1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Dezembro de 2014:
Queridos amigos,
Há edições de autor que são memoráveis, nelas, sem qualquer hesitação, incluo este
“O céu de Guidage”, notas diárias, ou quase, de um alferes que é lançado vários meses para um rincão fronteiriço, aonde afluem gentes e importantes, muito importantes, informações.
A região é palmilhada por gentes do PAIGC, por ali passam caminhos que levam para Sambuiá, para o Oio, está-se perto de Zinguichor.
E sentimos que este alferes Gonçalves para além de armadilhar e caçar e de querer tornar Guidage um sítio viável, é confrontado pelo animismo, pelo domínio ancestral do homem sobre a mulher, pelas permanentes visitações da doença e da morte.
Era assim Guidage em 1967, e nós acreditamos piamente que era assim, como Domingos Gonçalves a descreve e se descreve.
Um abraço do
Mário
O céu de Guidage
Beja Santos
Vamos agora dar um salto no tempo, estamos em Julho de 1967, altura em que Domingos Gonçalves passa a ser o comandante militar de Guidage. Das três obras que ele teve a amabilidade de me oferecer depois da sessão de lançamento do livro
“Fafe na guerra colonial”, que decorreu em Fafe a 12 de Dezembro último, é o seu livro de que mais gosto, vê-se à légua que foi a missão que mais o marcou, por isso as suas notas são abundantes, a sua dor é por vezes imensa como imenso é o seu deslumbramento por aquele território junto ao Senegal, quase fora do mundo, onde ele adora caçar e constantemente se motiva para ter os seus homens igualmente motivados:
“O céu de Guidage”, por Domingos Gonçalves, edição de autor, 2004, com a seguinte dedicatória:
“A todos os soldados da CCAÇ n.º 1546, do BCAÇ n.º 1887, que estiveram no destacamento militar de Guidage, ou que por lá passaram”.
(*)
Escreve no dia 12 de Julho de 1967:
“Vou com os meus homens passar três ou quatro meses em Guidage. A estrada encontra-se num estado miserável. É uma manhã triste e sombria, que se esconde para além desta neblina”. As viaturas atascam-se, repetem-se os palavrões, foi uma viagem difícil e penosa, chegam a Guidage, o outro grupo de combate que vieram substituir inicia a viagem para Binta. Vaza para o papel:
“Neste pequeno mundo eu sinto-me quase um rei, autoridade máxima deste reino constituído por cerca de dez hectares de terreno rodeado de arame-farpado onde habitam cercam de duas centenas de nativos. Eu sou o comandante das tropas aqui estacionadas, cerca de cinquenta homens”. Localiza Guidage, releva as suas vulnerabilidades, fala das picadas em muitíssimo mau estado. A Guidage chegam informações que depois são reencaminhadas para o Batalhão, trazem notícias que Amílcar Cabral anda a percorrer as bases e a apaziguar os ânimos, haverá tensões entre guineenses e cabo-verdianos. Vem gente do Senegal cumprimentá-lo. Há razão para isso:
“Todos os dias passam por Guidage dezenas de senegaleses. Regra-geral, vêm comprar tabaco, sabão, azeite, tecidos, petróleo para iluminação, etc. Trazem também algum contrabando e algumas informações sobre a movimentação das forças do PAIGC”. O destacamento encontra-se num estado miserável, queixa-se da falta de militares:
“Dos seis furriéis que devia ter aqui apenas tenho dois. Os soldados e cabos também são poucos. Por isso têm que fazer serviço todas as noites”. A 17 chega-lhe uma notícia muito importante:
“Amílcar Cabral continua em Samine. Um grupo de 80 turras vai sair de Jeribã para Jagali Balanta. Transporta armas ligeiras, munições, quatro bazucas e dois morteiros. De Jeribã seguem para Sindina e depois para Sambuiá. Devem atravessar o rio Cacheu em Concolim”.
O ramerrão diário tem imprevistos, dois cadastrados, soldados em Guidage, tentarem fugir para o Senegal, foram apanhados já em território do Senegal. Por vezes, a natureza lembra-lhe a sua região:
“Estes campos verdes de milho que cresce à volta de Guidage têm um pouco da verdura do Minho… E fazem-me olhar para muito longe. É a saudade!”. A pista de aviação estava inoperacional, ele decide pô-la em condições de voltar a receber os passarões de aço e chapa. Os senegaleses doentes chegam a toda a hora. A polícia senegalesa é vista a observar o território da Guiné portuguesa com binóculos. Chegam notícia de que Guidage vai ser atacada. Estamos em plena época das chuvas, o destacamento é um lamaçal. No fim desse mês de Julho, começa a colocar armadilhas em marcos fronteiriços e pontes adjacentes. Há um furriel responsável pelas informações que agride os nativos com frequência, a população teme-o:
“Chamei-o ao meu gabinete, proibi-o de bater nos nativos. Não foi nada fácil convencê-lo. Refugiado no facto de ter um trabalho autónomo, sobre o qual apenas tem de prestar contas aos serviços de informação militar, de quem depende, entendia que podia fazer com a população o que muito bem lhe apetecesse”. O relacionamento da população com a tropa de Guidage melhorou muito.
