segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22976: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: A chegada dos guerrilheiros, outrora "bandidos", agora "heróis da libertação da Pátria"...A (mu)dança das bandeiras... Os meus novos amigos, balantas...



Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCS/BCAÇ 4612/74 (12jul74-15/10/74) > 9 de setembro de 1974 > Cerimónia da entrega (simbólica) do território aos novos senhores da Guiné, o PAIGC, e da retirada, ordeira, digna e segura, das últimas tropas portuguesas. Mansoa, em pleno coração do território, na região do Oio, serviu perfeitamente para esse duplo propósito...É uma foto  histórica, em que se vê o nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro, então fur mil op esp / ranger, a arriar a bandeira verde-rubra. (O MR é membro da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2005 (*)...

Foto (e legenda): © José Lino Oliveira (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Trinta e seis anos da "troca de bandeiras" , em 1 de setembro de 1974... Visita do Cherno Baldé e família > Local onde estava situado o pau da bandeira; à esquerda as ruínas do forno de cozer o pão que fazia as delícias do "Chico, menino e moço"


Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2010).
Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II (*)


(iii) A chegada dos guerrilheiros


Passaram-se dias e semanas e, quando menos se esperava, foi anunciada a chegada dos guerrilheiros que devia acontecer para os lados de Oio/Caresse, zona donde se esperava que viessem, naturalmente. Toda a aldeia saiu para assistir à chegada mas, era falso alarme. No sítio indicado não estava ninguém.

Passados alguns dias, foi feito o mesmo anúncio mas, já metade da aldeia estava na dúvida e preferia esperar pela confirmação. Desta vez, efectivamente, estavam lá e, não era do lado de Caresse (oeste) mas do lado sul (Bairro Mandinga de Morcunda), donde menos se podia esperar. Tratava-se de uma táctica da guerrilha, simples diversão ou prudência de quem ainda não acreditava na sua sorte? Talvez fosse tudo isso ao mesmo tempo.

Rapidamente a notícia correu pelas aldeias da redondeza, as pessoas afluíram em massa. Crianças, jovens, mulheres, velhos; todos queriam ver a gente do mato, aliás, os “bandidos” agora convertidos em heróis da libertação nacional. 

Depois de todas as campanhas de desinformação do regime colonial, o que vimos era simplesmente inacreditável. Afinal, eram pessoas normais, como nós, dos pés a cabeça. Não tinham rabos como os animais, nem chifres como imaginamos os diabos. Encontrámo-los, alguns sentados, outros de pé, dispersos debaixo da sombra das mangueiras. Cabeludos, magricelas, olhos vermelhos, uma expressão visual que se situava algures entre o homem e o animal.

Exceptuando as armas e os uniformes que traziam, eram exactamente iguais aos prisioneiros que tínhamos visto no quartel alguns anos antes (na altura a população civil era muito céptica quanto ao serem verdadeiros “Paigecistas” inclinando-se mais para a ideia de que seriam, quando muito, cortadores de chabéu, perdidos entre as remotas aldeias oincas no mato de Caresse).

Controvérsia à parte, aqueles prisioneiros, de facto, não estavam fardados e o aspecto esfarrapado, nauseabundo, mais metia dó que medo. Sempre que podíamos, metíamos algumas coisinhas por baixo das paredes de chapas que serviam de celas, com o nariz apertado entre os dedos. Porém, entre nós, nem todos partilhavam o mesmo sentimento e havia quem aproveitasse a ocasião para dar umas pisadelas nas mãos esfomeadas que apalpavam a terra e o ar à procura do abençoado pedaço de pão. Tinham fome.

  Quem são estes, os cubanos?  − perguntava alguém ao vizinho do lado. Sem resposta.

  São estes que nos metiam tanto medo!?  − comentou, incrédula, uma mulher fula que trazia ao colo uma criança, tendo no corpo apenas o pano amarrado até a cintura pondo a mostra os seios usados, elásticos, espalmados sobre o ventre (é uma pena o “nós Alfero Cabral” não ter passado por aqui).

  Não se iluda,  mulher, no mato, cada um destes bandidos vale por dez   explicou o Queta “chauffeur”, antigo companheiro do tenente Jamanca.

Os homens que se apresentaram eram poucos (um bigrupo?) e pareciam ser mais altos do que eram na realidade, como os corredores de fundo. O comandante era um homem de etnia mandinga, de meia-idade, alto e simpático que logo cativou as atenções, vindo a revelar-se um excelente orador.

Ele mudou os hábitos da aldeia. As suas reuniões de presença obrigatória não demoravam menos de 12 horas, o que lhe valeu a alcunha de Presidente Sékou Touré. Quando as pessoas eram convocadas, diziam às suas mulheres: “Mariama, prepare a comida de manhã cedo, porque vamos a reunião de Sékou Touré”. 

No decorrer das longas reuniões do Partido, aqueles que pediam para ir satisfazer algum necessidade fisiológica, mulheres inclusive, eram acompanhados por homens armados. Começávamos a colher os frutos da verdadeira independência bem à moda dos movimentos de libertação em África.

