terça-feira, 9 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14722: Notas de leitura (725): “Guerra na Bolanha”, de Francisco Henriques da Silva - (Programa Fim do Império, Âncora editora, Lisboa, 2015) - O regresso de África e a reinserção - parte I (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 5 de Junho de 2015:

Caros camaradas e amigos,
Envio-vos, em dois segmentos, o capítulo XXV do meu livro “Guerra na Bolanha” (Programa Fim do Império, Âncora editora, Lisboa, 2015) que nos fala de vários casos, que conheci, de reinserção - ou de não reinserção - de jovens, como eu, que haviam cumprido o serviço militar, na Guiné e noutras paragens ultramarinas, na sociedade portuguesa. A reintegração nuns casos foi razoavelmente bem sucedida e noutros tal não ocorreu, subsistindo traumas físicos e, sobretudo, psicológicos até aos nossos dias.

Via de regra, tendo em conta a aventura espantosa que vivemos em África, arrancados que fomos à relativa mansidão da nossa Tugalândia e ao ramerrame do nosso dia-a-dia, dos idos anos sessenta do século passado, confrontámo-nos com um verdadeiro “reality shock” e, por isso, temos tendência a concentrarmo-nos nos feitos de guerra e no nosso quotidiano em terras da Guiné. Porém, existe sempre um antes, que por vezes também é referido (a nossa juventude e como a vivemos antes da nossa passagem pelas fileiras) e, de igual importância, senão mesmo mais impactante, um depois (mas desta fase poucos falam e, todavia, ela é, a meu ver, crucial).
Uma das minhas preocupações de fundo foi tentar entender em que consistiu, com um mínimo de rigor, a fase posterior, o que é uma tarefa, no mínimo, ingrata. No meu caso pessoal, creio que marquei objectivos, que, aliás, descrevo com algum detalhe no meu livro, elaborei uma estratégia para os alcançar e, com maior ou menor sacrifício, consegui atingi-los. Todavia, muitos jovens de então, por uma multiplicidade de razões, infelizmente, não obtiveram qualquer êxito nessa caminhada.

Penso que não podemos circunscrevermo-nos a falar em circuito fechado da “nossa guerra” e que nos devemos abrir à sociedade em geral, sem tabus, sem preconceitos e sem complexos. Se queremos algum reconhecimento pelo que fizemos - e todos nós sabemos bem quão ingrato é ou pode ser o nosso Portugal actual - temos de falar para que alguém nos ouça. Não queremos pancadinhas no ombro do nosso proverbial nacional-porrerirsmo, não queremos agradecimentos, medalhas, louvores e lisonjas, mas apenas, que se reconheça que, para o bem e para o mal, com sacrifícios, desassossegos e canseiras, lutámos pelo nosso país. Verifico, por exemplo, que, nos Estados Unidos, independentemente dos conflitos justos ou injustos, populares ou impopulares, da respectiva legitimidade ou ilegitimidade, a população, em geral, presta tributo aos seus veteranos, quer os da II Guerra Mundial, da Coreia, do Vietname, do Iraque ou do Afeganistão. Na Rússia passa-se exactamente à mesma coisa. Portugal, pelo contrário, parece que quer deliberadamente apagar a sua história, todavia um tal curso de acção é um absurdo, jamais poderá ser concretizado.

Um abraço
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alferes miliciano de infantaria da C.Caç. 2402 e
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999)

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A reinserção dos outros. Será que houve verdadeira reintegração? Realidade e ficção.

(1.ª parte)

Caso 1 

Pousou o cigarro fumegante no cinzeiro metálico na mesa daquela esplanada da Costa da Caparica. Falou e acto contínuo começou num tom fortemente emotivo:
- Sabe, meu amigo, não consigo. Não consigo. Não me sai da memória. Depois daquela emboscada já perto, muito pertinho de Bula, numa maldita bolanha. Santo Deus! Não consigo...

Bebeu mais um gole de água e um pouco mais distendido continuou:
- Emboscaram-nos em grande, os cabrões! Era um fogachal medonho por todos os lados. Disparavam as RPG’s e as Kalashes sem descanso. Não, não eram, como habitualmente, uma meia-dúzia. Desta vez, era mesmo em grande. Não sei fazer as contas, mas eram muitos, mais que às mães, como se costuma dizer. Eram tiros e rebentamentos por tudo quanto era sítio. Estavam ali à nossa espera. Já não sabíamos uns dos outros, porque tínhamo-nos reunido em pequenos grupos para resistir melhor, mas aquilo não parava e não tínhamos onde nos abrigar. Aliás, estava tudo espalhado e tresmalhado no meio da água e do capim. Se não tivéssemos cuidado, daí a pouco estávamos a disparar uns contra os outros. Sabe, são imagens que ainda hoje não me saem da cabeça. Estou a ver a cena toda. Depois, acertaram em dois ou três de nós, talvez mais. Não sei bem. Ouviam-se os gritos. Ouço-os todos os dias. “Ai minha Nossa Senhora! Acudam-me que eu fico já aqui! Mãe! Oh, minha mãe! Estou com as tripas de fora! Ajudem-me! Ajudem-me! Vamos aqui ficar todos! Virgem Maria! Acudam-me! Enfermeiro! Enfermeiro!” E o héli não vinha. Não vinha e nós cada vez mais desesperados.

Vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Revivia tudo como num filme em câmara lenta. Parava. A bobine voltava atrás e avançava outra vez, mas não tinha fim, recomeçava. Olhou para a linha do horizonte e viu a praia com os banhistas sob o escaldante sol de Julho, um avião sobrevoou-nos, dirigia-se à Portela. O que lhe parecia verdadeiramente irreal era aquela cena corriqueira e não o seu relato, o seu filme, o que tinha para contar. Essa, sim, era a história real.


Poilão de Brá
Foto ©: Arquivo de Francisco Henriques da Silva

Caso 2

Era meu vizinho do bairro. Uns anos mais novo, mas a diferença de gerações, hoje inexistente, não nos impedia de relatarmos as nossas experiências.
- Sabes, Chico, eu era furriel da Polícia Militar e tenho duas ou três cenas que não me saem da memória, isto já no final da comissão. Em Portugal, tinha acabado de se dar o 25 de Abril e em Bissau, aquela malta começava a manifestar-se por toda a parte. Por conseguinte, a PM tinha que redobrar de esforços, por que as coisas podiam dar para o torto. Uma das tarefas de que fui incumbido e precisamente aquela que não posso, por forma alguma, esquecer foi a prisão do Governador e Comandante-chefe da Guiné, General Bethencourt Rodrigues. Mandaram-me ir prendê-lo ao Forte da Amura, no dia 26 de Abril. Perguntei: ‘Quem? Eu, um simples furriel da PM?’. Responderam-me que sim que a tarefa era da minha responsabilidade e que não ia comigo nenhum oficial. Fiquei um bocado à rasca com tudo aquilo e cheio de nervoso miudinho: ia prender o Grande Chefe, nem mais nem menos.
Cheguei à dependência onde se encontrava, na Amura, bati a pala e, antes de poder abrir a boca, o General adiantou-se-me dizendo-me: ‘Estou pronto. Podemos seguir para o aeroporto’.
Bom, lá fomos em silêncio, estrada fora. Sabes estas coisas são difíceis de contar, têm de ser vividas. Foi muito desagradável. Senti-me muito incomodado.

Parou durante uns momentos, talvez para mudar um pouco de tema, muito embora se referisse invariavelmente a episódios do pós-25 de Abril em Bissau:
- Deram-me também como missão específica, naqueles dias, logo a seguir à revolução, que fosse libertar os presos políticos que se encontravam em Bissau, à guarda da PIDE. Também não foi nada fácil, muito embora o final fosse estilo tourada. Eu já te explico. Aquela malta - refiro-me aos locais - estava possessa e queria que os presos fossem libertados de imediato. Começou-se a juntar a multidão, com cada vez mais gente, e nós, ou seja, eu e os meus homens, éramos poucos - creio que uma secção, ou coisa que o valha - tínhamos a maior das dificuldades em contê-los. Bom, lá fui à cadeia e libertei os 7 que lá se encontravam (sim, seriam 7, mas não te posso garantir o número exacto), isto perante a gritaria constante daquela gente. As coisas podiam dar para o torto, porque estavam todos excitadíssimos. Quando os gajos vieram para a rua, a multidão avançou para mim e eu, muito francamente fiquei, então, com um cagaço dos antigos. Estava a ver que podia ser linchado. Mas, não, levaram-me aos ombros como um toureiro e andaram a passear-me pelo centro de Bissau. Transformaram-me em herói. Não ganhei para o susto, mas tudo bem. O que te fui contando e que tu percebes melhor que ninguém, pois também por lá andaste, fica-nos gravado na memória. Por muito que a gente queira, isto não desaparece. Eu não andei aos tiros no mato, como tu e outros, mas vivi estas coisas na cidade intensamente. Hoje, tenho o meu emprego, à espera da reforma, a minha mulher, filhos e netos, enfim a vida que todos têm ou deviam ter. O que passei em África, está ultrapassado, mas fica sempre qualquer coisita, não é verdade?


