1. Mensagem do nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 22 de Março de 2011:
Caríssimo Carlos Vinhal
Junto vai o texto para o CONTRAPONTO (25), intitulado "Memórias".
Com um abraço do
Alberto Branquinho
CONTRAPONTO (25)
MEMÓRIAS
«Paro na “Vela Latina” e tomo um café... e um pastel de nata» - pensou.
Arrumou o carro. Aliviou o nó da gravata. Hesitou entre deixar a pasta no carro ou levar a pasta.
Colocou a pasta no porta-bagagens e, com o casaco sobre os ombros, encaminhou-se para a cafetaria, evitando os pequenos grupos de turistas, que, calmamente, sob o sol de Julho, aguardavam as indicações dos guias.
Sentou-se na esplanada, saboreou demoradamente o pastel de nata, observando os pardais que, assustadiços, debicavam gulosamente, os restos em cima de uma mesa, que acabava de ser abandonada.
Porque tinha, ainda, muito tempo. dirigia-se lentamente para o carro, quando lhe surgiu a ideia de ir ao Monumento aos Combatentes do Ultramar, ali perto, junto à Torre de Belém, para verificar se constava o nome de um soldado africano que pertencera à sua Companhia. Alguém lhe tinha telefonado, pedindo para fazer essa verificação. Parou e ficou a tentar recordar o nome completo. Não conseguia. Verificando as listagens dos anos de 1967, 1968 e l969, se constasse, iria recordar-se.
À medida que caminhava para o Monumento, deu consigo a dizer baixinho: « Mamadu..., Mamadu..., Mamadu... ». O resto do nome não saltava à memória. «Vou ver ano a ano todos os Mamadus e, se lá estiver, lembro-me concerteza».
Chegou. Estava nesse momento a decorrer o render das duas sentinelas permanentes ao Monumento. Por respeito pelos mortos vestiu o casaco e compôs a gravata. Seguiu olhando sobre a esquerda, até que deparou com o ano de 1967. Procurou a letra M. Leu a lista dos MM. Não estava ali. Procurava já o ano de 1968, quando, atrás de si, uma voz o interpelou:
- Você está à procura de nome de alguém ?
Voltou-se. Era um homem alto, com cerca de sessenta anos, que trazia pela mão uma garota de quatro ou cinco anos.
- Sim.
- E em que ano morreu ?
- Ora essa é que é a dificuldade. Ou em 67, que já vi e não está. Ou em 68 ou 69.
- E você estava lá ?
- Sim.
- Três anos ? Não pode ser. Só se você foi voluntário.
- Não. Foi do fim de 67 até princípios de 69.
- Ah ! E qual era o nome ?
- Esse é outro problema. Não me lembro do nome todo. Mamadu qualquer-coisa. Mas se o vir, lembro-me.
- Então você também esteve na Guiné ?
- Sim.
- Eu estive lá em 70 / 71. Nos páras. Mesmo agora, às vezes, ainda salto. Então você o que era? Furriel?
- Não. Alferes.
- Eh pá, o meu alferes morreu com uma rajada no peito. E eu quando o vi naquele estado, saltei para cima dele, quer dizer, com um pé de cada lado, a disparar, a disparar para a mata. Então, comecei aos berros:
- Cabrões, cabrões (era para a minha malta ), dêem aqui uma ajuda.
Vieram tês ou quatro, a rastejar, porque o fogo era muito forte e protegeram-no com o corpo. E vai nisto, vejo a ramagem do poilão a mexer, a mexer, dei um salto para trás, agachei-me e comecei a disparar de rajada. Caíu de lá um cabrão de um turra, que, quando caíu no chão, parecia que tinha molas. Levantou-se logo e desapareceu, aos zigue-zagues, no capim. Foi o cabrão que disparou lá de cima e...
- Oh homem, oiça. Todos nós tivemos as nossas guerras, todos nós tivemos as nossas histórias. Tenha calma. – disse o ex-alferes para o homem, que falava descontroladamente, com duas bolas de saliva nos cantos da boca. Ajoelhava-se, deitava-se, fazendo menção de estar a disparar e, esbracejando, berrando em várias direcções.