Os guerrilheiros usavam uniformes castanhos ou cinzentos (pontilhados de pequenas formigas pretas). Eram diferentes dos sarapintados que estávamos habituados a ver. Pareciam novos e os corpos magros, quase esqueléticos, particularmente dos fulas, nadavam dentro dos uniformes o que dava a sensação de que não estariam lá muito habituados a usá-los.

A maioria tinha nos pés sapatos de cor castanha, feitos de um tecido duro e resistente, amarrados com cordel. Eram leves e combinavam bem com a cor das fardas. Alguns deles usavam, ainda, plásticos simples comprados, talvez, no Senegal. Não havia muito rigor no fardamento. Os seus olhos, esses, eram muito vivos e penetrantes, em alerta permanente, com as armas ao alcance das mãos. Pela primeira vez, víamos com os nossos olhos, a famosa RPG7.


(iv) A atracção pela metrópole


Mais tarde, quando a retirada do que restava das tropas portuguesas já era iminente, um outro soldado, mecânico-auto, o Jorge, da companhia de Gadamael, ofereceu-me o livro que seria o primeiro da minha vida, cujo título era "Inglês sem mestre”,  sob um fundo de tiras azuis e vermelhas cruzadas.

Fiquei com vergonha de dizer que não o conseguia ler. Esta oferta tinha mexido comigo e tinha-me incitado a aprender a ler. Na época, não sabendo interpretar o seu conteúdo, ofereci-o ao meu irmão mais velho que estava mais avançado na escola e que o levaria consigo na sua primeira viagem de estudos a Portugal em 1980. Com ar muito triste e lamentando a nossa sorte, o Jorge disse-me naquele dia:

  Olha, Chico, nós vamos embora, os “turras” vão tomar conta disto e são capazes de matar a todos, se quiseres ir comigo eu falo com o teu pai.

  Não, nós vamos dar-lhes as nossas vacas e ficamos em paz  − respondi-lhe, rindo.

Não tinha reagido à sua oferta, como se não tivesse percebido, na realidade não estava interessado. Durante todo o tempo que passámos no quartel entre os portugueses, a informação que tínhamos da metrópole era muito escassa, dispersa, esporádica, idílica, feita principalmente de imagens de meninas brancas, cor da neve, anjos do céu, exibindo-se no jardim de Éden com os seus vestidos “volantes” (Cheira bem… cheira a Lisboa!), docemente embaladas pelo fado da Amália e o trepidante futebol do Benfica de Eusébio da Silva Ferreira, o Pantera Negra, mas era, apesar de tudo, um país de brancos.

A ideia de viver, de forma permanente, no meio dos brancos e suas esquisitices não me seduzia muito, pese o facto de gostar infinitamente dos seus frangos gordurosos, da batata inglesa, do bacalhau salgado e do cheiro dos chouriços vermelhos. (Alláh, o clemente e misericordioso, me perdoará por esta pequena fraqueza humana. ).

Mesmo supondo que eu quisesse ir,  de certeza que a minha avó não mo permitiria. Ela era o meu anjo da guarda e tinha horror aos soldados, com as suas orelhas vermelhas e seus modos libertinos. “Os brancos não respeitam a idade”, dizia. “Se não, como é que se explica que os chefes (os oficiais) sejam mais novos que os subordinados?”. A vista dos soldados, ela fugia e se entrincheirava dentro da sua palhota.

Entretanto, a sua neta, nascida em tempos de Guiné Melhor do seu único filho varão, passava horas a fio a namoricar, mesmo a porta, com um malandro de orelhas vermelhas que só aparecia envolto na escuridão da noite.

Mas, o verdadeiro motivo porque não fui tentado em viajar para a metrópole, estava ligado à forma de lá chegar. Tinham-nos informado, de fontes seguras, que a única forma de uma criança entrar no navio e fazer a viagem era estar metida dentro de um caixão como faziam com os periquitos ou outros animais de estimação. A minha ideia sobre o assunto era clara e firme. Viajar metido num caixão era não, nunca e jamais. Podiam ficar com todas as sardinhas da Europa.

No fundo, também, não acreditava muito nas afirmações do meu amigo Jorge,  pois os germes do nacionalismo que tinham conquistado terreno no inicio dos anos 70 e a propaganda que tinha antecedido a entrada do PAIGC já estava a fazer efeito na consciência de muitos guineenses que não estavam seriamente comprometidos com a guerra.

O meu caso não era isolado pois, mesmo entre as pessoas adultas e que tinham servido na guerra e estando agora desmobilizadas como o Mamadu Baldé (mais conhecido por Mamadu Senegal, antigo chefe de milícias, originário do Senegal, citado numa das narrativas de José Cortes), e muitos outros naturais da zona encontravam-se no meio das pessoas que foram receber os guerrilheiros, num ambiente de festa e confraternização.

Depois da primeira visita, vieram mais outros grupos vindos de outras “barracas” (acampamentos), recebidos sempre com o mesmo entusiasmo pela população civil e militares portugueses e, no meio disso tudo, podia-se notar um facto bem curioso, a meu ver. Pela forma como os recebiam e se congratulavam, trocando pequenos presentes e “lembranças”, os soldados portugueses pareciam muito mais satisfeitos com o fim da guerra do que os guerrilheiros.