Bissau actual
Foto de Paula Tábuas © copyright

Caso 3

Empresário com algum sucesso, o António, hoje, sexagenário, com graves problemas de artrose, lá consegue movimentar-se agarrado a uma bengala. A sua história é igual à de muitos outros, com algumas diferenças, que não são simples matizes.
- Alferes miliciano de infantaria, a minha especialidade eram as armas pesadas, andava lá para o Sul com os morteiros de 105. Veio o 25 de Abril e pouco depois tudo aquilo entrou em parafuso. Ninguém mandava em ninguém. Os soldados não queriam combater. Os “turras” confraternizavam connosco. Nada do que assisti fazia sentido e se comparássemos com o que se tinha passado uns meses antes, em que andavas para ali aos caídos a apanhar no toutiço, a comer mal e a ser comido pelos mosquitos, menos sentido fazia. Era um ver se te avias. Eu não sabia muito bem como aquela história ia acabar. Enfim, lá nos mandaram embora e para aqui viemos. Mas a verdadeira história é por cá que começa, na Santa Terrinha. Cheguei e o que eu queria era beber umas cervejolas e comer umas gambas, descontrair, gozar a vida, depois de ter passado o que passei lá pela mata da Guiné, o que quer que viesse a seguir que se lixe, ficava adiado - era para se pensar nisso mais tarde. Mas um gajo chega e, no fundo, o que é que vê? Um país em convulsão, tudo excitado e aos berros, todos a quererem tudo ao mesmo tempo, já, neste instante, agora. Estás a ver? Lembras-te, com certeza. Mas o pior nem sequer era isso. O pior é quando te acusavam de teres estado em África a matar pretos. ‘Então voltaste, mataste muitos pretinhos, não foi?’ diziam-me. De repente, éramos os maus da fita e mesmo os amigos voltavam-nos as costas. Todos eram revolucionários, comunistas, socialistas, maoístas, eu sei lá. E depois nós que andámos ali a bater com elas, éramos desconsiderados, desrespeitados, insultados. Em nenhuma parte do mundo, os militares que combateram pelo seu país foram tratados desta forma, como se fossem criminosos. O problema foi da Nação, foi colectivo e não apenas nosso, dos combatentes. Limitámo-nos a cumprir ordens que nos vinham pela cadeia hierárquica e não éramos nenhuns nazis: não fizemos nada contra a nossa consciência, nem contra os nossos princípios. Sabes, o sermos tratados como lixo é que me doeu. Essa imagem é que está gravada no meu espírito. Esta gente foi profundamente ingrata. A bolanha e os tiros esquecem-se, mas quando os teus compatriotas e os teus supostos amigos te tratam como se fosses merda, aí não te esqueces, nunca mais.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14713: Notas de leitura (724): “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14721: Convívios (686): XI Encontro do pessoal da CART 1742 (Os Panteras) (Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), levado a efeito no passado dia 30 de Maio em Viana do Castelo (Abel Santos)

OS PANTERAS DA CART 1742

1. Em mensagem do nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), chegou até nós o rescaldo do XI Encontro do pessoal da sua Unidade, levado a efeito no passado dia 30 de Maio de 2015.


XI Almoço/Convívio e 46º aniversário do regresso a Lisboa (13 de Junho de 1969) da Companhia de Artilharia 1742 (OS PANTERAS) Nova Lamego e Buruntuma (1967/69)


Realizou-se no passado sábado 30 de Maio de 2015 na bonita cidade minhota de Viana de Castelo, o encontro anual com formatura no campo Senhora da Agonia da CART 1742. De seguida, a tropa e seus acompanhantes dirigiram-se para a igreja local para assistirem à missa de sufrágio pelos camaradas já falecidos.

Cumprida essa missão, a tropa respondendo à voz do seu comandante, dirigiu-se para o restaurante o Camelo em Santa Marta de Portuzelo local onde fui degustado um lauto manjar minhoto, como è apanágio das gentes minhotas, desde já os meus parabéns à gerência, e que são também extensivos ao Manuel Parente pela organização deste evento.

Bolo comemorativo

E assim o repasto foi-se prolongando, aqui e ali regado com o bom néctar da região, ao qual os camaradas teceram rasgados elogios. Mais tarde depois de já estarem alimentados e, regados, procedeu-se à distribuição de lembranças aos camaradas, o certificado de presença, uma peça de artesanato que atesta a passagem da CART 1742 por Viana do Castelo, e por fim o cerimonial de cortar o bolo comemorativo do encontro, e sua distribuição pelos presentes, acompanhado pelo habitual espumante, altura aproveitada para endereçar a pasta à nova equipa liderada pelo camarada José Ribeiro de Guimarães local do novo evento.


Peça de artesanato oferecido aos participantes, alusivo ao Encontro deste ano

Foi mais um dia de fervor castrense, e que mais uma vez ficou demonstrado o quanto estes homens, que apesar de terem constituído família, nunca esqueceram os laços que se interligaram no distante ano de1967, bem hajam.

Igreja da Senhora da Agonia

Barbosa, Figueiredo, P. Mendes, Lopes e Viola. 

Barbosa, Abel, Dantas e Pires

 Barbosa, P. Mendes, Ribeiro, J. Mendes e ex-Alf Mil Figueiredo

Texto, fotos e legendas: © Abel Santos
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14656: Convívios (685): A Magnifica Tabanca da Linha - Encontro de 21 de Maio de 2015 - Resumo das ocorrências (José Manuel Matos Dinis)

Guiné 63/74 - P14720: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (7): Levantar minas. Ponte interrompida

1. Em mensagem do dia 31 de Maio de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 7.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

7 - LEVANTAR MINAS. PONTE INTERROMPIDA

5 de Maio de 1973 (sábado)

É a primeira grande saída do meu grupo de combate (GC) para o mato, em sobreposição com um GC da Companhia que viemos render. Ao todo somos cerca de 60 homens. Vamos fazer um levantamento de minas antipessoais (A/P) num troço do carreiro turra de Uane. Para o interceptar, saímos por trilhos e a corta-mato, como se fôssemos para o rio Corubal, lá muito longe.
Os “velhinhos” parecem confiantes, mas são pouco faladores, como já tinha notado antes. Se eu tiver dúvidas em relação à progressão ou relacionadas com o campo de minas, já sei que terei de estar sempre a perguntar e esperar respostas curtas. Mas esta operação para mim é muito importante, porque depois de eles levantarem as minas que lá haviam instalado, terei de ser eu a voltar lá, só com o meu GC, e instalar as minhas.
[Hoje não entendo porque ficou a zona desminada até eu voltar lá de propósito para voltar a minar].

Depois de chegados à zona minada, o pessoal ficou na orla da mata à distância e os especialistas, eu incluído, dirigimo-nos para o campo aberto onde passa o carreiro, a fim de o localizar. Croquis nas mãos, procurando referências no terreno e picando sempre, chegámos ao carreiro e às minas. Não tendo anotado na altura, não recordo quantas eram mas sim que nenhuma tinha sido accionada e que todas foram levantadas sem problemas, embora com alguma demora devido às questões de segurança a respeitar. Fiquei com a impressão de que a implantação era demasiado óbvia, e tinha deixado alternativas aos turras para as evitarem. É uma lição a colher. Aproveitámos para trocar impressões sobre os problemas relacionados com a época do ano em que se implantam as minas e se fazem os croquis, para não haver grandes surpresas se as formos levantar numa época diferente. (...).

O que mais me agradou nesta operação, e porque não estava a contar, foi termos saído dali em direcção ao rio Corubal e não de volta ao aquartelamento, como era suposto. Foram mais uns 13 quilómetros por mata cerrada que ia mudando de características à medida que nos aproximávamos do rio, cada vez mais bela e luxuriante. Sem querer abusar de efusões líricas, anoto que era assim a África do meu imaginário. Muito diferente da mata grotesca e irregular, intercalada de savana árida, que já conheço. Caminho com entusiasmo, esquecido de fadigas, e tento absorver aquela beleza e a paz que transmite, só perturbada pelo latir, ao longe, dos macacos cães, segundo me informaram porque, com ingenuidade, tinha perguntado se morava para ali alguém..., e os latidos parecem de cães a sério.

Rio Corubal e ponte interrompida. 
Imagem retirada da Google Earth, tal como as duas seguintes, com a devida vénia.

