra e frequentemente com a colaboração e complacência isolada e secreta de ambas.

O Jaime “das duas mulheres” – como era carinhosamente tratado entre amigos – arranjou emprego no Hotel Dom Carlos em Lisboa, nas imediações da praça Marquês de Pombal.

Não sei bem como, mas a breve trecho, o pessoal do hotel, cedo tomou conhecimento dos seus segredos sentimentais. Como era um excelente companheiro e também porque ajudava de boa vontade os outros trabalhadores do hotel a solucionar problemas da sua profissão (ões) em suas casas, todos colaboravam para que as suas duas “esposas” não soubessem uma da outra, poupando assim o amigo a novos e complicados dissabores. A todos ele convenceu que uma esposa não sabia que... “afinal havia outra”!

As telefonistas eram as suas principais cúmplices; sabiam perfeitamente onde ele estava – ou devia estar – em cada dia da semana.  Se uma das esposas telefonava a perguntar pelo Jaime num dia em que ele “não lhe pertencia”, a resposta era imediata:
- O Jaime está na Malveira (por vezes no Porto) noutro Hotel do Patrão; deve voltar amanhã.

Tinha uma queda especial para lidar com o outro sexo; a todas (solteiras, casadas ou... assim assim) pedia um beijo para consertar o que elas lhe pedissem no serviço diário. Consta mesmo que entrou no chuveiro com uma colega para lhe “esfregar as costas” durante o banho.

Um dia a chefe do escritório afirmava a “pés juntos” que a Elisa não sabia da Joquinha e vice-versa, quando alguém a interpelou nestes termos:
- Oh Elsa! (era o nome da chefe em causa) se o teu marido te faltasse em casa todas as segundas, quartas e sextas e te aparecesse apenas em domingos alternados, acreditarias que ele prestava serviço “extraordinário” na Malveira?

Foi uma bomba! O estrondo e o fumo espalharam-se! Todos compreenderam que haviam sido agradavelmente enganados durante tantos anos. Mas assim continuaram a colaborar na manutenção do segredo do amigo; poderia acontecer uma tragédia nefasta se alterassem o seu comportamento usual.

Um dia entrei no carro para ir trabalhar e... a bateria estava descarregada. Telefonei ao Jaime. Imediatamente ele pôs-se a caminho levando carro, “cabos” (alicates) para dar carga à minha bateria.

Pedi-lhe que me seguisse até à oficina onde eu ia deixar o carro e dali dava-me boleia para o serviço. Quando saí da oficina (Av. Marconi, mesmo ao lado do Ministério do Trabalho) o Jaime olhava tão atentamente para um dos edifícios que não ouviu o meu chamamento. Aproximei-me e perguntei-lhe o que observava com tanta deferência.
- O Senhor não imagina! Pouco depois de vir de África a Joquinha trabalhava neste prédio; um dia, ao fim da tarde, passei por aqui para a levar comigo para casa; quando cheguei a Joquinha e a Elisa esbofeteavam-se em plena rua; empurrei-as para um monte de areia que aqui havia. Quando me reconheceram fugiram uma para cada lado; eu fui sózinho para casa. Pouco depois chegou a Joquinha, alegre e fagueira, como se nada tivesse acontecido. Nunca nenhuma delas me falou neste assunto!

Já nos anos oitenta, em casa da minha sogra, a conversa com o Jaime – acerca da sua vida com duas mulheres – estava animada; a minha esposa perguntou-lhe:
- Se alguém decidisse que uma das suas mulheres tinha de morrer agora, qual escolhia para ficar consigo?

O Jaime, sem hesitar, respondeu:
- Quero as duas! Elas são muito diferentes mas eu gosto de ambas da mesma maneira! Não quero que nenhuma morra! Que seria de mim sem uma delas?!

Um dia o azar bateu-lhe à porta; ao tentar recuperar um parafuso – mesmo profissionalmente não desperdiçava um tostão – ficou sem uma vista; poupar um parafuso, saiu-lhe caro! Foi parar ao Hospital dos Capuchos onde ficou internado cerca de dez dias.

As esposas começaram a perguntar por ele; as telefonistas receberam logo instruções para lhe evitar aborrecimentos acrescidos. A resposta era a mesma para as duas:
- O Jaime foi em serviço urgente para um hotel que o patrão comprou no Porto; como o hotel ainda não abriu, não tem telefone (ainda não tinha chegado a era dos telemóveis) o patrão foi com ele e dá noticias diariamente; vão ficar lá cerca de dez dias.