Talvez pela primeira vez na história dos conflitos armados, um dos beligerantes que, para todos os efeitos, tinha perdido a guerra, parecia estar feliz por não ter vencido. Era compreensível mas nem por isso deixava de ser intrigante.

Na minha infância, havia duas classes de pessoas as quais nutria uma grande admiração e cujo meio frequentava com muito gosto: Era a dos atletas/lutadores tradicionais (habitualmente fulas pretos) e a dos soldados (de todos os tipos), ambos apresentando características muito semelhantes no que se refere ao seu comportamento: Irreverência congénita, ousadia e provocação, ausência de pudor e inclinação para violar regras sociais pré-estabelecidas e/ou velhos tabus, a fraqueza pelas mulheres e sobretudo a predisposição constante para criar situações ridículas, hilariantes.

Lembro-me, a propósito, de uma conversa entre dois milícias em que um deles explicava ao outro, de forma convincente, que aos brancos não lhes interessava o fim das guerras, de todas as guerras e, acrescentava:

- Na terra deles há uma coisa pequena do tamanho de uma agulha que era capaz de arrasar todo o território da Guiné e matar todos os terroristas num abrir e fechar de olhos.

Agora, eu sei que ele se referia as trágicas bombas largadas sobre Hiroshima e Nagasaki. O segundo milícia, mais lúcido, tinha replicado ao primeiro:

- Deus nos livre, se isso acontecesse, tu ias esconder o teu traseiro fedorento onde, na cova de um porco-espinho?!

Perante a gargalhada geral dos presentes, a conversa que tinha começado de forma amena, terminara em pancadaria. Quem teria razão?


(v) A (mu)dança das bandeiras

Na manhã do dia 1 de Setembro de 1974, os poucos soldados que ainda estavam 
presentes (um pelotão da 2ª CCaç / BCAÇ 4514/72,, perfilaram no centro do aquartelamento para cumprir o último acto militar da entrega do quartel de Fajonquito. De um lado estavam os portugueses, doutro, os guerrilheiros. Frente a frente, pela última vez. Todos fardados com rigor. Cada grupo com a sua bandeira. As cores não eram muito diferentes, vermelha, verde e amarela. Só divergiam nos motivos, na origem e no destino. Os “ex-bandidos” também estavam distintos nesta derradeira cerimónia de passar o testemunho.

Notava-se que na fila dos portugueses, não havia muita diferença, pareciam ter sido escolhidos a dedo, altura mediana. Já do lado dos nossos, a disparidade era gritante, enquanto uns eram baixinhos, outros eram desmesuradamente altos. Como na música e na dança, na África tropical a desordem é só aparente.

Da boca do oficial saíram, de forma vigorosa, os “firme” e “ombrós-arma”, acompanhados de movimentos da tropa a condizer, a corneta soou estridente seguida pelo coro dos cães da aldeia em protesto, as armas foram apresentadas a altura dos peitos soerguidos. 

Primeiro, arriaram a bandeira portuguesa, lentamente no início, mas quando ia quase a meio do percurso, contrariando o ritmo habitual, com largos esticões o soldado fê-la cair rapidamente, atirando o pano em cima dos ombros, enquanto desfazia o nó. O gesto denunciava alguma impaciência. Depois, foi a vez da nova bandeira subir e flutuar ao vento. Garanto-vos que estávamos ansiosos e orgulhosos.

O guerrilheiro encarregue do acto deu dois passos a frente, encaixou a bandeira na corda e puxando uma das pontas, fê-la subir, normalmente. E quando estava quase a chegar ao topo, por qualquer razão, estas se emaranharam entre si deixando a bandeira presa, não podendo subir nem descer. Foi precisa uma pequena ajuda do soldado português para acabar com a trapalhada das cordas e terminar, finalmente, com a parada (seria isto um sinal para o futuro?).

Depois houve uma troca de apertos de mãos de parte a parte. Havia uma pequena assistência de populares do lado de fora dos arames farpados. Não tinham sido convidados.

Olhando para trás no tempo, esta cena onde uma dúzia de soldados está perfilada frente a frente, procedendo a passagem simbólica do poder de uma terra que tinha sido administrada durante muitos anos por militares, na ausência de qualquer autoridade ou representantes da sociedade civil, desperta em mim, pouco a pouco, a sensação de que a Guiné, a nossa querida Guiné, de facto, não tinha sido preparada para viver sob um regime civil com base em princípios de governação democrática.

Por outras palavras, a população da Guiné foi, e durante muito tempo, preparada para conviver com as ditaduras militares. Não surpreende muito, a ordem da sucessão parece inequívoca. De distrito militar repressivo (princípios do século XX), o território passou para uma província militarizada e em guerra (1963/74) e desta seguimos directamente para uma ditadura de guerrilheiros impreparados, ávidos de poder e sedentos de sangue. 

Não existe e nunca existiu uma tradição de poder civil, situada acima dos grupos étnicos. Neste aspecto, em particular, as ex-colónias francesas estavam ou ainda estão a milhas de avanço. As imagens filmadas sobre as independências desses países são disso um facto bastante revelador, pondo de parte o caso da Algéria.