Saímos da mata e deparámo-nos com um terreiro magnífico. Na nossa frente, ainda meio oculta, a surpresa que nos tinham prometido à saída do campo de minas: A PONTE INTERROMPIDA!
[Só muitos anos depois saberia o seu verdadeiro nome: Ponte Marechal Carmona. E, apesar de tantos anos decorridos, ainda hoje lamento não ter podido fotografar tudo o que vi ].

Entramos no tabuleiro da ponte e quase me emociono: tão longe de tudo, perdida no meio do mato, ali está uma obra portentosa e bela, a provar que naquele sítio remoto, houve gente a construí-la, houve gente a passá-la de uma margem para a outra do enorme rio.

Ponte interrompida e troço do tabuleiro que eu explorei.

Fico sempre impressionado quando, no meio do nada, encontro um vestígio da obra humana ainda que já inútil, como é o caso desta. Caminho ao longo deste troço da ponte atento ao estado de conservação, ainda razoável, do piso e das guardas laterais, até ficar perante o corte do tabuleiro onde a ponte é interrompida. Em baixo, o Corubal corre manso, como uma massa mole e negra que impressiona. A mata, nas duas margens, entra pelo rio dentro. Não se vislumbram pontos de penetração nas margens que indiciem travessias mas, dada a largura enorme do rio, não há certezas.

Pergunto aos graduados dos “velhinhos” quem cortou a ponte, mas não sabem dizer: «Diz-se que foram os sapadores da NT para impedir a passagem dos turras, mas também se diz que foram os turras para nos impedir a ligação entre Aldeia Formosa e o Xitole, Bambadinca, etc.». A hipótese de derrocada não é referida e, de facto, os cortes no tabuleiro parecem perfeitos demais para terem origem numa derrocada. Mas também é certo que se houvesse derrocada de pegões e o tabuleiro quebrasse pelas juntas, o corte pareceria perfeito. Ficará sempre a dúvida.

Ponte interrompida numa imagem Google Eart recente (2015), onde é visível um novo corte do tabuleiro, próximo da margem oposta. É por demais evidente que se trata de uma derrocada actual. Donde, apesar da longa separação temporal entre o primeiro corte e este, é de admitir que, afinal, a ponte ruiu simplesmente.


Chegamos a Nhala já tarde e exaustos. Para primeira saída para o mato, foi uma caminhada dura. Durante a formatura da ordem para verificações de segurança, antes do merecido descanso, tenho um dissabor com o meu GC que me deixou furioso. Os soldados andaram todo o dia carregados com as granadas de morteiro às costas e não levaram o respectivo tubo. Em caso de necessidade, apenas poderíamos municiar o pelotão “velhinho”! Como foi possível? Os furriéis não souberam responder, mas eram responsáveis por secções de homens e armamento. Certo é que o principal responsável fui eu. Mas o que mais me enfureceu foi ninguém me ter dito nada, a ver se passava, pois não acredito que ao longo de todo o dia não se tivessem apercebido da falha. Como lição valeu, e fica registada. Terei de estar mais vigilante.

(Ao transcrever notas como estas, bagatelas com mais de 40 anos, interrogo-me amiúde: que interesse tem tudo isto? E interessa a quem? Mas depois penso que é engraçado rever estas vivências com os olhos e o senso de quem já passou a barreira dos 60 anos. Éramos quase adolescentes, embora muitos com grandes responsabilidades. E pode ser que venha a ter ainda mais interesse para os meus descendentes. Sim, porque embora eu publique tudo isto no nosso Blogue, quiçá enfastiando os meus queridos camaradas, a razão última destas transcrições, (adiadas de ano para ano), é constituir uma espécie de espólio diarístico – não sei se lhe poderia chamar “diário” – a que juntarei as minhas fotografias, para os meus descendentes saberem algo mais desta fase da minha vida. Que nunca interessou à minha filha nem à restante família, nem aos amigos).

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14691: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (6): Chegada a Nhala

Guiné 63/74 - P14719: Agenda cultural (410): Os nossos camaradas Francisco Henriques da Silva e Manuel Barão da Cunha estarão no próximo dia 12, a partir das 16 horas na Feira do Livro de Lisboa, Pavilhão Âncora Editora, integrados no conjunto de autores do Programa "Fim do Império" a autografar as suas obras



1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva, ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999:

Caros amigos e camaradas de armas,
Integrado no conjunto de autores do Programa “Fim do Império” terei o maior gosto em contar com a vossa presença na sessão de autógrafos que terá lugar na Feira do Livro no próximo dia 12 de Junho, a partir das 16 horas.

Com um abraço amigo
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alferes miliciano de infantaria da CCaç 2402 e
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999)

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2. Mensagem do nosso camarada Manuel Barão da Cunha, Coronel de Cav Ref, que foi CMDT da CCAV 704/BCAV 705, Guiné, 1964/66:

Caríssimos, 
No próximo dia 12, 6.ª feira, na Feira do Livro, pavilhão de Âncora Editora (lado esquerdo de quem sobe), a partir das 16h00, haverá sessão de autógrafos com autores do «Programa Fim do Império», nomeadamente: 
Carlos Acabado, Daniel Gouveia, Albano Mendes de Matos, Castro de Figueiredo, M. Vieira Pinto, F. Henriques da Silva e M. Barão da Cunha.

Quem puder aparecer será bem-vindo. 

Fiquem bem, 
MBC

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Nota do editor

Último poste da série de 5 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14704: Agenda cultural (407): 3 dias, 30 filmes no feninino, 12 países... Festival Olhares do Mediterrâneo, 2º edição... Começa hoje,no Cinema São Jorge, integrado nas Festas de Lisboa

Guiné 63/74 - P14718: Inquérito online: "No TO da Guiné confesso que não tive relações com nenhuma mulher local"...Resultados preliminares (n=61 votantes): mais de metade (57%) diz que nunca "conheceu" (no sentido bíblico do termo) nenhuma guineense, fosse cristã, muçulmana ou animista



Guiné > Região do Óio > Canjambari > CCAÇ 2533 (1969/71) > Jovem mãe. (Foto inserida no documentário fotográfico anexo à brochura "Histórias da CCAÇ 2533" (*)


I. Mensagem enviada hoje a toda a Tabanca Grande, pelo correo interno

Assunto: Sondagem: "NO TO DA GUINÉ, CONFESSO QUE NÃO TIVE RELAÇÕES SEXUAIS COM NENHUMA MULHER LOCAL"

Amigos e camaradas:

1. É sempre tramado "falar com números" sobre realidades complexas e sensíveis sobre as quais não há (bem nunca chegará a haver) "investigação científica"...

O "olhómetro" pode dar  jeito, às vezes, mas não chega... 

Isto vem a propósito das "bocas" que ouvimos e que também mandamos acerca das relações (afetivas, sexuais, psicossociais...)  dos militares portugueses, metropolitanos, com as mulheres guineenses, durante a guerra colonial...(Grosso modo, de 1961 a 1974). (*)

Recordo aqui uma intervenção, recente, em 22 de maio último, do nosso camarada Jorge Cabral, no final da conferência sobre os "Filhos da Guerra", no Cinema São Jorge, em Lisboa:

"Defenderei até à morte a honra do soldado português na Guiné. Nós não eramos  nenhuns emprenhadores compulsivos. Mais: atrevo-me a dizer que 80% a 90% dos soldados portugueses na Guiné não tiveram quaisquer relações sexuais com mulheres africanas… E se querem falar de prostituição organizada (que no meu tempo praticamente se restringia a Bissau e, em pequena escala, a Bafatá), pois tenho a dizer que é muito maior hoje, só na capital da Guiné-Bissau, do que no meu tempo"…

2. Podemos falar, serena e honestamente, sobre este tema (que não deve ser tabu...), respondendo à sondagem em curso no nosso blogue  (votar diretamente no canto superior esquerdo) e mandando textos e comentários... 

Mais uma vez contamos com a participação ativa dos nossos camaradas que foram combatentes no TO da Guiné... Felizmente que ainda estamos vivos, ativos e saudáveis, para podermos ser nós, e não os outros,  a contar as nossas próprias histórias...

Um alfabravo fraterno. Luís Graça


II. Camarada: a "sondagem" admite teoricamente seis hipóteses de resposta... Deves escolher a que for mais apropriada ou adequda no teu caso. Responde com sinceridade. A resposta é anónima...