Quando voltou às “suas casas” explicou que não falou do acidente, porque não queria ser visitado no hospital; a mesma justificação serviu para as duas.  Como habitualmente as duas esposas acreditaram... para não arranjar mais confusões que seriam prejudiciais... para os três.

Em consequência de não ter um olho, o Jaime estaria inibido de conduzir automóveis. Isso é que era bom! Na DGV nunca se aperceberam desta mazela. Várias vezes renovou a carta e ainda hoje conduz, com 85 anos. A polícia mandou-o parar várias vezes e nunca se aperceberam que ele via apenas “a 50%”.

Embora empregado por conta d’outrem o nosso herói viveu sempre razoávelmente bem – à sua maneira – porque, além do emprego, fazia uns bons biscates que lhe proporcionavam um rendimento extra de bom nível e livre de encargos fiscais. 



Devidamente autorizado, usava máquinas e ferramentas da Entidade Patronal; ele merecia que assim acontecesse, porque estava sempre disponível para trabalhar a qualquer hora do dia ou da noite e nunca solicitou qualquer remuneração extra – caso raro. 

Com certa frequência ia jantar fora com uma esposa... ou com outra. Também os almoços eram divididos equitativamente pelas duas!

O Jaime era um bom “garfo” e adorava pratos “leves”: um arroz de marisco no Linhó, um cozido na Malveira da Serra, uma feijoada ou grão com mão de vaca e outros pratos... mas sempre “leves”.

Quando ficava com um “grão na asa”, não o preocupava um suborno para não ficar sem carta.

Uma das vezes em que tal aconteceu vinha do restaurante “O Fuso” em Arruda dos Vinhos. Na véspera recebeu o pagamento dum “biscate” com que já não contava e decidiu almoçar “à rico” – como ele dizia - com a Joquinha. Na manhã seguinte fez o mesmo com a Elisa, ao aproximar-se da portagem de Alverca, a polícia mandou-o parar. A conversa com a autoridade estava demorada; a esposa saiu do carro e foi em socorro do marido; entrou “de chancas” perguntando “delicadamente” ao Jaime:
- Que raio se passa aqui?
- O Sr. Guarda, responde o Jaime, quer ficar com a minha carta só porque eu bebi um “nadinha” acima do limite; tu sabes a falta que a carta me faz!

Ela, decidida, encarou o guarda e disparou:
- Isso é coisa que não se resolva com cinco contos?!
- Tem de ser oito – retorquiu o guarda.
- Por que esperas?! – interpelou ela, olhando para o marido.

Mulher de armas! E o caso ficou logo sanado. Ainda sobravam uns mil escudos do tal biscate; foram comprar marisco para gastar aquele dinheiro que ele já não contava receber.

O Jaime remediava a contento a conjuntura mais delicada em que se deixava cair.  Decidiu um dia ir almoçar a Caneças com a Elisa. Ao descer a Calçada de Carriche manifestou o seu espanto, porque Odivelas era já uma povoação “imensamente” grande.

Mas por que te surpreendes? Tu passas aqui várias vezes por semana quando vais trabalhar na Malveira!

A resposta estava na ponta da língua:
- Quem leva a “carrinha” é o meu ajudante e quando passamos por aqui, eu já vou a dormir! Nunca me apercebi deste crescimento enorme! Tão rápido!

Boa saída!

Quando lhe apetecia um arroz de marisco... ia ao Linhó onde determinado restaurante, dentro do preço/qualidade, servia o que ele considerava e publicitava como sendo o melhor arroz de marisco na zona da Grande Lisboa. A partir da segunda vez que foi lá, já a proprietária vinha à sua mesa conversar com o Jaime e a Joquinha.

Tantas vezes o cântaro vai à fonte que... um dia... “estoirou a bronca” e de que maneira! O Jaime decidiu levar àquele restaurante a Elisa, a filha, o genro e as netas. Almoçaram “à maneira”! A filha e as netas elogiaram muito àquela escolha; o Jaime estava eufórico.

Pediram café (para ele era com “cheirinho”) e apareceu a proprietária; cumprimentou os “amigos” e perguntou:
- Então o Sr. Jaime hoje não trouxe a esposa?!

O Jaime sempre soube ultrapassar com mestria as complicações mais embaraçosas, mas, desta vez, na presença das netas, empalideceu; com os olhos (só com um!) procurou um buraco onde pudesse enfiar-se.

A Elisa, sempre atenta ao que a circundava, defendendo a sua causa, deu uma ajuda, esclarecendo:
- A esposa sou eu! A outra é a amante! E lançou, os braços à volta do pescoço do marido, beijando-o ternamente.

Esta terá sido a única vez em que o Jaime não se desembaraçou pelos próprios meios. 