A garota, que o acompanhava, chorava, sentada e encostada ao muro do Monumento. Deixou cair o chapéu e foi aninhar-se nos degraus da escada de acesso a uma porta que está, mais ou menos, no centro do Monumento, chorando mais e mais.
- E vai o alferes, já a falar muito baixinho, diz-me assim:
- Vocês deixem-me e sigam… Saiam daqui. E eu disse-lhe:
- Não senhor, se formos daqui, vamos todos. Eu ainda não tinha dito isto e vai um dos meus camaradas, que estavam ali ao pé, esticou-se ao comprido, ficou de costas, que até parecia um saco de batatas, com a cabeça aberta e os miolos espalhados no chão. Os cabrões rebentaram-lhe com a caixa dos pirolitos. E vai, eu arrastei o meu alferes para uma vala que havia ali, assim de rastos e ainda lhe falei ao ouvido para lhe dar alma, mas já estava sem pinga de sangue. Foi-se. Você alguma vez...
- Oh homem, tenha calma. Olhe a a sua neta - neta, não é? – que está ali a chorar, coitadinha.
O ex-paraquedista olhou na direcção da garota sem manifestar qualquer peocupação e tentava continuar a ser ouvido, espumando da boca e com os braços hirtos e esticados para a frente, como que empunhando uma arma.
- Mas você já viu...
- Oh homem, todos nós tivemos as nossas histórias que nos marcaram...
- Mas você que...
O ex-alferes deixou-o a falar só e aproximou-se da criança, que continuava a chorar, sentada num dos degraus, tapando o rosto com as mãos. Pôs-se de cócoras e tentou tocar-lhe. Ela, chorando sempre, berrou:
- Não!
O ex-paraquedista aproximou-se, de lenço aberto nas mãos, tomou-a ao colo, limpando-lhe as lágrimas. O ex-alferes apanhou o chapéu e pô-lo na cabeça da garota. Então encaminhou-se para a listagem dos mortos do ano de 1968, mas, perturbado, não encontrava os nomes com M. Respirou fundo, olhou sobre a direita e procurou de novo:
- Mamadu... Mamadu... ». Lá estava.
O homem aproximava-se, com a neta ao colo, que berrava:
- Quero ir para casa. Vamos embora.
- Está bem, Tânia, vamos já. Você já encontrou o nome ?
- Sim, está aqui.
E colocou um dedo em cima.
- Olhe, o meu alferes está aqui... 1971... 1971... É este. Não o conhecia ?
- Não. Era miliciano ?
- Não sei.
- Era difícil eu conhecê-lo. Devia ser mais novo uns três anos.
- Já viu como o número de mortos aumentou em 71, 72 e 73 ?
A criança berrava desesperada:
- Vamos embora! Vamos!
- É verdade. Nunca tinha notado isso.
- Eu gostava de falar consigo sobre isso do meu alferes, do falecido e outras coisas.
- Pois. Todos nós passámos os nossos maus bocados, mas eu, agora, tenho que ir. Tenho que fazer.
Estendeu-lhe a mão. O outro demorou largos segundos a consumar o cumprimento de despedida.
- Adeus, Tânia.
Tentou passar-lhe com a mão na cabeça, mas a garota, chorosa, evitou-o.
Foto © Hugo Moura Ferreira (2007). Direitos reservados.
************
Cerca de quinze anos mais tarde, um casal de namorados passeava em frente à Torre de Belém, quando o rapaz olhou na direcção do Monumento aos Combatentes do Ultramar, que o sol de Primavera iluminava, fazendo brilhar o mármore.
- Olha. O que é aquilo ? Vamos lá ver.
- Não.
- Porquê ?
- Não. Se queres, vai tu. Eu não vou.
- Está bem. Mas porque é que não queres vir, Tânia ?
- Eu já conheço. Fui lá muitas vezes com o meu avô.
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 2 de Março de 2011 >
Guiné 63/74 - P7886: Contraponto (Alberto Branquinho) (24): Fronteira portuguesa? Ainda?