Sondagem: "NO TO DA GUINÉ, CONFESSO QUE NÃO TIVE RELAÇÕES SEXUAIS COM NENHUMA MULHER LOCAL"

1. Não, não tive

2. Sim, tive, pelo menos uma vez

3. Sim, tive mais do que uma vez

4. Sim, tive bastantes vezes

5. Sim, tive com muita frequência

6. Não sei, já não me recordo bem



III. No primeiro dia, responderam 61 camaradas... Eis os resultados preliminares, quando faltam 5 dias para encerrar a votação:

1. Não, não tive  > 35 (57%)

2. Sim, tive, pelo menos uma vez  > 4 (6%)

3. Sim, tive mais do que uma vez  > 13 (21%)

4. Sim, tive bastantes vezes  > 4 (6%)

5. Sim, tive com muita frequência  > 5 (8%)

6. Não sei, já não me recordo bem  > 0 (0%)


Votos apurados: 61
Dias que restam para votar: 5

IV. Alguns comentários que já nos chegaram, e que vamos manter anónimos, por razões de garantia de sigilio e confidencialidade:

(i) Não, não tive, o medo de qualquer problema de saúde foi mais forte que a vontade de dar umas quecas!!!

(ii) Não tive relações sexuais com nativas.

(iii) Não, não tive.

(iv) Não, não tive.

(v) Não tive.

(vi) Sim,  tive pelo menos uma vez.

(vii) Sim,  uma vez,  mas foi no Pilão,  em Bissau,  nas "mulheres da vida" que na altura havia,  na minha passagem já no regresso [à metrópole].
[
(viii) Resposta 3 [ . Sim, tive mais do que uma vez.]

(ix) Sobre tão íntima situação, devo informar que sim, senhor, tive várias vezes seguidas. É natural que isso faça desequilibrar a balança e, como tal, cá estou a responder, caso seja tido em conta.

(x) Resposta 5 [. Sim, tive com muita frequência.]


V. Apelo dos editores ao pessoal da Tabanca Grande:

Camarada: è importante que votes... Não só para animarmos o blogue neste fim, acolarado, de primavera, mas também para podermos ter uma razoável amostra...

No primeiro  dia, atingimos os 61 votantes. Podemos calmamente chegar aos 200, com um maior empenhamento de todos...

Não se trata de nenhum "estudo científico", é uma mera auscultação de opinião. Interessa-nos a tua opinião sincera e honesta... Imagina que estás a responder a uma pergunta dos teus filhos, ou até da tua companheira.

NÃO RESPONDAS POR EMAIL Insere o teu voto automaticamente no espaço criado para esse efeito, ao canto superior esquerdo do blogue. O voto é anónimo, queremos que te sintas inteiramente à vontade...

Um grande abraço. Os editores.

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Nota do editor:

Vd postes de

8 de junho de  2015 > Guiné 63/74 - P14715: (Ex)citações (279): Sexo em tempo de guerra... Em Jumbembem, o pessoal da CCAV 488 entranhou a ideia de que as bajudas da tabanca eram da família... Tivemos um relacionamento com a população, baseado na sã convivência e no respeito mútuo, de tal modo que nos despedimos em lágrimas, sinceras (Armor Pires Mota, autor de "Estranha Noiva de Guerra", 2008, ex-alf mil, CCAV 488, 1963/65)

7 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14708: (Ex)citações (276): Sexo em tempo de guerra... De Ganturé ao Pilão (Mário Gaspar, ex-fur mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

5 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14701: (Ex)citações (275): Hospitalidade, brejeirice e ... instinto de sobrevivência das mulheres e bajudas fulas de Nhala, na receção aos "periquitos", em 29/4/1973 (António Murta, ex-alf mil inf MA, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)


Guiné 63/74 - P14717: Histórias da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71) (Luís Nascimento / Joaquim Lessa): Parte XXXI: um data para recordar, o dia 1 de abril de 1970, dia das mentiras... (Armando Costa Tavares, fur mil at inf, 3º pelotão)


Continuação da publicação das "histórias da CCAÇ 2533", a partir do documento editado pelo ex-1º cabo quarteleiro, Joaquim Lessa, e impresso na Tipografia Lessa, na Maia (115 pp. + 30 pp, inumeradas, de fotografias). (*)

Gostamos de recordar (e agradecer o envio de) esta brochura, com cerca de 6 dezenas de curtas histórias, de uma a duas páginas, e profusamente ilustrada (cerca de meia centena de fotos). Chegou às mãos dos nossos editores, em suporte digital, através do Luís Nascimento, que vive em Viseu, e que também nos facultou um exemplar em papel. para consulta.

Hoje reproduz-se um texto da autoria do ex-fur mil at inf, Armando Costa Tavares, do 3º pelotão : uma data para recordar, o dia 1 de abril de 1970, dia das mentiras (pp.99/100).  Recorde-se, para melhor seentender a história,  que o comandnate da CCAÇ 2533, era o cap inf Sidónio Martins Ribeiro da Silva (hoje cor inf ref).



Guiné > Região do Oio > Canjambari > CCAÇ 2533 (1969/71) > Uma saída para o mato, em operações... O melhor era o regresso, "sãos e salvos", se possível já não a pé, mas à boleia, no transporte da "carreira Lar, doce lar",,, (Foto inserida no livro, s/a, s/d).







In Histórias da CCAÇ 2533. Edição de Joaquim Lessa, tipografia Lessa, Maia, s/d, pp. 99/100.

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Nota do editor:

Último poste da série > 18 DE MAIO DE 2015 > Guiné 63/74 - P14631: Histórias da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71) (Luís Nascimento / Joaquim Lessa): Parte XXX: (i) 'fogo amigo' em dia de sexta-feira treze; e (ii) perdido na selva...por uma hora! (Timóteo Rosa, alf mil, 4º Gr Comb)

Guiné 63/74 - P14716: Parabéns a você (918): Ernesto Duarte, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 1421 (Guiné, 1965/67)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Junho de 2015 Guiné 63/74 - P14711: Parabéns a você (917): Antero Santos, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3566 e CCAÇ 18 (Guiné, 1973/74)

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14715: (Ex)citações (279): Sexo em tempo de guerra... Em Jumbembem, o pessoal da CCAV 488 entranhou a ideia de que as bajudas da tabanca eram da família... Tivemos um relacionamento com a população, baseado na sã convivência e no respeito mútuo, de tal modo que nos despedimos em lágrimas, sinceras (Armor Pires Mota, autor de "Estranha Noiva de Guerra", 2008, ex-alf mil, CCAV 488, 1963/65)



Guiné > Região do Oio > Farim > Jumbembem > CCAV 488 (1963/65) > "Mostra de grande empatia que se estabeleceu entre a população e a tropa. Cp Fernando Tomaz filmando a menina Usita, no fim de uma dança. Criança que, rapariga feita e bonita como era, se enamorou, de verdade, de um alferes. Teria uns belos 18 anos. Casou, foi viver para Bissau, mas não foi feliz. Morreu cedo, vítima de violência doméstica e de saudades do seu alferes."



Guiné > Região do Oio > Farim > Jumbembem > CCAV 488 (1963/65) > "Grupo de bajudas cujas blusas lhes foram ofertadas pelos alferes de CCAV 488. Houve lágrimas sinceros quando a tabanca soube, em 13 de junho de 1965, que íamos ser rendidos" (*)...

Fotos (e legendas): © Armor Pires Mota (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


1. Mensagem de Armor Pires Mota [ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, escritor, autor dos livros, entre outros,  o "Tarrafo", 1965 (com edição facsimilada, com as anotações do "lapis azul" dos censores, em 2013); "Guiné, Sol e Sangue, 1968; "Cabo Donato, Pastor de Raparigas", 1991; "Estranha Noiva de Guerra, 1995: e a "Cubana que dançava flamenco", 2008, podendo ser adquiridos pela interneta, aqui]

O bairradino Armor Pires Mota, c. 1963/65


Data: 8 de junho de 2015 às 12:14

Assunto: RE: Sondagem: "No TO da Guiné confesso que não tive relações sexuais com nenhuma mulher local"


Meu caro Luis Graça:

Vi a vossa iniciativa corajosa, oportuna, e apetece-me deixar aqui uma pequena nota sobre afectividades e relações com as nativas (bajudas).(**)

Vou-me cingir ao acantonamento da companhia de cavalaria 488 (batalhão 490, de intervenção,  na região de Farim, mais concretamente em Jumbembem, que era localidade onde havia um cabo verdeano que explorava uma serração.

Havia casa de habitação e pouco mais. A serração estava já vandalizada. No entanto, passado algum tempo, fomos recolher, a pedido do "homem grande", a gente de uma tabanca que estava a ser muito visitada pelos guerrilheiros, tentando o seu apoio, e queriam estar junto da tropa. Se o desejavam, assim acontecia. Montaram a sua tabanca. Viviam dentro do arame farpado, conviviam com a tropa, trabalhavam as bolanhas, as mulheres, de crianças às costas, enquanto os homens ficavam a conversar no bentabá.