Um dia de manhã, na casa do Beato, o Jaime acordou e a Elisa perguntou-lhe: - Quem é a “Joquinha” com quem tu sonhaste alto durante a noite?

O Jaime ficou surpreendido; recuperou de imediato e elucidou cabalmente:
- O Joquinha é meu ajudante! Ele chama-se Jorge mas todos o tratam por “Joquinha”; é um bom rapaz e eu gosto dele, mas às vezes repreendo-o com dureza, porque ele não gosta de trabalhar – é o seu maior defeito!

Mais um caso solucionado... a contento.

Não acredito que a Elisa tivesse engolido aquela desculpa rápida mas fingiu que acreditava para o bem de ambos.

Numa festa de Natal em sua casa do Beato com a Elisa, a filha, o genro e as netas, ofereceu um carro a cada neta (todos em “segunda mão”); a filha lembrou que ficou esquecida. Ele afastou-se um pouco e emitiu um cheque de um milhão de escudos (mil contos como ele diz).
- Fiquei quase “teso” mas contente; comecei logo a fazer novas economias para a velhice!

Os anos foram passando... a saúde não dura sempre! A vida com frequência é madrasta! Quando tudo parecia um paraíso, surgiram novas complicações muito sérias relacionados com saúde.

A filha, ainda jovem, faleceu de “doença prolongada”; as netas, ainda estudantes, assumiram ainda jovens o “governo” da casa do pai apoiando também os avós sempre que podiam.

A Elisa sofreu um AVC e amputaram-lhe uma perna. O Jaime, com o assentimento e complacência da Joquinha passou a dar mais apoio à primeira esposa; passava as noites com ela. Durante o dia, por vezes, pedia à sua irmã para fazer companhia à cunhada enquanto ele ia “tratar dum biscate”. Ia até à Amadora passar umas horas com a Joquinha. Quando regressava ao seu “posto” trazia comida que a Joquinha preparava e ele comia com a Elisa e por vezes também com as netas alegando que trazia o repasto do restaurante. As netas sabiam que a comida era elaborada pela Joquinha. A Elisa... também sabia ou suspeitava, mas não se manifestava.

A Joquinha ofereceu-se para tomar conta da neta mais nova; a Elisa manifestou o seu desagrado; o Jaime não quis contrariá-la e convenceu a Joquinha a desistir da ideia.

A Joquinha, porém, visitava as netas dele (viviam com o pai perto da casa dos avós) iniciava-as nas lides domésticas e convidava-as frequentemente a almoçar ou jantar em sua casa e de lá traziam uma refeição para o Pai. As “miúdas” eram obsequiadas com artigos de enxoval que a Joquinha confeccionava.

Entretanto comemorou as bodas de prata do seu casamento... com a Elisa. Quatro anos depois a Elisa faleceu.

A Joquinha logo que considerou o momento conveniente, recordou-lhe a promessa do casamento religioso e com “papel do padre”.

Ele justificou:
- Não é isso que nos vai proporcionar mais amor; já estamos com oitenta anos; e eu perco uma boa reforma que recebo como viúvo da Elisa.

Mais uma vez houve acordo!

Também comemorou bodas de prata com a segunda esposa!

A Joquinha passou a acarinhar ainda mais as netas do seu marido. Com pequenos intervalos, as netas casaram; Vive uma para cada lado mas reúnem semanalmente ou quase com o avô, o pai... e a Joquinha que passou a fazer parte da família.

Fruto de um AVC ou similar,  a Joquinha ficou com as pernas paralisadas.  O Jaime solicitou ao médico que a mandasse para a fisioterapia: 

- Não há nada a fazer. - respondeu o “físico”. 




Uma vez mais, o Jaime foi herói: com uns tubos de ferro galvanizado, umas soldaduras, umas roldanas e cordas engendrou uma máquina “milagrosa” e a Joquinha recuperou de maneira assombrosa; Para ela tomar banho sózinha, fixou umas peças nas paredes, comprou um cinto especial e com argolas prendeu-o às tais peças, ele só tinha de lhe lavar os pés.

Ela esticava as cordas que lhe movimentavam as pernas isoladamente ou em simultâneo e voltou a caminhar – sem apoio do “marido”. O Jaime levou-a ao tal médico que ficou “meio gago”; Mostrou-lhe as fotografias da sua “máquina prodigiosa” e o médico chamou os colegas e enfermeiros para que apreciassem aquela invenção salvadora.