Teme-se a qualquer momento uma flagelação, redobra a vigilância. As armadilhas começam a fazer o seu efeito, houve uma explosão, foram lá ver, encontraram um rapaz que não teria mais de quinze anos:
“Pensando que estava mesmo morto, deixaram-no abandonado entre o capim, sem qualquer elemento que o pudesse identificar”. Para pasmo de Domingos Gonçalves, a população irá executá-lo. O alferes não pára de armadilhar e caçar. A população senegalesa queixa-se dos roubos de vacas pelos turras. Com a coluna de Binta, veio o capelão:
“É um bom homem. Chamam-lhe o pardal espantado porque ele não para em lado nenhum. Aproveita todas as oportunidades possíveis para se deslocar de destacamento em destacamento. É uma pessoa muito piedosa sempre preocupada com o bem-estar dos outros”. Nos patrulhamentos, encontra vestígios de passagem dos guerrilheiros. As armadilhas vão rebentando, obra dos homens e da passagem dos animais, ele volta a armadilhar, não dá tréguas. Em 17 de Setembro, Guidage é atacada, não há feridos nem estragos a lamentar. De Binta, o capitão dá-lhe ordens para patrulhar e armadilhar e ele escreve:
“Não vou. Não cumpro ordens estúpidas”. As tensões acentuam-se, os furriéis não se entendem uns com os outros, há imensas bebedeiras, as chuvas são abundantes, as informações que chegam a Guiadge são preocupantes, prepara-se um ataque em força, as carências são de toda a ordem, parece que tudo falta em Guidage.
Estes apontamentos de Domingos Gonçalves tocam-nos profundamente: um destacamento à beira do Senegal aonde afluem pessoas em carência, informações, onde se afina o instinto de sobrevivência, o resistir à solidão, o sentir-se o abandono, as vidas transtornadas à nossa volta, e então o ser humano levanta-se, comunga com a natureza e escreve-se sobre este respeito, com simplicidade e sinceridade:
“As trovoadas aqui são cheias de grandeza. Tanto nos incutem medo como admiração. Quase me apetece afirmar que valeu a pena vir à Guiné só para observar estes espetáculos. É muito belo, em noites de trovoada, este céu de Guidage. Entretanto sobre a mesa do meu improvisado gabinete, os ratos brincavam com os papéis". Mas nesse mesmo apanhado de notas, ele escreve adiante:
“De tarde, patrulhei a área de Fajonquito, onde encontrei vestígios da passagem recente dos turras, e onde recolhi um quico perdido por eles. Passei por Quenheto e caminhei, ainda, pela estrada do Dungal, onde deixei ficar três potentes armadilhas. Regressei pela linha de fronteira, passando junto do marco 124”.
O alferes tem que praticar justiça, agir como juiz de paz em casamentos desavindos, procurar, nesse escuro túnel cultural, agir com prudência, travar roturas, desinchar o mau estar. Já se passaram três meses, sonha-se com o regresso a Binta. Mas, por outro lado, sente-se incomodado por voltar à companhia do capitão (a quem ele chama Faruk). Pouco antes de regressar a Binta, no início de Novembro, escreve sobre o seu intérprete, a quem chama o Patron:
"É um ingénuo, é um homem puro. Não fora aquela pura ingenuidade e ele seria bem capaz de ver que temos mais de demónios do que de anjos, e que a nossa terra apenas tem homens como os daqui, embora de cor diferente”. Despede-se de Guidage com tristeza, mas no dia 2 de Dezembro está de novo rumo a Guidage, vai substituir temporariamente um alferes que se deslocou a Bissau, e relata a operação “Chibata”, 170 homens, incluindo os Roncos de Farim e os Caçadores Nativos de Guidage, vão atacar Cumbamory, no Senegal, capturou-se armamento, as nossas forças sofreram quatro mortos. Detetaram-se cubanos no acampamento. Volta a armadilhar à volta do destacamento. A 23, está de regresso a Binta, e despede-se assim do leitor:
“As terras de Guidage, e o seu povo ficarão cada vez mais longe de nós, perdidas na distância do tempo e da saudade”. Percebe-se como este céu de Guidage marcou Domingos Gonçalves para toda a vida.
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Nota do editor
(*) Vd. poste de 29 de Dezembro de 2014 >
Guiné 63/74 - P14093: Notas de leitura (661): “Guiné 1966, reportagens da época”, edição de autor de Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887 (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 29 de dezembro de 2014 >
Guiné 63/74 - P14095: Notas de leitura (662): Eu e a minha burra, sozinhos, mais a nossa própria sombra... Recordações da infância (Fernando Sousa, natural de Penedono, autor de "Quatro Rios e um destino")