Dentro desta situação, era necessário fomentar a sã convivência e o respeito entre todos, respeitar as tradições religiosas. De algum modo, éramos todos uma família e as crianças, que nos iam esperar aos frágeis portões da arame farpado, que abriam tanto para Farim como para Cuntima, sobretudo para Canjambari, onde havia casas de mato e guerrilheiros instalados, para saber se tudo tinha corrido bem, para nos darem as suas mãos, o seu sorriso ternurento, elas  eram a nossa alegria, tornavam o local menos árido.

Foi falado e definido entre o capitão Arrabaça e os oficiais milicianos e sargentos que a nossa melhor acção psico-social era respeitar as bajudas e as mulheres da tabanca. Todos estivemos de acordo, não poderia ser de outro modo. Para não haver melindres, atritos desnecessários, uma guerra fria dentro de outra guerra bem quente. Esse desejo foi transmitido a todos os soldados, como lema ideal do nosso futuro comportamento.

Como o exemplo vinha de cima e vinha (alferes e furriéis), os soldados abstinham-se de relações sexuais com as raparigas, ainda que por vezes conversassem sobre esteira estendida como jovens que precisam de conversar e de rir na verdura dos anos e dos sonhos. Mas não iam além. A não ser aquela eterna tentação do soldado aproveitar a colocar a mãozinha marota sobre os seios bem firmes ("mama firme") das raparigas, e não se coibiam de tirar assim uma foto para mais tarde recordar.

 Se o respeito já acontecia, com a chegada do alferes Bretão, açoreano, que tivera problemas com a PIDE e fora para ali mobilizado, esse clima de bom entendimento acentuou-se. O Bretão comprou-lhes pano para as blusas, vestimos as "nossa" raparigas. Outra acção de carácter psico-social, foi a construção de uma nova tabanca, com a ajuda dos soldados que empreenderam fazer adobes de terra preta e ajudar a erguer depois as paredes. A colocação do telhado já era com os homens e rapazes. Alinhadas, até foram dados nomes de ruas.

Queremos dizer que o Bretão era abertamente contra a guerra, mas nunca se recusou a fazer qualquer operação. Só dizia: "não matem ninguém, mas, se nos atacarem, não nos deixemos morrer". Era a sua filosofia. De certo que os soldados, na força da virilidade, não tivessem as tentações da carne, mas souberam sempre separar fronteiras. Eram da família as raparigas. Nunca me constou que algum levasse bajuda para o mato e muito menos que deixasse por ali geração. Não consta. Mas sei que algumas raparigas se apaixonavam por este ou aquele, era normal.

Havia uma miúda, a Usa, aí de uns dez anos ou pouco mais, a quem fora ensinado a ler. Era uma miúda muito querida, que chegou a gostar de um furriel e, passados anos, de um alferes de companhia que estacionara também em Jumbembem, e mais tarde, rapariga feita e muito bela de rosto, busto perfeito, se havia de apaixonar por um alferes, querendo vir com ele para Lisboa. Um amor forte. Cheguei a ver a fotografia em toda a sua beleza. Não viera para Lisboa e havia de casar e ir viver para Bissau, onde foi vitima de violência doméstica e ali veio a falecer nova, com saudades do seu alferes.


Esta notícia que me chegou com a fotografia, deixou-me triste, fiz um filme de Jumbembem e da gente negra, lembrei o grupo de crianças que varriam a parada e entre elas lá estava sorridente a Usa.

Isto é o que podemos testemunhar das nossas boas relações humanas com a gente negra da tabanca de Jumbembem, porque as outras relações, se não estavam proibidas, os soldados entranharam a ideia de família e foi isso que concorreu para ninguém fazer filhos em tempo de guerra.

Armor Pires Mota [, foto atual,  à  esquerda]


Guiné 63/74 - P14714: Brunhoso há 50 anos (5): Uma sociedade paternalista (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 31 de Maio de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos mais uma vez da sua terra natal de há 50 anos.


Brunhoso há 50 anos

5 - Uma sociedade paternalista

Nesses tempos primitivos da minha meninice, que eu por vezes chego a comparar com os tempos bíblicos pela pobreza, pela simplicidade e despojamento nas relações entre pessoas e nas suas relações com a natureza e com os animais, íamos vivendo de acordo com as leis seculares dos nossos antepassados.

O episódio representado pelo presépio, segundo a história ou a lenda, com o Deus menino, Maria, José, o burro e a vaca, era um quadro que podia ser considerado natural, em Brunhoso, talvez também por isso as pessoas adoravam esse Deus humilde, filho de pais pobres como eles, que conviviam tal como eles com as vacas tão pacientes e trabalhadoras e com os burros tão calmos e sempre afáveis para suportar o peso dos donos ou outras cargas. As pessoas amavam-se e respeitavam-se, sem manifestações excessivas, dentro de códigos que tinham recebido dos seus antepassados.

Eram felizes ou não dentro desses condicionalismos tão estreitos e antiquados que remontavam já a tantos séculos. As mulheres tinham tantos filhos, como a natureza lhes impunha, que criavam com amor, beijos, com o leite materno e a alimentação possível, os homens trabalhavam nos campos de sol a sol para garantir pão para todos. As mulheres falavam do seu homem, os homens falavam da "minha" (todos os outros a conheciam) geralmente com respeito de parte a parte.

Na taberna, ("venda", dizia o meu avó Francisco) um local de convívio, onde os homens da aldeia, por vezes se juntavam para alegrar a vida com uns copos de vinho, ou no Balcão, a praça principal, onde também se juntavam, fosse inverno ou verão, para trocar ideias e conhecimentos acerca da terra, dos animais e das culturas, sempre vi homens, que embora mantendo um aspecto calmo e sério, não deixavam de sorrir pelas larachas de uns e outros. Não há dúvida que a actividade física faz bem ao corpo e ao espírito. 

 Além disso eles eram os chefes da batalha que dia a dia travavam com os elementos vindos do céu, da terra, da água,. do vento e das trovoadas, que condicionavam as boas ou más colheitas. Santa Bárbara, essa santa protectora dos lavradores a quem faziam uma festa tão grande e uma procissão tamanha a que por vezes associavam juntas de bois e vacas, nem sempre os libertava das secas e das grandes trovoadas.

Era uma sociedade paternalista, uma sociedade governada por homens. Eles, a par da autoridade e governo da casa, tinham que garantir o sustento da família. As mulheres pariam muitos filhos, cuidavam deles, do arranjo da casa e doutras tarefas domésticas. Ao tempo havia em Portugal sociedades matriarcais, onde o poder pertencia sobretudo às mulheres que eram também as principais responsáveis pelos meios de sustento da família.

Bem perto de Brunhoso, no planalto mirandês, a sociedade era matriarcal, eram elas que lavravam a terra e tratavam dos campos, a par doutras tarefas domésticas. No Minho também eram as mulheres que geralmente lavravam a terra, pelo que dá a impressão que quem mandava tinha que saber cuidar dos campos para lá doutras actividades. Sei também que nesse tempo as raparigas minhotas geralmente casavam com rapazes mais novos do que elas pelo menos dois ou três anos. Seria uma forma de garantir a continuidade do matriarcado?

Miguel Torga, no livro "Portugal", transcreve a seguinte quadra popular do Minho:

Da minha saia amarela
Fiz as calças do meu home;
Com a alegria das calças
Há três dias que não come

Nesse tempo esta quadra não poderia ser recitada ou cantada em sociedades paternalistas, Torga diz que a atrevida podia levar um tiro, que eu acho exagerado, talvez uma bofetada.

A sociedade de Brunhoso, moldada por esse poder paternalista, era contida nas palavras e gestos afectivos, impróprios de machos dominadores pois era assim que os homens eram educados. Será exagerado escrever isto, pois no silêncio das noites e no recato e aconchego possível dos casais, poderia também haver lugar para momentos de afecto e ternura para lá das relações sexuais, mais ou menos instintivas.

As mulheres tinham os seus momentos de relaxe e diversão. apesar do trabalho, quando se juntavam nos ribeiros ou nos tanques a lavar as roupas da casa.

A propósito, um tio meu que já partiu, leis da vida, contou-me uma pequena história passada numa aldeia da Beira Alta:
- Chico, disse-me ele, num dia de Inverno, eu ia com a tua tia de mula a apanhar o comboio para Lisboa, a Celorico da Beira, para ela consultar um médico. Ao passarmos por uma aldeia estavam aí cerca de 20 mulheres, num tanque, a lavar a roupa, com as pernas metidas na água. Eu perguntei-lhes se não teriam frio. A mais faladora, respondeu-me que não, que tinham o forno quente. Então disse-lhes que tinha as mãos muito frias, se não mas deixavam aquecer no forno delas. A mesma mulher respondeu que nesse momento não podiam porque estavam a assar castanhas.