(vi) Os meus amigos guerrilheiros, balantas


Foi preciso esperar pela terceira vaga de guerrilheiros, sempre em bigrupos, para finalmente conseguir fazer alguma amizade. Eram dois combatentes de etnia Balanta, naturais de Banta (região de Quinara), o Dinis e o Marcos. Pelo menos é o que me tinham dito.

Se os portugueses me tinham ensinado as primeiras letras de forma desinteressada, foi com esses jovens Balantas que acabei por assumir a real necessidade de aplicar-me aos estudos a fim de melhor poder contribuir para a construção da nossa Pátria (um vocábulo novo, com consonância especial, na altura).

Com os soldados portugueses tinha começado a moldar um instrumento, uma ferramenta de pesquisa e de trabalho mas foram estes guerrilheiros do PAIGC, esfarrapados e desnutridos que, imbuídos do espírito genuíno de libertação e emancipação de todos os povos da Guiné sem distinção, na altura, me ajudaram na definição do objectivo da minha escola. O que antes era longínquo e desconhecido, passou a ser conhecido e desejado.

Em casa o meu pai recebeu-os efusivamente, tirando o chapéu da cabeça e curvando-se em sinal de respeito antes de lhes apertar as mãos, como sempre fazia diante das autoridades. O Dinis, calma e serenamente, explicou-nos que estes gestos já não se justificavam pois, todos eles eram filhos do povo.

 Nós lutamos para acabar com a humilhação do nosso povo em geral e dos nossos pais em particular, homens e mulheres, foi isso que Cabral nos ensinou e é isso que vamos transmitir aos nossos irmãos mais novos.

Ele falava olhando para mim, meigamente.

Na estrutura militar dos guerrilheiros, havia o comandante e o adjunto do comandante, mas a partir dali já era difícil descortinar a sequência hierárquica, tanto para cima como para baixo na cadeia. Eram sinais de uma desordem latente donde podia nascer a anarquia que viria ao de cima, anos depois.

O Dinis era um combatente simples, um aldeão que, não sendo muito instruído era relativamente bem informado sobre as ideias e conceitos políticos da época. As suas palavras eram simples e claras e com ele iniciei a minha aprendizagem na escola do pensamento polítíco que começava com Cabral e terminava em Marx e Engels ou vice-versa.

Nesta viagem de iniciação político-ideológica, o Lenine era a criança prodígio que tinha encontrado o livro de um velho sábio (Marx) e graças ao qual ele tinha revelado ao mundo as ideias revolucionárias de como tornar o mundo mais justo, mais progressista, apesar das contrariedades criadas pelas forças reaccionárias da direita capitalista (os demónios). “Foram as ideias contidas nesse livro antigo que, também, permitiram a libertação do nosso povo, através de Amílcar e seus companheiros”, concluía Dinis.

No entanto ele não sabia dizer se, eventualmente, Cabral teria encontrado com o jovem Lenine, quando foi a Moscovo, à procura de tais ideias. Ele se defendia, dizendo: “Tu és jovem e já bastante avançado na escola, depois, quando fores para a União Soviética, perguntas a eles para saber, eu não sei, não estive lá, sou um simples combatente”.

Saberia mais tarde que Cabral tinha nascido no ano de 1924, no mesmo ano em que morria o líder dos sovietes, o Lenine. O mais importante aqui não era a forma mas sim o conteúdo.

A passagem dos guerrilheiros por Fajonquito foi breve, mas antes de partir, desmantelaram completamente o quartel, onde nunca chegaram a se instalar verdadeiramente, seja pelo pobre número de efectivos ou por outras razões desconhecidas. A atenção estava, sobretudo, concentrada sobre Canhámina e os caminhos de acesso à fronteira com o Senegal.

Quanto ao resto, os olhos atentos dos comissários políticos se encarregariam de velar. O fim do quartel representou, para a aldeia, o inicio da escuridão, a noite, com o desaparecimento do único grupo gerador da localidade. Ninguém tinha pensado nas consequências, aliás, nem sequer tinham dado à população a possibilidade de pensar.

Mais tarde soube que o Dinis e o Marcos se tinham voluntariamente desmobilizado e regressado para a sua aldeia natal onde continuariam a trabalhar com os jovens da sua tabanca, ajudando na recuperação das bolanhas abandonadas durante a guerra e continuando a sensibilização dos mais novos sobre os ensinamentos de Cabral no meio de histórias da luta de libertação nacional para a qual tinham dado o melhor da sua juventude.

No ano seguinte, após ter concluído o ensino primário, eu cumpriria a promessa feita ao Dinis de continuar os estudos na cidade, mais precisamente no ciclo preparatório de Bafatá,  que tinha sido aberto poucos anos antes. Já não era somente a fome e a batalha pelo reconhecimento do grupo que me impeliam para a frente mas, também, a fome pelos livros, pelo saber, pensando, no meu íntimo que a única forma de voltar a reencontrar os meus divertidos e irreverentes amigos brancos era pela via da escola.

