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Em mensagem do dia 3 de Outubro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 23.ª página do seu Caderno de Memórias.
CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
23 - De 27 de Outubro a 12 de Novembro de 1973
Da História da Unidade do BCAÇ 4513:
(...)
OUT73/27 –
Iniciaram-se os trabalhos de Engenharia na estrada A. FORMOSA-BUBA, frente de A. FORMOSA. [Sublinhados meus]
- Efectuou-se uma coluna a BUBA e outra ao R. CORUBAL para trazer população com vista ao acto eleitoral do dia 28 e festas do RAMADAN.
OUT73/28 – Processou-se o acto eleitoral e iniciaram-se as festas do RAMADAN, que trouxeram a A. FORMOSA muita população de BUBA, NHALA e SALTINHO.
OUT73/29 – Pelas 1800 horas apresentaram-se em A. FORMOSA 3 elementos de população, naturais da REP GUINÉ, um homem, uma rapariga e um rapaz.
- Realizou-se mais uma coluna a BUBA para transportar de regresso as populações que se deslocaram a A. FORMOSA.
OUT73/30 – Esteve em A. FORMOSA o Exmº Comandante do CAOP-1, regressou a BISSAU mesmo dia.
- Iniciaram-se os trabalhos de Engenharia da estrada A. FORMOSA-BUBA, frente de BUBA.
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Das minhas memórias:
Novembro de 1973: as primeiras férias
As férias de quem está na guerra não são como as outras. Pode descansar-se o corpo, repor-se o sono, disciplinar o metabolismo e, mais importante, encher a alma com as atenções daqueles que mais amamos. Mas, no fim, o doloroso regresso ensombra todas as coisas boas recém-adquiridas. Pelo menos no meu caso foi assim. Se a minha guerra tivesse sido a do Vietname, que não sendo pior nem melhor que a minha, pelo menos dava a benesse aos soldados de, com alguma regularidade, irem a Saigão desanuviar nas bebedeiras e na pele macia das vietnamitas. Com esse desanuviar eu poupar-me-ia a um doloroso regresso não fazendo estas férias. Mas quase nove meses de saudades, no caldo das agruras e do isolamento no mato, foram mais fortes que a razão. Melhor fora que tivesse ido até Bolama, por exemplo. Mas não fui. Por isso, ao princípio, senti a euforia e a impaciência dos preparativos como qualquer outro. Era a excitação de uma pessoa normal.
Quando levantei voo de Buba com destino a Bissau, essa excitação teve um pico alto, associada a uma sensação de libertação de efeitos quase sedativos. Mas o arrastar dos dias em Bissau até ao embarque, quatro dias, quase mataram a minha excitação e, quando embarquei, foi sem grande entusiasmo e com muitas dúvidas de que estava a fazer as coisas certas. Fora demasiado tempo para reflectir. Fora demasiado tempo a deambular naquela cidade estranha e egocêntrica que, ora se agita com efervescência, ora se arrasta com sonolência; onde até as crianças vivem de expedientes, esquecidas no último escalão da sociedade; onde a vasta tropa em trânsito extravasa tensões acumuladas e maluqueiras que já eram deles, num sentimento de quase impunidade, (nisso era parecida com Saigão); onde são reis e senhores os grandes comerciantes, os funcionários e os militares residentes. Não que tivesse razões de queixa destas gentes, mas fizeram-me sentir deslocado no seu seio. Se isto que digo não era bem assim, não deve andar longe da realidade mas, quatro dias em Bissau, excessivos para mim, talvez não fossem suficientes para ver mais fundo, concedo, mas foram excessivos – dolorosamente excessivos, para a minha resiliência. Como grata lembrança ficaram-me as ostras e a cerveja, mais as fragrâncias da avenida à noite, dissolvidas no ar morno dos trópicos, quando, solitário e finalmente em sossego, por aí descia até ao cais. Ainda sinto nostalgia.
Recuando um pouco no tempo para datar a partida: Nhala, 2 de Novembro de 1973 (sexta-feira), em carta para a Metrópole, “(...) daqui a cinco dias sigo para Buba onde tomarei uma avioneta que fretei com os camaradas de lá que também vão de férias. De Bissau devo partir, como já disse, no dia 13”.