Este diálogo verídico, não sei se um pouco fantasiado, também transmite um pouco do humor dessas mulheres apesar da dureza dos campos, dos homens e da vida.

Nunca irei esquecer o dia em que, ainda adolescente, tive que fugir de um bando de mulheres que obedecendo à palavra de ordem de uma mais divertida disse para as outras: "vamos cantar os galos ao patrão". Andavam a mondar as ervas daninhas dum terra de trigo nossa, e o meu pai tinha-me mandado ir com elas. Não passou de uma ameaça em tom de brincadeira, pois essa prática de "cantar os galos", depois de lhe baixarem as calças, aos rapazes, da iniciativa das mulheres, como calculam, não era nada agradável.

Os sentimentos estavam calibrados em vivências de dureza que não admitiam príncipes, nem sonhos impossíveis. O ajustamento dos casais era feito dentro dos teres e haveres de cada um e um ajustamento psicológico que eles e elas pela idade dos vinte anos iam fazendo em conversas e em namoricos ligeiros.

Recordo-me que eu sendo da terra, mas sendo também um observador estranho, porque da minha idade era o único rapaz que estudava fora da terra, talvez a partir dos 17 anos, os rapazes da minha idade começaram por namorar e passado um ano ou nem tanto, praticamente todos tinham trocado de namoradas entre eles. Para que se entenda bem, realmente não havia troca, havia sim um acabar e recomeçar de novo para uma melhor combinação de personalidades.

Nesse tempo os homens e mulheres da minha aldeia, no casamento arriscavam todo o projecto de uma vida futura, que consciente ou inconscientemente era planeado para garantir o futuro dos filhos; pelo trabalho apenas limitado pelo descanso necessário para recomeçar de novo; pelo sexo que devia sobretudo garantir o nascimentos de filhos saudáveis.

Desde o amor platónico, ao amor cortês, ao amor romântico mais carnal ou idílico, há mais formas de amar do que formas de cozinhar bacalhau. O amor intelectualizado em parte como a filosofia, nasce da contemplação e do ócio. Casanova foi um intelectual e escritor, Dante Petrarca e Camões foram grandes poetas. Muitos filósofos escreveram ensaios sobre o amor.

O amor entre os meus conterrâneos seria pouco complicado, seria um amor que se confundia com o amor à família, o amor à terra, aos campos de trigo, às hortas, às oliveiras, aos animais domésticos. Era um amor que não admitia desvios porque era também um compromisso pela palavra dada perante o padre e outras testemunhas e cujo cumprimento seria vigiado por toda a comunidade. As relações sexuais, entre eles, satisfatórias ou não, era um segredo que não revelavam. Entre eles não se falava em amor, essa palavra era demasiado delicada para se coadunar com a sua condição de pequenos ou médios lavradores ou filhos sem terra, de terras que tinham que trabalhar para outros. Falar de sentimentos entre os casais, ou ter manifestações públicas sentimentais eram actos considerados impróprios e impúdicos. Os sentimentos entre os dois sexos estavam contaminados pela atração sexual que era um tabu religioso e social.

Por vezes, raramente, ouvia-se uma estória picante real ou um pouco inventada como a de um lavrador, conheci-o ainda, que ao regressar do trabalho quando metia as vacas na loja, que ficava debaixo da casa, ouviu a mulher, por cima, a gemer com dores em trabalhos de parto. Ele que era um brincalhão impenitente pôs-se a imitar os gemidos da mulher. Ela apercebeu-se e prometeu-lhe que nunca mais iria poder brincar com o seu sofrimento daquela forma.
O que se passou depois ninguém sabe, o que se sabe é que eles só tiveram aquela filha, por sinal alegre e simpática, como o pai. Apesar das vozes do povo, esse lavrador que nunca parava, ele e as vacas, foi um homem sempre alegre e divertido pelas piadas que ia distribuindo a uns e outros. Enfim há pessoas que nasceram para serem felizes seja quais forem as contrariedades com que se deparem.

Este homem bondoso e galhofeiro que tinha sempre uma palavra para todos, fossem jovens ou velhos, faz parte da minha galeria dos notáveis de Brunhoso. Como diziam os antigos "que Deus o guarde!"
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14426: Brunhoso há 50 anos (4): A Páscoa (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Guiné 63/74 - P14713: Notas de leitura (724): “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2014:

Queridos amigos,
Não é habitual saltar da Guiné para outros teatros de operações. Exceciono quando se justifica o termo de comparação ou para chamar à atenção para literatura relevante que é imperdoável ignorar.
“Olhos de Caçador” é de facto um livro assombroso, inesquecível. O publicista Luís Caetano observou que se trata de um dos melhores romances-testemunho sobre a guerra colonial.
A arquitetura da obra é primorosa, Brito soube cozinhar com todos os ingredientes um livro avassalador, um livro cru e excessivo como um retábulo barroco.
O livro tem um preço muito abordável e não dececionará quem viveu no mato, atacou e foi atacado.

Um abraço do
Mário


Olhos de Caçador: Livro soberbo, o poliedro das brutalidades da guerra (1)

Beja Santos

Chama-se “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014. Temos aqui a guerra em toda a sua dimensão, um homem reduzido a escombro relata a sua mobilização para Moçambique e descreve sem tibiezas a grande camaradagem e os horrores que viveu no Planalto dos Macondes. Ele chama-se Zé Fraga, foi contrabandista e passador de emigrantes, cresceu a viver de expedientes na Serra da Gardunha, foi preso e mobilizado compulsivamente para Moçambique. O leitor que se prepare, pois, como observou Lídia Jorge, trata-se de um documento fortíssimo, muito bem escrito.

António Brito brinda-nos com uma história muito bem contada, com os ingredientes indispensáveis: a linguagem da caserna, a sensualidade sem bridas, a brutalidade da selva, a agonia e o êxtase plasmados em corpos estropiados ou a satisfação da missão bem cumprida. É um livro burilado em excessos, o leitor não tem pausas e tem que se conformar com as desmesuras nos ódios, nas infâmias, na verbosidade desbragada. Logo assim, no arranque:
“Passou muito tempo desde que matei um homem pela primeira vez. Na minha cabeça embotada pelo vinho e pelo peso dos anos, recordo com uma ponta de vaidade o destemor do meu golpe, o ar de espanto, a incredulidade do filho da puta em que enterrei a navalha varando-lhe as tripas (…) Vivo um tempo sem regresso nem esperança. Todas as noites me arrasto num chão tão difícil como a serra onde combati. É uma calçada demolidora, difícil de subir, assaltada pelo vento que me vergasta com fúria. Caminho inchado de vinho merdoso, tropeço aqui e além nos passos molengões de uma prótese a fingir de perna e de uma perna a rebentar de artrose. A caminho da decadência, dissolvo-me dia e noite sem ter onde cair morto”.

E finalmente temos um mote para o relato que se segue, a peregrinação de Zé Fraga vai começar:
“Mas hoje, antes que a senhora da gadanha afiada decida vir buscar-me, recordarei pela última vez como tudo começou, quando me atiraram para dentro do navio e África me tragou com o seu apetite voraz”.

Os excessos deste livro soberbo medem-se de diferentes maneiras. Os camaradas são conhecidos por alcunhas: Cu de Chumbo, o Peida Grande, o Sacristão, o Caga Lume, o comandante da companhia é o Galo Doido. Só pessoas excecionais, como o alferes Perdigoto e o sargento Bezerra têm direito ao seu próprio nome. Viajam no Niassa, Zé Fraga vai nos porões de carga. Passou os últimos dias de embarque no Bairro Alto na pensão de Julieta Ganhão. Acamaradam, fazem petiscadas, cantam, assim desafiam a monotonia entre enjoos, vómitos, jogos de lerpa, bebedeiras, dolência e exercícios de salvamento. Recorda os seus tempos de contrabando e agora, antes da partida, as idas às meninas. Casualmente, conhece uma loiraça e apalpou-a a sorrelfa, mais tarde saberá que é a mulher de um general. Chegam a Lourenço Marques e logo se mete em andança, a polícia militar leva-o a bordo. Os confrontos com o Galo Doido sobem de tom, e dentro do excesso peculiar de todo este romance ouvimos o comandante de companhia encrespado, a azoar-lhe o juízo:
“Ao longo da minha vida de militar, percorri este mundo pagão, espalhado pelas terras de África. Vi muitos filhos da mãe com os cornos no ar, conheci beberrões, zaragateiros, indisciplinados, ladrões, sabichões, intelectuais da treta. Vi toda essa fauna desgraçada acolhida por este pobre Exército. Passaram por estas mãos calejadas todos os vícios expelidos por esses desgraçados sem ética, sem honra, vergastados pela falta de brio. E sempre, sempre essas bestas foram trazidas à minha presença para o castigo reparador. E sempre esses infelizes mostraram arrependimento, sempre imploraram o perdão ou a redução da sanção. Mas tu não, tu não. Deves ter sido enxertado nalguma cabra bravia, sodomizado por algum touro da lezíria, porque és uma besta, porque não distingues a selva da civilização”.

