quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14106: Memórias de Gabú (José Saúde) (50): Recordando o saudoso enfermeiro Dinis. Homem, militar e amigo.

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua fabulosa série.

As minhas memórias de Gabu

Recordando o saudoso enfermeiro Dinis
Homem, militar e amigo

De estatura física a atirar para o metro e sessenta, ou nem tanto, franzino, mas sempre ágil na sua entrega à vida, o enfermeiro Dinis, da minha companhia – CCS do BART 6523 -, era um rapaz cuja dedicação à causa que a tropa lhe concedera muito o notabilizou.

Lembro-me, perfeitamente, de passar defronte às minhas instalações ao lado de um outro camarada, creio que de transmissões, que muitas vezes apelidei como a “sorte grande e a terminação”.

A razão deste meu pequeno devaneio prendia-se com o facto do Dinis, pequeno em altura, mas com um coração enorme, ombrear lado a lado com um camarada alto e esguio que se mandava para cima de um metro e oitenta.

Curioso é que o Dinis, um militar simpático e afável, nunca impunha restrições para uma espontânea cavaqueira na missão que escrupulosamente cumpriu como antigo combatente na Guiné. Aliás, recordo as minhas idas à enfermaria e ser atendido, com pompa e circunstância, pelo meu amigo Alfredo Dinis que se predispunha a uma ajuda momentânea caso a necessidade assim o determinasse. 

Por uma questão de ética olvidemos o Alfredo e falemos simplesmente do enfermeiro Dinis como era hábito a malta tratá-lo. Na minha memória subsiste a imagem de um jovem, cara de menino, cuja pronuncia era tendencialmente marcada pela dicção de uma “Invicta” que todos conhecemos como a maravilhosa cidade do Porto.

Numa intromissão às minhas memórias de Gabu, revejo a irreverente ação militar do enfermeiro Dinis. Foram muitas as idas para o mato em que este nosso amigo acompanhava o grupo e vincava presunçosamente a sua próspera especialidade numa população onde as carências impunham óbvias restrições humanitárias e físicas.

Recordo, por exemplo, as visitas “pomposas” às tabancas de Gabu em que o Dinis, munido com sua mochila de “mesinhos”, distribuía remédios santos para gentes nativas que viam nele um deus caído do céu. A patologia constatada implicava uma receita urgente. E o Dinis já conhecia os males e as suas curas. Tanto mais que naqueles lugares ermos as queixas eram as rotineiras e obviamente reconhecidas. 

As minhas memórias guardam, também, outras circunstâncias em que afabilidade do Dinis denotava uma mensurável devoção à causa que mui dignamente serviu. Lembro, por exemplo, quando num certo dia, que não posso precisar porque se esvaziou da minha mente, o Dinis, após o almoço, recebeu na enfermaria um camarada que acabara de morrer num contacto com o IN, sendo a razão da sua morte um pequeno orifício de uma bala que, infelizmente, lhe penetrou a fronte e se alojou no cérebro. Comentámos a fatalidade do nosso camarada e o destino cruel que a guerra na Guiné lhe traçou.

Numa outra ocasião um gerador, adstrito à messe de sargentos, rebentou. O estrondo no quartel foi enorme e a manhã foi de autentico sobressalto para toda a rapaziada. Uns ainda dormiam e outros “matavam” o tempo com premeditados afazeres. Uma carta para a namorada, escrita sob um cenário de guerra, ou uma missiva, quiçá faustosa, para uns pais sempre carentes de notícias da peleja de além-mar e sobretudo do estado físico e moral do seu querido descendente.

No meu caso estava sentado num “confortável” cadeirão, feito à maneira de um homem grande, situado à frente dos aquartelamentos dos sargentos, ao lado da messe, meditando num horizonte onde a guerra não perspetiva melhorias e eis-me a ouvir na plenitude tamanho ronco.

Confesso que o estrondo pareceu-me que vinha das traseiras da messe de sargentos. Não hesitei e lá fui para saber o que acontecera. Viveram-se então momentos de pânico, sendo o infeliz contemplado da desgraça o camarada Filipe, um rapaz que trabalhava na copa da nossa messe.

O corpo do militar Filipe registava fartas queimaduras e a dor sentida pelo camarada era grande. Havia partes do seu corpo em que a pele queimada dera lugar a uma mancha vermelha que deixava antever preocupação. O rosto e os braços, em particular, indiciavam dor.

Perante o sucedido o Filipe ficou entregue aos cuidados do pessoal de enfermagem da companhia. O furriel enfermeiro Navas e o Dinis prestaram-lhe os primeiros socorros, seguindo-se os cuidados diários do nosso saudoso homem do Norte.

Sei que o enfermeiro Dinis foi incansável nos seus préstimos, sei também que este meu velho camarada portuense já partiu para a tal famigerada viagem sem regresso, descansa em paz, restando, porém, alvíssaras do Filipe. 

O Filipe era também um rapaz do Norte, creio, ficando por ora este meu apontamento como a linha aberta de um azimute que possa, eventualmente, reencontrar este camarada da CCS do BART 6523, Nova Lamego, Gabu, 1973/74.


O enfermeiro Dinis na prestação de cuidados ao nosso camarada Filipe 


 O enfermeiro Dinis na prestação de cuidados ao nosso camarada Filipe


Dinis junto a ambulância apanhada ao IN pelo grupo de Marcelino da Mata

Um abraço camaradas, 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
___________
Nota de M.R.:

O meu saudoso Amigo Alfredo Dinis era nosso camarada tabanqueiro, tendo deixado parte das suas memórias, que podem ser vistas em:

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/Alfredo%20Dinis

Vd. último poste desta série em: 


2 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro camarada José Saúde

Nunca são demais as homenagens que aqui prestemos aos nossos camaradas e amigos.
Isso faz parte dos objectivos do Blogue que é deixar registo das nossas vivências, honrar os nossos camaradas, mostrar como vivemos e sobrevivemos.

No caso particular dos camaradas enfermeiros, que tanta vez fizeram de 'médicos' é com toda a justiça que são aqui regularmente lembrados, até porque foram eles que tanto nos quartéis como na 'frente', quantas vezes em desprezo pela sua própria segurança, acudiram e ajudaram a resolver e/ou mitigar os problemas daqueles que a infelicidade atingiu.

No caso das fotos que ilustram o teu texto parece que o Filipe apresenta queimaduras, verdade?

Abraço
Hélder S.

Catarina Dinis Pinto disse...

Gostei muito de ler este texto falando de meu tio... meu pai Francisco também esteve na Guine...