Há uns cinco ou seis anos, pediu-me se o ajudava a conseguir uma solução para o seu caso. Pensei que ele já trazia outra “debaixo de olho”. Mas não era isso! Ele contou:

- Como sabe eu vivo com a Joquinha na casa da Amadora; por minha morte não quero que as minhas netas lhe tirem a casa (suponho que elas não fazem esse disparate mas...), mas também não admito que os sobrinhos dela fiquem com a casa; eles só aparecem para “pedinchar” e mais nada; são cá uns “cravas”!

Sugeri que doasse a casa às netas e reservasse o usufruto da mesma para a Joquinha. Ele assim fez.

O homem põe... Deus dispõe! Nada aconteceu como ele imaginou! A Joquinha faleceu em Setembro de 2010.

O nosso herói viveu dezenas de anos “apaparicado” por duas esposas cozinheiras; agora pode contar apenas com o amor e carinho das netas; felizmente, elas adoram-no; são a única bóia a que ele pode agarrar-se.

Nas vésperas de Natal encontrei-o na Av. Liberdade; ia a uma consulta.  Aconselhei-o ir ao médico, porque... “o médico precisa de viver... e tu também”.

Perguntei-lhe como ia passar o Natal; respondeu que ia a casa do genro com as netas; não quero que, nessa noite, estejas só; se quiseres, vens a minha casa. Questionei-o se concordava que eu escrevesse sobre as peripécias da sua vida e as publicasse. Riu-se abertamente e autorizou. Não pedi que fosse ele a narrar estes e outros “retalhos” da sua vida porque sabia que isso ser-lhe-ia tremendamente doloroso. Como amigo, não tenho o direito de o massacrar, desnecessariamente.

És um “amigão”! Obrigado,  Jaime.

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2011

Belmiro Tavares
Ten. Mil.

P.S.: Em fins de Janeiro de 2011, encontrei-me com o Jaime; mostrei-lhe o esboço do que seria o texto; achou imensa graça a estes retalhos da sua vida e riu a “bandeiras despregadas”. Pedi-lhe fotografias e, se possível, o “anúncio” que a Elisa pôs nos jornais. Ficou de me entregar este material o mais breve possível; - haverá dificuldades para encontrar isso porque para restaurar a casa do Beato, encaixotou todas as “miudezas”.

Agora com oitenta e cinco anos (completou-os a 24 de Janeiro) está a restaurar e remodelar a casa do Beato, onde nasceu e viveu (em part-time) com a Elisa. – “É uma boa casa com um grande quintal”. Uma das netas vai viver lá; as outras serão compensadas com dinheiro proveniente das suas contas bancárias e da venda da casa da Reboleira que vai efectuar.

Procura ser justo!

Ainda hoje, se fala duma das suas mulheres as lágrimas aparecem logo a bailar nas suas órbitas – apenas uma.

Um homem das Arábias! Se não existisse tinha de ser inventado!

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Nota do Editor

Vd. último poste da série de 21 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7651: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (4): Os Adidos

Guiné 63/74 - P7822: Memória dos lugares (140): Bedanda e o seu reabastecimento no meu tempo (Rui Santos, ex-Alf Mil, 4ª CCAÇ, 1963/65)


Guiné > Região de Tombali > Bedanda > 1971 > Reabastecimento do aquartelamento e povoação através do Nordatlas e do lançamento de géneros por pára-quedas, durante a época das chuvas.  Foto do Álbum de Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Med, CCS / BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72)... Esteve em 1971 em Bedanda, onde foi rendido em Dezembro de 1971 pelo Mário Bravo.





Foto: © Amaral Bernardo (2011). Todos os direitos reservado

1. Texto do nosso camarada Rui Santos [, foto à direita, ](ex-Alf Mil da 4.ª CCAÇ, Bedanda, 1963/65),  sobre as suas recordações dos reabastecimentos a Bedanda (*)




Bedanda, Setembro de 1963 a Agosto de 1964, datas entre as quais posso testemunhar o que vi e vivi, tudo o que se possa ter passado fora desse tempo foi de ouvir dizer.


Assim, vamos aos reabastecimentos, os mais desejados “bojecas” e “visques”, a seguir os morfos correntes, batatas, arroz, bacalhau, azeite em bidões, óleo alimentar em bidões, gasolina em bidões, garrafões de 10 litros de vinho tinto e branco, vinagre, munições, enfim um sem número de coisas que nos eram imprescindíveis e, sempre, todos os acessórios para os petromax de iluminação do perímetro do aquartelamento de Bedanda, o meu pelotão reforçado, com cerca de 80 nativos três sargentos, alguns cabos brancos e tintos, e um “sorna” cabo branco de pele e de alma, que era o homem dos petromax e dos dois motores dos “excelentes” (!?) barcos M1 (como o chamávamos sempre: ò sorna! Não me lembro do nome real...)


