Queridos amigos,
Não fosse eu assumidamente um info-excluído e outro galo cantaria. Andámos em digressão na região de Óbidos e vizinhança, primeira etapa, regressámos à base para retempero, e depois rumou-se a Pedrógão Pequeno, subiu-se à Serra da Estrela, com estadia em Manteigas, de novo em Pedrógão Pequeno para ir à Conservatória entregar a casinha a novo proprietário e montar a operação de ofertas e transferências de trastes.
Entrementes, tiraram-se imagens, muitas, para evitar perdas e a mágoa das mesmas, começou-se por Santa Maria das Salzedas, segue-se hoje Belmonte, agora há que preparar outra visita deslumbrante, ao Mosteiro de S. João de Tarouca, e logo de seguida fazer o elogio do burel, era matéria-prima que ignorava completamente a não ser em fatiota assim especificada. Como a roda da fortuna dá imensas guinadas, dei comigo a ler uma revista Panorama dedicada a Pedro Álvares Cabral, nado e criado em Belmonte, filho de alcaide, o nauta que chegou a terras de Vera Cruz, um número datado de setembro de 1968. E deleitei-me com a prosa de Vitorino Nemésio, chegarei a Belmonte numa atmosfera de canícula e uma neta a pedir constantemente água e sombra, visita abreviada, o guia foi Nemésio e a lembrança para esta terra de judiaria endereçou-se a Samuel Schwarz, como uma das nossas pechas nacionais é a ingratidão, bom seria que se desse ampla divulgação à investida cultural deste engenheiro de minas, que aproveitou poliglota para escrever em diferentes idiomas e portanto em diferentes publicações a importância do fenómeno judaico em Portugal.
Um abraço do
Mário
Em Belmonte, na companhia de Vitorino Nemésio, e não esquecendo Pedro Álvares Cabral
Mário Beja Santos
A revista Panorama publicou-se entre 1941 e 1974, editada pelo Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo (outrora o SNI), e o número a que fazemos referência data de setembro de 1968, o tema era Pedro Álvares Cabral, sobre ele irão dissertar nesta publicação, entre outros, Damião Peres, Hernâni Cidade e Alberto Iria. Mas o texto, no meu modesto entender, de maior vibração, era assinado por Vitorino Nemésio e intitulava-se “Porto seguro em Belmonte”. Estou a relê-lo em Manteigas, amanhã iremos a Belmonte, passaremos ainda por Portalegre antes de arribar em Pedrógão Pequeno. Estou rendido a esta prosa de Vitorino Nemésio, que bom seria que este professor de Cultura Portuguesa amanhã pudesse estar em Belmonte, eu levava esta publicação e pedia-lhe que ele lesse parágrafos admiráveis como estes a propósito do nauta que aportou às terras de Vera Cruz:
“Filho de alcaide, neto de alcaides – eis o que ele é. Valente como as armas, passa de capitão delas em terra a capitão delas no mar. Nada menos parecido estruturalmente com um castelo da Beira do que um castelo de proa. Mas ele, Pedro Álvares, não ia à testa da Armada porque soubesse de rumos e mexesse em papa-figos, senão porque tinha qualidade, coragem e prestança para chefe de chefes. Três, pelo menos, dos seus capitães tinham folha rezada de coisas que não se sabe que ele fizesse: o grande Bartolomeu Dias, seu irmão Diogo Dias e Nicolau Coelho, expertos de larga pilotagem investidos de grandes missões anteriores”. E, mais adiante, caso pudesse acontecer que se ouvisse a voz um tanto roufenha, sibilante e nasalada por restos de falar terceirense deste Grão-mestre da língua portuguesa, pedia-lhe também que lesse o seguinte parágrafo, mas tinha que ser em terras de Belmonte:
“Fui outro dia a Belmonte, com amigos. Romagem cabralina e, para mim (vergonha de coscuvilheiro da história, descobridor sedentário de tudo e de nada!), o vero descobrimento do caminho pela Serra da Estrela desde a Guarda a Viseu. Covilhã, Penhas da Saúde, as lagoas Escura e Comprida a distância, - os brutos, imponentes topónimos de covões que exprimem a rudeza e frieltura da Serra explicados a mim pelo meu piloto em tudo isto, Fernando Russell Cortez. No alto que fizemos em Belmonte, propositadamente não passei de meia dúzia de notas: eu que não sei nada em pormenor de Cabrais e suas alcaidarias, do seu senhorio de Azurara, das muitas e esmeriladas miunças que hão-de colmatar a grande brecha de olvido aberta na vida gloriosa de Pedro Álvares. Preferi respirar o ar serrano do alto da torre albarrã, o ar beirão que sopra já cerca de Espanha, de onde dizem que não vem bom vento, mas vinha! E, por sinal que nestes tempos de calor, sem bafores. A torre, com o paço velho do alcaide-mor desenhado num arco e numa ou outra encosta, a cachorrada de granito sobranceira à porta sobrepujando o brasão das ‘duas cabras passantes’ que deviam estar ‘sotopostas de vermelho e armadas de negro’, mas onde apenas luzia o amarelo sujo do quartzo e o negro da mica corroída”.
Isto e muito mais passou-me pela cabeça, um puro devaneio, mas foi assim que Nemésio veio à procura do rasto de Pedro Álvares Cabral. É um calor tórrido, quase sufocante que nos recebe nesta encosta oriental da Serra da Estrela, é a chamada visita de médico, uma passagem fugaz por este belo castelo, quem resiste a não ficar especado diante daquela janela esplendorosa e vaguear sem olhar para trás no interior do castelo? Passa-se à Igreja de Santiago, há uma criança de nove anos a insistir que quer uma garrafa de água, entra-se no museu judaico com o firme propósito de ir cumprimentar o legado do Engenheiro de Minas Samuel Schwarz, um polaco que se afeiçoou por Portugal, que se naturalizou português e, entre outras proezas, comprou a Sinagoga de Tomar e a ofereceu ao Estado, não se fazem negócios com monumentos nacionais, acresce tratar-se da mais representativa sinagoga tardo-medieval em território português, examina-se cuidadosamente as vitrinas que o homenageiam, é pena saber-se tão pouco sobre este herói português que em boa hora veio trabalhar nas minas da região.
Mandaria o bom-senso turístico que toda esta visita se prolongasse e motivos não faltam, a vila romana da Quinta da Fórnea, as capelas e a sinagoga, visitar mesmo o Convento de Nossa Senhora da Esperança, com tantas ligações ao credo religioso de Cabral. Nisto se repete o que insistentemente já se escreveu noutros lugares e neste: a viagem nunca acaba, quem acaba são os viajantes ou os seus sonhos idealizados ou por idealizar, volta-se qualquer dia, há legítimo pretexto para regressar, estamos enamorados pelos dias de Manteigas e pelo que se visitou na Serra da Estrela, e pela descoberta do burel, de que mais adiante falaremos, há míngua de textos, daremos vazão às imagens, pois pode dar-se o caso de algumas delas valerem por mil palavras.
Nota do editor
Último poste da série de 5 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21613: Os nossos seres, saberes e lazeres (427): Na RDA, em fevereiro de 1987 (6) (Mário Beja Santos)