Antes porém, de fazer a minha primeira viagem a Europa em 1985, mais precisamente à URSS, tinha ido à tabanca de Banta, no sector de Empada, à procura dos meus velhos camaradas de 1974. Na localidade, esperava-me uma pequena surpresa, pois, ninguém se lembrava dos antigos combatentes do PAIGC com os nomes de Dinis e/ou Marcos.

Penso que teria acontecido uma dessas práticas muito comuns entre os Guineenses das zonas rurais, de usar nomes (cristãos, logo civilizados) fabricados para o momento e a ocasião,  aos quais podiam livrar-se mais rapidamente que um camaleão muda as suas cores.  Na aldeia, teriam voltado aos seus verdadeiros nomes da terra, ocupando os assentos que as suas idades sociais lhes reservavam dentro da comunidade (que não coincidiam necessariamente com a idade biológica), animando as festas dos “ irãs” que habitam os grandes poilões da floresta sagrada do sul.

No caminho de regresso à cidade, perguntava-me a mim mesmo se eles existiram de facto ou se tudo não passara de pura imaginação do espírito fértil de uma criança que queria acordar cedo demais?!

Fajonquito, 17 de Junho de 2010

Cherno Baldé (**)

[ Revisão, fixação de texto, adaptação, subtítulos, para efeitos de publicação neste poste: LG]

(Continua)

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Guiné 61/74 - P22975: Notas de leitura (1417): “A crise alimentar e o estado socialista na África Lusófona”, por Rosemary E. Galli, artigo publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 6 e 7, Janeiro/Dezembro de 1987 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Fevereiro 2019:

Queridos amigos,
Muitos dos sonhos e promessas dos líderes do PAIGC revelaram-se impraticáveis, Rosemary Galli estudou aprofundadamente o modelo de desenvolvimento rural seguido na colónia portuguesa e depois, nos regimes de Luís Cabral e Nino Vieira, disseca as lógicas de funcionamento, o que os líderes do PAIGC pretendiam e o que rotundamente falhou no modelo produtivo e exportador, como recaiu sobre os camponeses o ónus da reconstrução e como estes viraram as costas ao sistema estatal. É preciso ter investigado muito para sintetizar e tirar as conclusões de estratégias que falharam e que, pior do que tudo, comprometeram o desenvolvimento rural da Guiné-Bissau no médio a longo-prazo.

Um abraço do
Mário



A economia guineense: Do desenvolvimento colonial a Nino Vieira (2)

Beja Santos

Devemos à investigadora norte-americana Rosemary Galli uma poderosa análise do desenvolvimento rural da Guiné-Bissau, as suas pesquisas e reflexões são altamente fundamentadas e profundamente incómodas para as decisões políticas tomadas por sucessivos governos guineenses depois da independência. Vimos no texto anterior um resumo do quadro histórico da agricultura na Guiné-Bissau a partir da colonização portuguesa e da lógica que imperou no Estado Novo.

A guerra de libertação nacional, como é óbvio, condicionou o modelo produtivo e, consequentemente, o modelo exportador. Durante a guerra houve migração em grande escala: ainda hoje não se sabe ao certo o número daqueles que fugiram para o Senegal e para a Guiné-Conacri; dezenas de milhares foram para Bissau; constituíram-se reordenamentos que, de algum modo, alteraram o figurino das produções agrícolas; e uma grande quantidade de jovens abandonou as suas casas para se juntar aos combatentes pela libertação; houve bombardeamentos dos diques e invasão dos arrozais pela água salgada.

A maior parte do peso da reconstrução do pós-guerra recaiu sobre os camponeses: a reparação de diques exigiu capital e mão-de-obra em grandes quantidades; foi preciso passarem alguns anos até a água das chuvas dessalinizar os campos de arroz; os camponeses não tinham economias e contaram com pouca ou nenhuma ajuda do Governo. O investimento do Governo em infraestruturas económicas foi mínimo. Entre 1975 e 1980, quase não houve qualquer extensão do sistema rodoviário. O olhar de Rosemary Galli vai em todas as direções, o seu balanço sopesa o sistema de transportes, as infraestruturas, o abastecimento e os preços. Lembra que o melhoramento do sistema fluvial teria representado uma grande ajuda para o setor camponês das zonas orizícolas do sul. Antes do século XX a maior parte do comércio fazia-se através das rias, depois da independência quase nada foi feito para revitalizar este sistema de comunicação. A frota era velha e encontrava-se principalmente nas mãos do Estado, os autocarros e camiões propriedade do Estado cedo ficaram inoperacionais e com falta de manutenção apodreceram. 