Afinal, partiria de Buba às 9 horas do dia 9 de Novembro (sexta-feira). De Bissau, como previsto, parti ao fim da tarde do dia 13 (terça-feira). Não recordo detalhes do embarque, tão pouco da viagem mas, a chegada ficou gravada para sempre. Pouco antes, ouviu-se a mensagem que a todos deixou em polvorosa: “Atenção senhores passageiros: acabamos de passar a costa algarvia. Agradecemos que apaguem os vossos cigarros
[!!!] e apertem os cintos. Dentro de momentos aterraremos no Aeroporto Internacional de Lisboa. A temperatura neste momento em Lisboa é de 9 graus. Obrigado.”
E depois surge o Tejo e a cidade espraiada junto dele, melancólica, sonolenta e escura, apesar dos milhares de pontinhos luminosos que se distinguiam lá de cima. Lisboa, finalmente, passados quase 9 meses. Lisboa, tantas vezes cantada no mato por tantos que nem sequer a conheciam, mas que a cantavam como o objecto da saudade da Mãe Pátria, “Cheira bem, cheira a Lisboa...”. Era quase meia-noite.
Não guardo grandes memórias destas férias de Inverno, tirando uma ida à Serra da Estrela com a namorada e família, para meu desconsolo, porque não gosto de neve nem de frio. De resto, visitas a familiares e alguns amigos, sempre com o desconforto das conversas “como é que está a guerra lá Guiné?”, mas logo patenteando um desinteresse enfadado, ou arrependimento da pergunta, mal começava a resposta... Dos amigos, alguns preferia nem ver, devido a lembranças do primeiro embarque, (Lisboa, 16-03-1973), coisas assim do género: “Vens despedir-te para ir para aquela guerra? Tu? Não acredito! E o que é isso aí nos ombros? Oficial? Ainda por cima vais como oficial? Não te estou a reconhecer, Murta! Pois não, não estás a reconhecer-me, porque se eu tivesse um papá rico como o teu, também estaria aqui no conforto de Lisboa na faculdade e, quando ela acabasse, punha-me nas putas para Paris, Berna, Londres ou o caraças, era só dizer ao papá para onde queria ir e ele punha-me lá de malas, bagagem e com a coerência impoluta, estás a perceber? Porque a coerência não está ao alcance de todos, tal como o popó, a faculdade e o fato de marca, estás a perceber, revolucionário de merda?”
Com a aproximação da data do regresso, a ansiedade foi-se avolumando, os semblantes ensombrando, à frente da minha mãe fingia que estava tudo bem comigo, fingia que não percebia a angústia dela. Mas, ambos sabíamos, irmos reabrir uma ferida que nunca fechara completamente. A favor, só o facto de eu ter regressado a casa como prometera. — Eu não te dizia, mãe, que não me aconteceria nada e que regressaria rijo como um pêro? — tentava eu animá-la, e fazendo-lhe crer que desta vez iria ser da mesma maneira. Sonhasse ela que por mais de uma vez podia ter ficado impedido de cumprir a promessa...
A despedida de Lisboa foi péssima. Noite de muita chuva, grande confusão no aeroporto e mau serviço, subida a um céu carregado de água e ventania. Logo após a passagem do Tejo, sentimos uma sacudidela que deixou todos estarrecidos e o pior estava para vir. Com insistentes apelos a que não se desapertassem os cintos, voámos aos safanões quase até ao Algarve, as asas do avião vibrando como se fossem papel de alumínio. Os deuses estavam contra nós mas, aos poucos, entrámos no limbo e quase todos adormecemos.
Já disse noutra ocasião, e não é novidade para ninguém porque a maioria dos que vieram de férias passaram pela mesma experiência: o difícil deste regresso era sabermos, com realismo, ao que íamos. A fantasia de conhecer África com as suas idílicas paisagens mais as suas gentes e os bichos tão diferentes e variados, enfim, nada disso fazia já parte do nosso imaginário no regresso de férias. O nosso pensamento estava na guerra. Todavia, todo o encanto africano se mantinha lá mesmo antes de virmos de férias, mas poucos ainda o viam.