Nunca fomos reabastecidos por terra,  via Cantanhez, por razões óbvias!


Éramos sempre reabastecidos via marítima por barcos da Casa Gouveia, um era o rebocador N/M Gouveia 16 (que puxava um batelão) e ía sempre Unguariuol acima até ao caisito de Bedanda a cerca de 700 mts da povoação.


Já em tempos descrevi o ataque ao Gouveia 16 aqui no blogue, e desde aí nunca mais vi barco nenhum perto de Bedanda, senão em Cobumba, 6/7 kms da povoação, aí era sempre o N/M (navio motor) Gouveia 17 que era mais comprido que o 16 e não entrava no afluente do Cumbijã , e ficava acostado a um dos lados da rampa que ali existia, e por vezes também trazia batelão, era descarregado e os materiais levados para o armazém em frente do chefe de posto e as munições para dentro do quartel da Companhia.


Estes barcos eram sistematicamente atacados nas curvas do Cumbijã entre Cadique e Cafine, mas, antes dos fuzileiros “limparem” literalmente essas duas povoações, causando dezenas de mortos ao IN e apreendendo muito material de guerra, os barcos começaram a ser escoltados por LDM dos fuzileiros, mas não no tempo que mencionei.


O correio, alimento essencial para o “psique”, vinha sempre via aérea em Dorniers ou em Auster militares, ou Dornier e Cessna civis, que por vezes também traziam medicamentos e algo essencial que tivesse sido pedido de urgência.


No período da “menopausa” marítima, lá vinham os Nordatlas em voo razante “despejar” caixotes de legumes, bacalhau, conservas, não mandarem as “bojecas” foi uma sorte, o bacalhau era o único que não se espalhava pelo mato pois vinha forrado de chapa de alumínio, mas fomos assim “tratados” apenas duas vezes.


Comentando a foto [ vd. acima,] tirada a bordo da aeronave que se aproximava do campo de aviação e estava sobre o Cantanhez, (aliás já nas “bordas” do Cantanhez):


(i) a sombra do avião cruza o Cumbijã exactamente no ponto do cais de Cobumba;


(ii)  os 4 telhados brancos mais à direita da foto eram o antigo aquartelamento da 4ª CCAÇ;


(iii)  ao centro sobre a esquerda a povoação de Amedalai que, pelo que leio, os da CCAÇ 6 lhe chamavam Bedanda (mas para que a verdade seja reposta é só verem o que “diz” o mapa cartográfico);


(iv)  saindo de Amedalai vê-se para sul a estrada para a mata do Cantanhez, Salancaur, Cabedu, Mejo, Lisboa, Cacilhas, etc.;


(v) para norte descendo para Bedanda cruzando o “campo de aviação dos legumes espalhados”, logo à saída de Amedalai e nessa direcção vê-se um pouco indistintamente o tal aldeamento das casas com telhado de zinco do lado esquerdo da estrada Amedalai /Bedanda, que o Vasco Santos ilustrou numa foto dirigida ao blogue, da qual eu duvidei, e peço desculpa, pois no Google Earth nada consta actualmente desse bairro mandado edificar pelo snr. Cap. Ayalla Botto (!?) nem o conjunto de moranças do lado direito da estrada sentido Amedalai/Bedanda, que também se avista em parte nesta excelente foto;


(vi) Lá para baixo, os “meus aposentos”, e as casas comerciais!


Em todos os pontos da foto, e muito mais para os lados coloquei as minhas botas e por vezes a minha barriga e o corpo inteiramente vestido e armado dentro de um riozito com cerca de 2mts de profundidade, salvando dois (cabo branco e soldado acastanhado) e recuperando o armamento por eles perdido.


Lá ao fundo mesmo longe na última curva do Cumbijã que se vê na foto,  rebentei sozinho da margem (direita na foto esquerda do rio) duas “big” canoas.


Como não ter saudades ? 22/23 anos, menos 40 quilos, juventude, inconsciência, sempre pronto. Só tenho pena de não ter tido um comando à altura das circunstância, e mais não digo!


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Nota de L.G.:


(*) vd. poste de 17 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7802: Álbum fotográfico de Amaral Bernardo (Alf Mil Med, CCS/BCAÇ 2930, Catió, Cacine, Bedanda, Guileje, Gadamel, Tite, Bolama, 1970/72) (1): O reabastecimento de Bedanda, no tempo das chuvas, através do Nordatlas, com lançamento de pára-quedas


Último poste desta série >


14 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7778: Memória dos lugares (139): Bedanda no meu tempo (Rui Santos, ex-Alf Mil, Op Esp, 4ª CCAÇ, 1963/65)