O PAIGC procurou substituir com a sua própria rede de lojas a Casa Gouveia e as casas comerciais autorizadas pelo Governo em cada área que libertava. Depois da guerra os chamados Armazéns do Povo tomaram conta da Casa Gouveia e de uma sociedade comercial de capital estatal e privado, a SOCOMIN, para complementar as atividades dos Armazéns do Povo. O sistema revelou-se extremamente inconveniente, supercentralizado, ineficiente e corrupto. E, pior do que tudo, não chegava de facto aos produtores rurais. Atribui-se as causas da ineficácia a uma política de importações inadequada, à inexperiência dos gestores do sistema e a uma má distribuição dos produtos entre os diferentes setores. E a política de preços foi determinante para o insucesso. Embora o PAIGC tivesse elevado os preços ao produtor após a independência, estes não acompanharam a subida dos preços dos poucos produtos importados que chegavam ao campo. O poder de compra dos camponeses em 1983 era menor do que na altura da independência. Uma barra de sabão importado custava cerca de um dólar no mercado oficial. Isto significava que o seu preço para os camponeses era 3,5 kg de arroz ou 5 kg de amendoim. Para um camponês, três quilos de arroz equivaliam à alimentação de uma semana. Uma lata de leite em pó de 2,5 kg custava cerca de 10 dólares ou quase 37 kg de arroz e/ou 49 kg de amendoim.

Para a investigadora, a política agrícola seguida na Guiné-Bissau a seguir à independência revelou a continuação de muitas das políticas do Estado Novo e fundamentalmente pelas mesmas razões: aumentar as receitas para pagar à administração estatal e para investir na indústria. O malogro foi de tal ordem que foram destruídas as oportunidades a longo-prazo para o desenvolvimento agrícola, os produtores exportavam à candonga, levaram os seus produtos para fora do país. O golpe militar de novembro de 1980 prometia alterar todo este estado de coisas, o Conselho da Revolução que tomou o poder pediu ao Governo uma retificação da sua política. A reestruturação que se pretendeu imprimir em 1982 assentava em que as importações ficariam sob o controlo do Estado através da Companhia de Comércio Externo, seguir-se-ia uma política de importações em que 80% das divisas iriam para itens de subsistência básica e seriam geridas pelo monopólio estatal; os Armazéns do Povo e o SOCOMIN conheceriam restruturação, um para tomar conta do comércio externo e a outra o comércio interno, ficando o comércio a retalho completamente nas mãos de comerciantes privados.

A conclusão da investigadora é implacável: o que veio a acontecer foi o afastamento dos administradores estatais, perderam o contato direto com os produtores; o novo Governo fez muitas mudanças de pessoal nos anos de 1980 para combater a corrupção, mas era evidente que a estrutura do poder não tinha mudado e o mesmo se pode igualmente verificar na política de câmbios, tudo falhou com as sucessivas desvalorizações da moeda. “Investigações realizadas pela autora sobre os dois principais projetos de desenvolvimento orizícola revelaram que parte do equipamento e parte do arroz dos projetos já tinham sido trocados pelos bens básicos que faltavam na área. A investigação sobre o principal projeto de desenvolvimento do amendoim mostrou que a introdução da tração animal não produziu o crescimento das culturas esperado. Pelo contrário, permitiu que os jovens partissem mais cedo do que o habitual para irem participar na colheita de amendoim no Senegal. A emigração, quer temporária quer permanente, e o contrabando, constituem os sinais de uma luta passiva contra as políticas de acumulação primitiva que prometiam tanto mas deram tão pouco”.

Enfim, conclusões bem tristes para um país a quem fora prometido uma libertação com melhores condições de vida.

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22967: Notas de leitura (1416): “A crise alimentar e o estado socialista na África Lusófona”, por Rosemary E. Galli, artigo publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 6 e 7, Janeiro/Dezembro de 1987 (1) (Mário Beja Santos)

domingo, 6 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22974: In Memoriam (426): Paz para a alma de todos os nossos camaradas que morreram no desastre de Cheche, faz hoje 53 anos...Foram 47 vidas ceifadas na flor da idade... Estupidamente!... (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS / BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)




Infografia: Jorge Araújo (2019) (*)


1. Mensagem de Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM,  CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69):


Data - 6 frev 2022 18:26  
Assunto - Desastre do Cheche

Luis, boa tarde

Lembrei me agora que faz 53 sobre o desastre do Cheche,  com a jangada,  que ninguém ainda hoje sabe o que aconteceu na realidade.

Foram 47 vidas ceifadas na flor da idade. E estupidamente!  Da CCAÇ 2405 / BCAÇ 2852 e da CCAÇ 1790 / BCAÇ 1933.

O Cap José Aparício, comandante da nossa CCAÇ 1790,  já não nos podes contar, dizem que est
á doente, com doença degenerativa de evolução prolongada.

Paz para a alma de todos. (**)
.
Luís, se puderes fazer uma referência agradecia.

Saúde para todos.

Virgílio Teixeira (***)
_________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de maio de  2019 > Guiné 61/74 - P19788: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Os três acidentes na hidrografia guineense (Parte III)


(***) Vd. poste de 6 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19474: Efemérides (298): A minha homenagem às 47 vítimas da tragédia do Cheche, há 50 anos, os mortos da CCAÇ 2405 / BCAÇ 2852 e os mortos da CCAÇ 1790, do meu batalhão, BCAÇ 1933: que Deus e a Pátria jamais os esqueçam (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS / BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)

Guiné 61/74 - P22973: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Os sinais de uma mudança anunciada, os recados vindos do Oio e a delegação que voltou de mãos a abanar



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Local onde era o salão de futebol de cinco e a Casa (comercial) Ultramarina onde foi instalada a messe dos oficiais




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Posto de vigilância permanente equipado com uma metralhadora.