Zé Fraga é metido na prisão, os camaradas dão-lhe apoio. E assim chegam a Porto Amélia, “o Niassa expelia soldados do ventre bojudo como cagalhões em tripa cheia”. Zé Fraga entra em contacto com marginais, gente que lhe propõe negócios, coisas como a troca de bidões de gasóleo por bidões de água. E são informados do seu destino, Magolé, passam por Chai, vão-se deslocando de aquartelamento em aquartelamento, as equipas de sapadores avançam para localizar as minas enterradas na picada. É uma belíssima descrição:
“Passam por nós com ar abatido, o rosto inquieto coberto de sombras. Com suavidade, perfuram o piso de areia onde assentarão as rodas dos camiões que seguem atrás. São médicos da estrada que auscultam a barriga do doente. Pressionam a areia em busca de tumores ocultos para os extirpar, para repor a saúde no chão infecto. Cada passo é feito com moderação, quase com timidez, enterrando a pica na terra como uma seringa comprida, à espera de ouvir o som cavo do bico de ferro a bater na caixa da mina. Para os sapadores o perigo não vem da mina anticarro. Se os pés passarem por cima, são precisos duzentos e cinquenta quilos para quebrar a cavilha e a fazer rebentar. O corpo do sapador não tem esse peso. Só as viaturas que o seguem. O perigo para o sapador vem da minha antipessoal, pronta a explodir ao mais ligeiro toque da bota, ao mais pequeno fervilhar de areia”.

E surge a primeira vítima, nessa progressão infernal, a caminho de Magolé:  
“Tombado no chão, imóvel, coberto de terra e sangue, o camuflado esfarrapado até à cintura, está o corpo do primeiro soldado que se abrigou do sol. Uma das pernas, arrancada pelo joelho, pende grotescamente numa massa disforme de onde sobressai a alvura dos tendões. O socorrista fadiga-se com o garrote (…) O ferido parou de gemer. Entrou em choque. O corpo treme como se fosse Inverno. Um fio de baba corre-lhe da boca suja de terra. A outra perna, apesar de inteira, está numa lástima, dilacerada, cheia de golpes, cravejada de grãos de areia. Parecem borbulhas escuras”.

O primeiro jantar em Magolé é praxado por uma flagelação dos frelimos:
“Mas antes que alguém leve a colher à boca, a noite enlouquece com os estrondos dos primeiros rebentamentos. A fila do jantar desfez-se. Os homens correm céleres em busca de segurança. Saltam para dentro dos abrigos, atiram-se para debaixo das viaturas, mergulham nas valas da trincheira, rastejam pelo chão protegendo-se atrás das árvores. Alapam-se à terra, cosem-se com o pó. Ninguém quer ser apanhado por o furacão de estilhaços que esburaca quem se encontrar de pé. O que mais impressiona é o silêncio que se abate em volta. Duas centenas de homens, e nem um pio. Ninguém fala, ninguém protesta, ninguém grita, ninguém dá ordens ou pede seja o que for. Cada um encontra o seu canto para viver, para implorar proteção, para se borrar de medo, para sufocar de pânico, para se deixar matar. Gemidos, gritos de socorro, apelos pelo enfermeiro ouvem-se nos intervalos de explosões. Ninguém os vai socorrer. Ninguém ousa pôr-se de pé no escuro e ser varado por o ferro dos estilhaços”.

Zé Fraga está em fúria, bem arrependido de se ter sentido fascinado por África:
Nunca devia ter posto os pés no Niassa. Devia ter segui os emigrantes que ajudei a fugir para a Europa. Regressei, e a bófia deitou-me a mão, chutando-me para dentro deste cagalhão malcheiroso. Não perguntaram se queria vir, não ouviram a minha opinião. Não sabem que um leão da savana não se deixa domar nem faz a vontade ao domador?”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14712: Notas de leitura (723): "Cabra Cega": tem valor acrescentado, é uma narração da guerra feita por quem lá andou... Aivecas fomos todos nós (Jorge Ribeiro)

Guiné 63/74 - P14712: Notas de leitura (723): "Cabra Cega": tem valor acrescentado, é uma narração da guerra feita por quem lá andou... Aivecas fomos todos nós (Jorge Ribeiro)


Matosisnhos > Biblioteca Municipal Florbela Espanca > 3 de junho de 2015 >  Sessão de lançamento do livro Cabra Cega – do Seminário para a Guerra Colonial, de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo literário de A. Marques Lopes) (Lisboa, Chaido Editora, 2015): Aspeto parcial da mesa: da esquerda para a direita, o escritor Jorge Ribeiro (que fez a apresentação do livro) e o nosso camarada A. Marques Lopes. 

Foto (e legenda): © Carlos Vinhal (2015): Todos os direitos reservados


1. Cabra Cega – do Seminário para a Guerra Colonial: apresentação por Jorge Ribeiro (*)


[Texto enviado por A. Marques Lopes, no passado dia 6, para publicação no blogue]


Cabra Cega – do Seminário para a Guerra Colonial é um livro surpreendente.
 
Há muitos livros de memórias. A maioria são relatos muito pessoais, memórias exaltantes, inúmeras referências a experiências de camaradagem, de entreajuda na picada, cenas no aquartelamento, piadas ou anedotas picada fora, saudades da família, das namoradas. Mas quanto a cenas de guerra - muito poucas. De resto, era assim que escreviam os aerogramas e as cartas à família, salvando-as do sobressalto.

Mas é raro um testemunho como Cabra Cega, porque está dentro da guerra. É a guerra vivida, sofrida em direto. E isto tem muito valor. Como se não bastasse, também fala do inimigo.

A maioria do milhão e tal que combateu nas colónias veio afetada, sofreu e ainda sofre duma doença que não existia no catálogo português – DPTS, a síndrome pós-traumático do stress de guerra.

Traumas, trazer recordações recalcadas, libertar emoções sofridas.

Ler, conversar, ver filmes, ou escrever. No caso do autor de Cabra Cega, ele faz a sua própria catarse. E fá-la pormenorizadamente, completa.

António Aiveca, a figura central da obra, viveu uma juventude diferente. Ingressou num seminário, e a diferença é a educação. Como a história dele é cronológica, o início do livro retrata o sofrimento do futuro padre: aceitar as ordens superiores e os sacrifícios, não se queixar de nada, obedecer ao chamamento de Deus, amar o martírio e cultivar permanentemente a obediência.

É a primeira parte do Cabra Cega, muito bem explicada, pois se entendermos isto compreenderemos facilmente todo o livro. Isto é, o autor traça ao mesmo tempo o quadro das contradições da religião, de tratamento frontal, que infalivelmente vão por fim ao tal chamamento. E do seminário para o quartel, quando Deus menos espera, é um tiro.

A partir daqui é a via sacra de qualquer futuro combatente: as peculiaridades da recruta, a especialidade, a primeira colocação, a ordem de mobilização, o embarque … e a chegada a Bissau. Instalação no mato e primeira operação. E as contradições sempre presentes no relato de vida. Os soldados a caírem como tordos e a reflexão sempre presente: então Deus deixa-nos morrer assim, eu que não tenho nada a ver com isto… nem isto é meu, nem eu quero isto para nada!

A segunda parte do livro torna-se, assim, concisa e não poucas vezes arrebatadora. Porquê? Porque para quem não foi à guerra pode ter a certeza que se passou assim. Isto foi verdade. Para quem lá esteve, o autor ajuda a fazer a catarse. Haverá sempre lugar para livros como Cabra Cega.

Dois terços da obra, praticamente, são diálogos. É a fórmula ideal para nos fazer reviver tudo a cada palavra escrita. É um processo que o autor utiliza muito bem, que dá para o elogio e a crítica – a opinião.

A narração de coisas por vezes terríveis (a guerra é uma coisa terrível) mas adornada pelo sistema político, o regime que enquadrava a guerra colonial: o falso patriotismo, a caridade para com o soldadinho coitadinho que ficou sem uma perna, o ter cuidado naquilo que se diz, a rádio que transmitia infalivelmente o futebol e os fados para aquecer os corações, lá longe. «Anda tudo a distrair-me», descobre o Aiveca, um belo dia.

