1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Dezembro de 2016:
Queridos amigos,
Fica bem começar com uma declaração de interesses. Conheci Paulo Salgado na cidade de Bissau, em 1991, ele cooperante no Ministério da Saúde, eu cooperante no Ministério da Indústria e Recursos Naturais. Fomos consolidando estima, e depois de muita conversa avulsa veio à tona de água a guerra de cada um. Levou-me ao Olossato, senti que estava em Sintra, tal o deslumbramento que me suscitou aquela verdura e o frescor, estávamos na época das chuvas. Falei-lhe do comandante do PAIGC da minha zona, agora coronel, Mamadu Jaquité, que me deixava na picada advertências extremosas, tais como
"meu alferes de merda, se fores vivo para o teu país, será a minha vergonha".
Quis conhecer Mamadú Jaquité, e o Paulo Salgado levou-me ao Cumeré, foi cena inesquecível, dela já aqui falei, naquele local alguém que fora encarregado de me matar pedia-me ardentemente uns escassos pesos para comprar arroz, óleo e sabão, foi naquele preciso instante que me apercebi, graças à ajuda do Paulo Salgado, que nem sempre de uma vitória de libertação e independência saímos vitoriosos - nada mais custa que pedir ajuda a quem nos colonizou e a quem mandámos embora.
Um abraço do
Mário
Guiné, crónicas de guerra e amor, por Paulo Salgado (1)
Beja Santos
Creio tratar-se do livro de estreia nas lides espaçosas da literatura da guerra colonial de Paulo Salgado. O seu “Guiné, Crónicas de Guerra e Amor”, Lema d’Origem Editora, 2016, é o produto, como ele próprio observa, da sua comissão na Guiné entre 1970/1972, a sua experiência como cooperante na Guiné-Bissau por dois largos períodos e muitas interrogações sobre a presença portuguesa num local que se convencionou chamar Terra dos Negros, Senegâmbia, Rios da Guiné de Cabo Verde, nos primeiros séculos da chegada, da presença na orla, com tráfico de escravos e uma escassa missionação à mistura.
A estrutura da obra é de uma literatura de regressos: 20 anos depois de ali ter feito guerra, é tempo de relembrança de locais onde se experimentou a solidariedade e o sofrimento e que também dão pelo nome de Maqué ou Olossato ou Bissorã, por exemplo Paulo Salgado agora chama-se Alberto e comporta-se afim a quem aqui combateu, guarda imagens e odores que jamais se diluíram, na passagem do tempo:
“os mil odores da floresta densa, do capinzal crescido, da bolanha encharcada, da terra lavrada aqui e ali; mas sempre a humidade levemente pegajosa. Redescobria o centro verde, intensamente verde das variadas árvores e arbustos, o constante castanho-avermelhado da terra; e remirava a estreiteza da picada longilínea sobre a qual pendiam os ramos frondosos de poilões soberbamente grandiosos; e vislumbrava estreitos carreiros semelhantes àqueles que calcorreara anos antes e que saíam da picada em direção aos longes”. É a relembrança de todos nós que tivemos a dita de ali voltar, décadas depois, impossível apagar aquele verde tropical, os sons da noite, o afogueado do amanhecer, a angústia daquele sol que cai a pique e nos deixa mergulhados no túnel da escuridão vegetal. Alberto interroga-se, como qualquer combatente na hora do regresso:
“Com que direito venho aqui recordar factos, vasculhar misérias, relembrar horrores, levantar fantasmas, lembrar conflitos antigos e recentes?”. Então, as lembranças da guerra fazem caminho, fala-se de Bissancaje, surgem os primeiros nomes dos companheiros da guerra, Incanha é guia ou pisteiro do grupo de combate, é ali que surge a morte, a tão próxima morte, naqueles seis ou sete homens que eles vão foguear, um fica estendido no trilho,
“dentro da bolsa, caída ao lado da espingarda, um passarinho morto, para dar sorte”. Há histórias como a de Bacar, que muitas vezes se sentia português, que faz frequentemente os longos 17 quilómetros do Olossato a Bissorã, a picar a estrada, é destro, parece não deixar um milímetro por picar até que se ouve um estrondo, um pedaço da sua perna esquerda voou. Por onde param os sonhos deste Bacar, tão diligente e tão companheiro?
