sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16895: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (37): 1 - O amigo Mohammed de Canquelifá

1. Em mensagem do dia 26 de Dezembro de 2016, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), autor do Livro "Memórias Boas da Minha Guerra", enviou-nos esta história destinada à sua série com o mesmo nome:

Caros amigos.

Junto a história de "O amigo Mohammed".

Trata-se da primeira das quatro que tenciono publicar. Esta, a primeira, relaciona-se com o Mohammed da Guiné. A segunda será dedicada ao Mohammed da Mauritânia, a terceira ao Mohammed de Marrocos e a quarta ao Mohammed de Santa Maria da Feira.

Espero que todas elas mereçam a vossa habitual atenção.

Grande abraço

José Ferreira Silva


Memórias boas da minha guerra

37 - O amigo Mohammed

1 - Da Guiné

Nos primeiros dias de Agosto de 1968, voltámos a passar por Fá Mandinga, primeiro local onde pernoitámos na chegada à Guiné (1 de Maio de 1967). Desta vez seguíamos lá mais para o norte, para Canquelifá, onde prevíamos passar pacificamente os últimos meses da nossa guerreira missão.


Vista do aquartelamento de Fá Mandinga

Todavia, o meu pelotão ficaria no Destacamento de Dunane, cerca de 2 meses, portanto afastado dos outros camaradas da Companhia. Se, por um lado, manteria uma forte ligação permanente ao meu grupo, por outro, ficava afastado dos camaradas mais chegados, especialmente dos outros graduados, com quem convivia mais de perto.

Por isso, quando segui para Canquelifá, levei uns dias a actualizar as conversas e a retomar aquele relacionamento intenso a que estava habituado.

Uma das coisas que me surpreenderam foi o facto do Furriel Enfermeiro ter passado a dormir na Enfermaria. Mas, como se dizia que o “Dotô” passava o tempo a atender os doentes, era evidente que pouco tempo lhe sobrava para relaxar/descansar na cama, perto dos outros Furriéis. Aliás, só o víamos a comer e a jogar um pouco às cartas, logo após o almoço.

Tive a oportunidade de verificar a fila de doentes que se estendia diariamente, logo de manhã, por boas dezenas de metros, junto da Enfermaria, à espera de serem atendidos. Também me apercebi de que, em pouco tempo, o “Dotô” ultrapassara tudo que era normal e razoável na competência e capacidades de um Furriel Enfermeiro a gerir a assistência a milhares de pessoas dispersas por uma zona num raio de várias dezenas de quilómetros.

Pois o “Dotô Berguinhas” era incansável e, após várias intervenções na salvação de casos perdidos, adquiriu o estatuto de santidade (ou de bruxedo). É que os milagres aconteceram mesmo!

Naquela região eram inúmeros os casos de lepra, uns mais avançados que outros, mas todos com o rótulo da previsível fatalidade. Mas o Berguinhas não se conformava. Ele esforçava-se, experimentava, arriscava. Mesmo que, porventura, tenha causado alguma morte antecipada, foi com boas intenções, pois gozava de uma reputação granjeada à custa dos seus vários “milagres”.

Eu sempre me relacionei muito bem com ele. Dizia-se que parecíamos “duas putas”, sempre unidos, sempre na brincadeira e sempre na procura de uma boa ambiência. Por isso, acompanhei bastante essa fase do melhor “Doutor” que jamais passou por Canquelifá.


O “Dotô Berguinhas” animava os serões com a sua teimosia em recitar o seu poema “A Formiga vai à Serra” (que nunca conseguia lá chegar)


Porém, um dia, após várias insistências, confessou-me a razão da sua quebra de alegria. Andava preocupadíssimo porque o filhote do amigo Mohammed estava muito doente e percebia que nada o iria salvar. Já tinha experimentado tudo e mais alguma coisa mas o miúdo não melhorava.



Funeral em Canquelifá

A criança morreu. Penso que consegui tirar alguma foto a esse funeral. Vi o Berguinhas a ser reconfortado pelo próprio pai do miúdo. Também vi, mais vezes, o Mohammed a inteirar-se da situação de outros doentes. Apesar de não ser habitual o meu envolvimento ou preocupação de maior com os nativos, esse Mohammed ficou-me “registado”.

Aproximou-se o final da comissão de serviço. Dali, de Canquelifá, iríamos viajar até Bissau, local que a maioria de nós nunca havia pisado. Estava a chegar a CArt 2439 para nos substituir, a fim de seguirmos para Bambadinca e aguardarmos o transporte fluvial até Bissau.

Foram dias de grande entusiasmo e alegria, contrastando com a tristeza e apreensão dos nossos substitutos. E para alegrá-los, lá surgiu a ideia do Berguinhas: - fazer uma recepção de “boas-vindas” aos graduados dessa Companhia.