Partilhar a realidade. Descrever as cenas mais dramáticas. Experimentar o pânico, bastava pensar Os Turras estão a ver-nos! Constatar que a preparação que nos deram não tinha nada a ver com o que nos confrontamos. A imagem dos mortos que nunca mais se esquece. O chico do bar de oficiais a dizer O´ nosso alferes não pode estar aí sentado de camuflado – suja o sofá. O Ferreira que se deitou na picada e se recursou a andar mais. O reencontro no mato de camaradas da…cidade da Metrópole – a confraternização mas também as rivalidadesinhas. Os que acarretam do mato o ferido, às costas, e ele morre à chegada.

Cabra Cega tem valor acrescentado. É uma narração da guerra feita por quem lá andou. O Aiveca é protagonista e testemunha. E isto é uma garantia - sei do que falo. Ninguém conta o dia a dia da guerra como nós, os que lá andamos. Todos, ou quase todos, ver-se-ão ao espelho ao ler Cabra Cega - do Seminário para a Guerra Colonial.

O Aiveca é o alter-ego do João Gaspar Carrasqueira. O João Gaspar Carrasqueira é o alter-ego do António Marques Lopes. Aivecas fomos nós todos!

Jorge Ribeiro Biblioteca Florbela Espanca / 3 de Junho 2015 (**)


2. Nota sobre o apresentador, Jorge Ribeiro,  jornatlista e escritor, que também foi  combatente na guerra colonial, em Moçambique:

Jorge Ribeiro nasceu no Porto em 1949. Jornalista, começou a escrever no semanário "Actualidades", no "Norte Desportivo", e a fazer rádio nos Emissores do Norte Reunidos (1969). Na tropa fez a  especialidade de Fotografia e Cinema. Foi mobilizado para Moçambique. Regressou a 24 de Abril de 1974.

De regresso à vida civil, continou a dedicar-se ao jornalismo e à rádio. Estudou jornalismo em Paris e em Praga.  Em 1978 foi trabalhar para o "JN", onde foi chefe de redacção.  Escreveu livros inspirados na sua experiência como repórter da guerra colonial: títulos como Capital Mueda e Marcas da Guerra Colonial continuam a merecer reedições

Centenas de artigos na imprensa, durante anos, reflectem uma investigação contínua da História do Colonialismo Português. É nesse contexto que surge a história do último tabu do Império: S. João Batista D’Ajudá – o seu primeiro romance na Arca das Letras.

Autor e realizador do único programa da rádio portuguesa produzido até hoje sobre os 13 anos de guerra em Angola, Guiné e Moçambique («Noites de África» / Rádio Press 1992-93), Jorge Ribeiro foi director de quatro estações de rádio,  e fez televisão durante 15 anos. Foi presidente do TEP (Teatro Experimental do Porto), fundador do FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica), e secretário-geral da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto

(Fonte: Arca das Letras e Wook, adaptação livre, com a devida vénia)

Guiné 63/74 - P14711: Parabéns a você (917): Antero Santos, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3566 e CCAÇ 18 (Guiné, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14706: Parabéns a você (917): Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista do STM (Guiné, 1972/74)

domingo, 7 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14710: Libertando-me (Tony Borié) (20): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (1)

Vigésimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.


Glória, Lola, a Ruça (1) 

Companheiros, hoje vamos iniciar a história da “Lola”, é um exemplo da emigração para os USA, terá que ser em duas ou três partes, pois é um pouco longa e não queremos abusar do espaço que o nosso blogue nos dispensa, mas vale a pena ler, pois também lhe chamavam “Ruça”, hoje vive aqui no estado da Flórida, anda por aí na praia, quase todos os dias a vemos, sempre com um sorriso. Vai-nos contando a sua história de vida de mulher emigrante, colocando para trás todas as amarguras e sacrifícios, mas também algumas coisas menos más, com que a sua já longa vida a contemplou.

Quando criança, na sua aldeia, o seu nome era Glória, mas chamavam-lhe “Lola” e, às vezes “Ruça”, porque tinha umas madeixas no cabelo, que eram um pouco louras, era a filha mais velha de um casal de agricultores que cultivavam umas terras, à renda, de uns senhores que viviam na cidade de Aveiro, que as tinham herdado, próximo da vila de Águeda, na base da montanha do Caramulo, nunca sabendo com quem faziam fronteira, sabiam, única e simplesmente que todos os anos, por altura de Novembro, princípio de Dezembro, o senhor Aniceto, pai da Glória, lá lhes ia levar um almude de azeite, meio saco de castanhas, uns tantos garrafões de vinho, que quase sempre eram entregues ao mês e, cinco contos de réis, em notas de quinhentos escudos, assim como durante o ano, lhes levava legumes e fruta da época. Por altura da Páscoa, levava a melhor galinha, um coelho ou dois, e às vezes até um galo, tudo isto já amanhado e limpo. Pelo Natal, levava alguma carne de porco, salgada e alguns rojões, numa panela cheia de unto.

O ano podia ser seco ou de chuva, não interessava, a renda e os produtos tinham que ser entregues na data combinada. Não era raro o mês que os senhores patrões pediam ao Aniceto para cortar umas árvores no pinhal, que fazia fronteira com o rio Alfusqueiro, vendê-las e levar lá o dinheiro, pois o menino Joãozinho já andava a estudar e precisava de algum dinheiro, lá por Coimbra. O senhor Aniceto, até fazia isto com gosto, bendizendo a sua sorte por o menino Joãozinho estar em Coimbra, pois nos anos anteriores passava às semanas, até meses, lá na aldeia, na sua casa, comendo e bebendo todo o seu governo, que às vezes era tirado da boca dos seus filhos, tudo isto sem contar, quando vinham trazê-lo e buscá-lo, porque nessa altura, os pais, ficavam pelo menos dois dias e, quando se iam embora, diziam:
- Oh Aniceto, vê a cor do menino Joãozinho, parece outro, o ar do campo sempre lhe fez bem. Vê se arranjas aquele quarto onde dormimos, as paredes estão um nojo e aquela janela bateu toda a noite. Olha, leva-me lá um cesto com alguns pêssegos e outra fruta, que possas apanhar. Há, já me esquecia, leva-me também uns limões e uma ceira com alfaces e cenouras. Que raio, pagas uma miséria de renda! Temos mas é de fazer um contrato, assinado.

E lá iam embora, conduzindo o seu carro a toda a força, fazendo uma poeira que ninguém se via. O senhor Aniceto cumpria rigorosamente as ordens do senhor seu patrão, dono das terras que ele e a sua família cultivavam e, quando era necessário levar todos aqueles bens alimentares para a cidade de Aveiro, fazia o trajecto para a vila de Águeda a pé, viajando depois no comboio da CP, que na altura se chamava, “Ramal de Aveiro”.

A Madalena era a dedicada esposa do senhor Aniceto, mesmo muito dedicada, pois já lhe tinha dado quatro filhos, os três últimos vieram a seguir uns aos outros, agora andavam com a impressão que a Madalena, estava outra vez grávida, mas não tinham ainda a certeza. A Glória, que também era a “Lola”, e para alguns era a “Ruça”, era a mais velha, tomava conta dos irmãos, praticamente era a mãe, só não lhes dava de mamar. Todavia, era ela que os vestia, lhes dava de comer, os lavava e os ia deitar, a Madalena, sua mãe, só os deitava ao mundo. O sistema em casa estava assim ordenado, Madalena trabalha com o Aniceto nas lides da lavoura, a Glória toma conta e zela pelos irmãos.


Os vizinhos viam a Glória descalça, com um vestido de chita, às vezes roto, com o irmão mais novo ao colo e os outros dois de mão dada, agarrados ao vestido da Glória. Se choravam, quem os atendia era a Glória, se tinham fome, quem lhes dava o comer era a Glória, se passava um cão na rua e ladrava, os irmãos iam logo meter-se debaixo do vestido da Glória.

Em casa, ninguém dava pela Glória, era como se fizesse parte da mobília, todas as suas tarefas em cuidar dos irmãos era normal. Chegados à noite, a mãe dizia:
- Oh Glória, vai mudar o farrapo ao teu irmão que está todo borrado, pois está aqui um cheiro esquisito.

O pai, dizia:
- Que raio, deixa de dar ordens à Glória, coitada da rapariga, que anda farta de trabalhar.

E continuava:
- Oh Glória, dá-me aquele avental da tua mãe para eu limpar os pés.

Entretanto, o irmão chorava com dores de barriga, pois tinha comido nêsperas, ainda verdes e sem querer saber de mais nada, ia encostar-se à Glória.

A Glória, era quase sempre a última a ir deitar-se, pois tinha que lavar a bacia de barro vermelho onde comiam à noite que era também usada para lavar os pés aos irmãos, dar uma papa de leite de cabra com farinha de milho ao mais novo que era depois  levado para a cama, porque dormia com ela, pois a mãe Madalena andava enjoada, devendo de estar grávida outra vez.

(continua)

Tony Borie, Junho de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14683: Libertando-me (Tony Borié) (19): ...É o destino