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Inscrição da CCAÇ 2435, a companhia que construiu o aquartelamento em 1969




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Local onde estava situado o poste da bandeira; à esquerda as ruínas do refeitório com a padaria



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > O antigo forno na padaria. Na foto,o filho mais velho do Cherno


Fotos (e legendas): © Cherno Baldé (2010). Todos os direitos reservados. 
 [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]







A nossa equipa de futebol de salão no quartel de Fajonquito entre 1974-1975, podendo-se ver em pé: Mamudo, Algássimo e o professor António Tavares;  em primeiro plano, de bruços, : Eu (Cherno) e Aruna (filho do antigo padeiro) à minha esquerda.


Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2009). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Apontamentos autobiográficos:


O Cherno Abdulai Baldé entrou para a Tabanca Grande em 18/6/2009 (*). Ouçamo-lo a falar, resumidamente, dos seus primeiros anos:

 (...)  Chamo-me Cherno Abdulai Baldé, nasci por volta de 1959/60. No quartel de Fajonquito chamavam-me Chico (de Francisco) e tinha amigos soldados que, na sua maioria, eram condutores ou mecânicos-auto. Tive as minhas primeiras aulas com oficiais Portugueses, em Cambajú e Fajonquito.

(...) Em Cambajú, pequeno centro comercial, começou o despertar da minha infância, altura em que, saído da pequeníssima aldeia de Sintchã Samagaya, fundada por meus pais, aterrei-me numa aldeia de muito maior concentração de moranças e de gente. 

(...) Foi naquela época que, na idade de 4 ou 5 anos, aconteceu a minha primeira visão de uma máquina voadora, que terá sido, provavelmente em meados de 1964, precisamente na altura em que estávamos em Samagaia, pouco tempo antes do ataque à zona que nos obrigaria a deixar a aldeia para nos refugiarmos em Cambajú, onde o meu pai já se encontrava a trabalhar alguns anos antes. (...)

(...) Cambaju estava situada mesmo na linha da fronteira com o Senegal, o que lhe emprestava um certo ar cosmopolita onde se cruzavam pessoas de várias origens e destinos e um certo movimento de vaivém de pessoas e mercadorias com as suas três ou quatro casas comerciais, algumas pequenas boutiques e o contrabando pra cá e pra lá das duas fronteiras. (...)

No ano de 1965, altura em que a guerra para a independência se alastrava rapidamente e aterroriza as aldeias daquela área e obrigava a uma concentração maior da população em certos locais com algumas garantias de defesa e protecção militar, Contuboel, Saré-Bacar, Cambajú e Fajonquito constituíam as praças-fortes da área. 

Em Cambajú foi estacionado um destacamento de milícias que assegurava a defesa da localidade e que mais tarde foi reforçado com um destacamento de tropas portuguesas. Pela primeira vez na minha vida ainda jovem, via pessoas de uma raça diferente. Foi um choque tremendo. (...)

(...) Em 1968, o meu pai foi transferido para Fajonquito e com ele toda a nossa família.
Em Fajonquito nasceram os meus irmãos mais novos: Barbosa, Aissatú e Cántaba; e, mais tarde, os filhos da segunda mulher do meu pai, Assiatu Embalo: Umo, Rosa, Mariama e Mamadu-Bobo.

(...) Eu era desses raros pequenos rafeiros do quartel impossíveis de controlar e muito menos de afastar. Quando se fechavam os portões do quartel entrava, mesmo assim, por baixo do arame farpado. O dia e a noite faziam pouca diferença. Apanhava porrada de um ou outro quando deambulava pelo quartel, mas também, dava alguns trocos com emboscadas e pedradas a noite.

A língua ? Isso importava menos. Quando o meu amigo, o Dias, me perguntava "Hó Chiiico já limpaste as minhas botas?", eu respondia de imediato "Sim senhor, já limpaste... e depois ?"... (...)

2. Comentário do editor LG:

No poste P22969 (**), escrevemos o seguinte:

(...) Ninguém, civil ou militar, português ou guineense, conseguiu até agora, como o nosso Cherno Baldé, descrever, com tanta minúcia, vivacidade, humor, ironia, perspicácia e apreensão em relação ao futuro, o que foi a retração do dispositivo militar português e a ocupação, pacífica, pelo PAIGC dos nossos aquartelamentos e destacamentosdas NT e povoações sobre o nosso controlo, na sequência dos acordos de Argel, de 25 de agosto de 1974, entre o Governo Português e o PAIGC.

Com os seus 13/14 anos, ele foi uma testemunha, histórica, privilegiada, diremos mesmo única, do que se passou na sua terra natal, Fajonquito, no dia 1 de setembro de 1974, bem como nas semanas antecedentes e subsequentes. (...)


O comentário que ele deixou no Poste P22912, obriga-nos a reproduzir, em três postes, já a partir de hije, o seu poste P6864 (*), um verdadeiro de antlogia, que por ser muito extenso e ter sido publicado há 11 anos e meio atrás, não é conhecido da maior dos nossos leitores.