No serão de 1 de Dezembro, vestimos os balandraus, com os gorros a preceito, enfiámos algum ronco nos braços e no pescoço e lá fizemos o nosso papel de simpáticos anfitriões. Virados para os periquitos, eu “lia” em “árabe” a mensagem desejada e o Cepa, que já, nesses tempos, evidenciava uma certa capacidade oratória, fazia a “rigorosa” tradução. E eu dizia:
- Shalalamagrramalgrraminchal ala grram… echegrram… (etc.,etc.)

O Cepa, traduzia:

"Caros amigos, colegas de infortúnio, 
nós compreendemos bem a vossa triste condição de periquitos.
 Já passámos por isso 
e sabemos quanto é doloroso aguentar as saudades dos nossos familiares, 
das nossas namoradas e dos nossos amigos.
Sabemos o que é sangrar do coração.
Sabemos também o que é chorar de raiva e desespero.
Isso terá que passar.
Alegrai-vos porque isto não vai durar sempre.
Não vai piorar e o tempo vai passar.
Procurai dar o vosso melhor, 
especialmente na camaradagem, na solidariedade e na compreensão.
Ajudai-vos mutuamente, para que o tempo passe o melhor possível.
Do fundo do coração, desejamos que tudo vos corra bem 
e, se possível, melhor do que correu a nós."

Abismados com tanta eloquência extraída de um escrito árabe, os periquitos interrogavam:
- Como conseguiram aprender árabe?

O Machado lá ia esclarecendo:
- Não é muito difícil. O maior problema é aspirar o “erre”, porque a malta tem tendência a escarrar sem querer. Além disso, juntando o AL às palavras, aprendemos muita coisa. Por exemplo: - Algarve, Almería, Algeciras, Almalaguês, Almeirim, Alcácer, Alfarroba, Alcagoitas… etc., etc.

E o Miranda acrescentava:
- É mesmo fácil. Vocês, ao fim de um mês, já podem manter conversa com os gajos.

No dia seguinte:
- Ó Silva, anda comigo devolver os balandraus que nos emprestaram - disse o Berguinhas.
- Mohammed, queremos agradecer-te o favor de emprestares este material. Aqui está.

O Mohammed aproveitou a oportunidade para tecer grandes elogios ao Berguinhas, a quem lhe disse:
- Foste o melhor “Doutor” que passou por Canquelifá. O pessoal deve-te muito e eu fico muito contente com teu trabalho.

Ia invocando o nome de Alá, ligando-o a esse trabalho e a esse sucesso. Encaminhou-nos para uma tabanca maior e mostrou-nos o seu interior. Era uma biblioteca impressionante. Ele era o responsável por ela. Além do Alcorão, mostrou-nos várias obras de grande interesse para ele e para o seu povo. Contou-nos que já tinha ido a Meca duas vezes e esperava lá voltar.

Explicou as origens do seu povo Mandinga e a sua ligação ao império Mali e do seu grande rei Sundiata Keita. Esse império, do grupo etno-linguístico Mandê, fundado no Século XIII, que se estendeu ao longo da costa da África Ocidental. Migraram para oeste a partir do Rio Niger. Dos conflitos com os Fulas, absorveram a sua ligação religiosa ao islamismo. Diz-se que hoje, cerca de noventa e nove por cento dos Mandingas seguem o Alcorão. Nos Séculos XVI, XVII e XVIII os Mandingas foram sendo capturados como escravos e vendidos para a América.

O Mohammed era um Senhor!


O Provérbio árabe

Quando nos despedíamos, pedi-lhe para nos dizer o que estava escrito naquele papel que eu “lera” aos periquitos. E ele leu-o pausadamente:

Provérbio árabe

Não digas tudo o que sabes
Não faças tudo o que podes
Não acredites em tudo que ouves
Não gastes tudo o que tens

Porque:

Quem diz tudo o que sabe,
Quem faz tudo o que pode,
Quem acredita em tudo o que ouve,
Quem gasta tudo o que tem;

Muitas vezes diz o que não convém,
Faz o que não deve,
Julga o que não vê,
Gasta o que não pode.
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Nota: - Vim a saber que o reconhecido apoio ao “Dotô Berguinhas” partira do Mohammed, quando fez destacar a “empregada da Enfermaria”, a tempo inteiro.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16641: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (36): O guerreiro da minha rua

1 comentário:

Anónimo disse...



Isto é que é acabar bem o ano e com promessas de bons recomeços no próximo pois a estória promete. Insha'Allah. que Deus te proteja. Parabéns!

Francisco Baptista