Entremeiam-se episódios históricos, não há dúvida que a Crónica da Guiné, de Zurara, entusiasmou Paulo Salgado, seguir-se-ão outros autores, vêm ao de cima histórias avulsas de descobridores, de companheiros e de lugares, é o caso de a Ponte de Maqué, um local obrigatório a proteger, vários autores já classificaram esta referência, convém reter o que dela conserva a memória de Paulo Salgado:
“No exterior, em largo amplo, que se destina a estacionamento das viaturas militares e a heliporto, separado do forte, um barraco para banhos e latrina. À volta, a cerca de 100 metros, duas fiadas de arame farpado, entre as quais armadilhas, minas e garrafas partidas servem para afastar ou ferir ou matar eventual intromissão. A estrada que vem de Bissorã para o Olossato atravessa o riacho, passando sob a pequena ponte e em frente do forte. A estrada é fechada, ao fim do dia, através de armadilhas, e com cavalos de pau, para ser reaberta, pela madrugada, desarmadilhando o que fora armadilhado. No destacamento, os soldados vigiam, os soldados armadilham e desarmadilham, indiferentes à guerra que se faz a 5 quilómetros, no Olossato, ou a 15 quilómetros em Bissorã, ou a 30 quilómetros em Mansabá, ou sabe-se lá onde por essa Guiné fora".
Sucedem-se os relatos em pequenos trechos: advertência do comandante de companhia quanto ao respeito que é devido às lavadeiras e nas aquisições de víveres, as ações psicológicas junto da população, os medos da mata, a história de um alferes que se afeiçoa por Rosa, uma bajuda de lábios carnudos perfeitos, de seios direitos e que bamboleava as cochas debaixo da pequena saia, a lembrança daquele rei de Bermoim que é trazido por Pêro Vaz da Cunha à Corte de D. João II, aqui batizado e que no regresso à Guiné o mesmo Pêro Vaz da Cunha matou à punhalada e que o monarca depois mandou enforcar, o interrogatório a Kadi, uma enfermeira do partido, na região do Morés, procedeu-se ao aliciamento, ela parecia anuir até que fugiu para a sua terra livre.
Há cartas de amor, há o soldado Julião, aparece o alferes Boaventura que, em 1917, se irá confrontar com o soberbo e delinquente régulo Abdul Indjai. Momentos há em que os retratos desses combatentes ganham um vigor inusitado, estou a pensar no que o autor nos descreve de Horácio, Moita, Zé Faquista e o Ratão, quedemo-nos neste último:
“De doces era perfeito conhecedor, o rapaz. Transmontano de nascença, aos dez aos, feito o último ano da escola primária, que esperteza tinha o ganapo, o mandaram para a capital na mira de empreguinho em mercearia que um familiar lhe aprontara. Tinha tanto de esperto como de franzino e como de malandreco, o Ratão, como lhe chamavam os camaradas, fazedores de alcunhas. Em Lisboa, àquela data, empregos não faltavam a quem queria dar o corpo ao manifesto, a quem se sujeitasse a recados e mandiletes, a quem não custasse aturar patrão, capataz ou vigilante. Emprego aqui, emprego ali, sempre na busca de melhores dias. E quem porfia sempre alcança. Caiu finalmente no local certo: uma pastelaria onde aprendeu rapidamente a confecionar deliciosos doces, servidos a preceito no salão de chá, à hora do lanche, às madamas que acorriam e que os saboreavam acompanhados de chazinho cheiroso.
Calhou-lhe diversas vezes atender essas diversas senhoras, nas folgas dos empregados de mesa, algumas verdadeiras senhoras, outras nem tanto, e foi-lhe adivinhado as origens, descobrindo as fraquezas e os desgostos, e conquistando a sua amizade e estima e respeito, e até confidências. Não tardou que se travasse de relações com uma senhora, cinquentona da idade, queixosa do marido idoso e mais interessado nos negócios de ferragens na Baixa. Primeiro, foi no dia de folga, em casa da dona, que o recebia em roupão transparente, e, pegando-lhe na mão o transportava para a alcova adulta, deliciando-se com a carne tenra, virgem, do jovem imberbe. Depois, os encontros repetiram-se à hora em que ele, oferecendo-se ao patrão para tal tarefa, e entregar ao domicílio os bolinhos encomendados. Finalmente, o desejo tornou-se forte e exigente – foi então que o moço abandonou o ofício de pasteleiro para abraçar a profissão de amante.
Mas a carne mais velha enfastia, as exigências mútuas, cada qual com seu sentido, tornaram-se insuportáveis, a desconfiança do velho e atraiçoado marido cresceu, a dependência em relação à amante era grande, e o cansaço físico e espiritual, verdade seja dita, fizeram-no fugir para a zona de Alvalade onde um amigo o empregou em pastelaria aberta recentemente.
Franzino, traquina, vaidoso do seu passado femeeiro, gabarola bastante, o Ratão, não leva bolinhos ao domicílio, não atende as madamas na sua pastelaria. Transporta a G3 derreado, afogueado, de canseira que cansa”.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 26 de dezembro de 2016 >
Guiné 63/74 - P16883: Notas de leitura (914): “Guiné-Bissau, das Contradições Políticas aos Desafios do Futuro”, por Luís Barbosa Vicente, Chiado Editora, 2016 (2) (Mário Beja Santos)