Daí que, ainda no ar, ao sobrevoar o arquipélago de Cabo Verde e, ao sentir de novo a pele a humedecer-se (dentro do avião, sim) e o rosto a ficar como que gorduroso, pensasse que me ia afundar na angústia. Era aquele clima de novo e a guerra outra vez. Pior, só quando se abriu a porta do avião, já em chão da Guiné, e senti aquele bafo quente e húmido bater-me na cara. Senti-me fragilizado e sem ânimo, quase em estado de choque. A hospedeira arredou-se e eu desci as escadas como um autómato. E assim deambulei dois dias por Bissau até ao regresso a Nhala. A agravar tudo, as notícias a circular em Bissau eram as mais desanimadoras: perspectivas de endurecimento da luta do PAIGC; a cidade de Bissau ia ser atacada no Natal por aviões que o PAIGC já possui... Passei pelo QG, pela messe de oficiais, pelo Pelicano e outras repartições, sempre sem ânimo e, quase sempre, incomodado com o ânimo dos outros, os seus excessos e bebedeiras (detesto bêbados!). Não procurei companhias e só por acaso elas se chegaram, à roda de uma ou outra mesa, bem guarnecida de ostras e muita cerveja.
Certa vez, na esplanada da 5.ª REP, reconheci um ex-camarada de Mafra integrado num grupo muito agitado. Levantei-me e fui cumprimentá-lo, indagando da zona em que estava e de como era por lá. Sem grandes atenções, mais concentrado nas parvoeiras dos outros, foi-me dizendo que estava no leste e que, pior que aquilo, só o Inferno. Estava por tudo e estava-se cagando em tudo, dizia ele, já sem sequer estar a falar para mim. Virei-lhe as costas e fui-me sentar na minha mesa. Num instante, sem perceber como, ouço impropérios, cadeiras pelo ar e viro-me para o grupo que, feroz, parecia disposto a não deixar pedra sobre pedra. Levantei-me e berrei para o que estava mais próximo: — Não tarda, têm aí a PM em cima de vocês! — Que se f... a PM! Muita sorte era levarem-nos a todos presos! — Saí dali rapidamente, não me querendo misturar em embrulhadas. E, se conto isto, é só para se ter uma ideia do estado de espírito daquela onda de tropas que estava sempre em trânsito por Bissau. Em finais de 1973.
Embarco finalmente num Nord Atlas, com destino a Aldeia Formosa e já com ânsias de chegar a “casa”, farto de dois dias de Bissau. Para meu espanto, o aparelho, ronceiro e a gingar, levantou de Bissalanca em espiral até ganhar altitude como se estivesse no mato... Foi também em espiral que desceu em A. Formosa, mas isso já era assim há muito tempo. Estávamos a 21 de Dezembro de 1973 (sexta-feira). No dia seguinte saí cedo para Nhala e recordo que me senti bem ao chegar, farto de férias e de boémia forçada.
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Na minha ausência de Nhala, muitas coisas ocorreram no Sector, de que darei conta mais à frente em “postes” posteriores, extraindo resumos da História da Unidade, de onde sobressai o grande avanço na construção da estrada nova. Na tabanca de Nhala houve um incêndio que podia ter tido consequências maiores, não fora a intervenção dos militares da minha Companhia, dirigidos pelo Capitão Braga da Cruz, na ajuda à população. Com oportunidade, e para memória, alguém fotografou o sinistro, e é da série de fotografias que então adquiri, que faço agora uma selecção para partilhar. Não carecem de legenda.
Da História da Unidade do BCAÇ 4513:
NOV73/06 – Forças da CCAV 8351, detectaram a base de fogos utilizada pelo IN na última flagelação ao DEST CUMBIJÃ em GUILEGE 3 E 2-54. Assinalado o local de instalação do CAN S/R 82 e 12 ninhos de atiradores. (...).
NOV73/09 – A 3ª CCAÇ/4516 por determinação superior, é rendida no Sector pela CCAV 8350, deslocando-se para BUBA a fim de posteriormente seguir para BISSAU. A CCAV 8350 fica sedeada em COLIBUIA.
- Forças da CCAV 8351 procedem à implantação de um campo de minas na região da base de fogos IN detectada. (...).
NOV73/11 – As forças do Sector além da protecção aos trabalhos de Engenharia, continuam a executar em permanência patrulhamentos para a região de fronteira e contra-penetrações nos corredores tradicionais.
NOV73/12 – Realizou-se mais uma coluna de reabastecimento a BUBA, para transporte de material de Engenharia e víveres.
Esteve em A. FORMOSA uma equipe da RTP a efectuar gravações para mensagens de NATAL.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 29 de setembro de 2015 >
Guiné 63/74 - P15174: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (22): De 09 a 23 de Outubro de 1973