Faz parte da série de que ele é autor, "Memórias do Chico, menino e moço", e que já há muito merecia publicação em livro, por constituir um notável documento humano, escrito por um guineense que nasceu e cresceu com a guerra e, que, como tal, deve ser partilhado pelo universo, mais alargado, da lusofonia.


3.  Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I (***)


(i) Os sinais de uma mudança anunciada


Em Fajonquito, o período entre o mês de Junho e o de Agosto de 1974, tinha sido marcado por:

 (i) a chegada de uma nova companhia (BCaç 4514/72), conhecida entre nós como a companhia de Gadamael; 

(ii) a visita dos primeiros elementos da guerrilha;  

e a (iii) saída definitiva das tropas portuguesas de Fajonquito, em 1 de Setembro.

Período rico em acontecimentos, manifestações de apoio e festas, que algumas vezes assumiam formas dramáticas e outras simplesmente cómicas, mas foi sobretudo um período de indefinição, de ansiedades e de questões sem resposta, relativamente ao futuro.

No plano pessoal, tinha conseguido em Contuboel, um bom resultado nos exames da 4.ª Classe do que fechavam o ciclo do ensino primário elementar. Não fizemos nenhuma festa, porque o nosso capitão, Sambaro Djau, tinha reprovado nos exames. Para mim, isto representava uma bela “revanche”, pois, com mais de sete anos de serviço no grupo, e estando sempre na linha da frente, o melhor que tinha conseguido era a frustrante patente de 1.º cabo. Quase nada.

Para as pessoas mais atentas, sempre há um prenúncio que serve de sinal para o que acontece a seguir. Entre os fulas são os chamados dillé. Assim, a queda repentina de uma pessoa adulta, a recepção na cabeça de excrementos de uma ave (se for de um jagudi pode trazer consigo a marca de uma desgraça) etc., são sinais a ter seriamente em conta.

Para mim, este sinal tinha sido uma informação que poderia ser muito importante se não estivesse fora do seu contexto normal,  e que foi transmitida pelo Marques, soldado operacional do 2.º Pelotão da CCAÇ 3549 (Deixós-Poisar), de forma clandestina a uma criança ainda inocente, logo a seguir ao assassinato de Amílcar Cabral em  20 de janeiro de 1973.

Encontrou-me perto do salão,  preparando-se para mais uma partida de futebol com os colegas e, pegando no meu braço, afastou-me um pouco do grupo como sempre fazia quando queria falar comigo a sós. Fazendo parte dos meus admiradores, habitualmente, o tema era sobre futebol, desta vez, e sem qualquer preparação prévia, falou-me assim:

 Chico, olha que o vosso padrinho morreu, pá!

Não tendo percebido e, pensando que se tratava de algum acidente relacionado com os meus amigos, particularmente ao meu turbulento patrão Dias, condutor auto, perguntei:

  Qual dos meus padrinhos é que morreu, o Dias?

  Não, pá, é o Cabral!

Eu não conhecia nenhum Cabral, nem de perto nem de longe, que pudesse ser meu padrinho, o Marques, pressentindo que iriam chover as perguntas, olhando para os lados como se estivesse com medo de alguém, afastou-se para o refeitório sem mais explicações, deixando-me coberto de perplexidade. Teria sido um simples desabafo e mais nada. Não me preocupei mais com isso, aliás, era um grande alívio, afinal de contas, não tinha nenhum amigo com esse nome. No entanto este seria o tal sinal de aviso premónitório

Partindo desse pressuposto básico, na minha opinião, é mais fácil compreender o desenlace final que se seguiu ao 25 de Abril quando os portugueses muito apressadamente entregaram tudo, sem condições, sem contrapartidas-


(ii) Os recados vindos de Oio ou a delegação 
que voltou bredouille (ou de mãos a abanar)


Quando se tornou claro para toda a gente que, com a partida das tropas portuguesas, os guerrilheiros do PAIGC seriam os novos mestres do terreiro, dentre a população civil começou a ser delineado um plano de contacto e de recepção.

Os fulas, maioritários, conscientes da alteração de forças e das novas condições que se desenhavam, da sua postura perante a guerra e face a uma guerrilha praticamente desconhecida, solicitaram aos seus vizinhos mandingas para que fossem eles a tomar a dianteira e servissem de porta-vozes da aldeia. Com essa táctica, pensavam poder sondar sobre as reais intenções da guerrilha e o que se escondia sob a etiqueta das bonitas palavras de “liberdade e unidade nacional”. Ė o que se poderia chamar “o jogo da lebre contra a perdiz” nos contos africanos.

Esta iniciativa tinha sido rapidamente apropriada por Ansumane Sissé, um ex-guerrilheiro arrependido, que, mais tarde soubemos, fazia um jogo duplo entre as duas partes em guerra, tinha beneficiado de apoios para a sua instalação e reinserção no quadro da política de (des)mobilização dos quadros do PAIGC, mas também mantinha os contactos com a guerrilha, fornecendo, de vez em quando, algumas informações. Não fosse o diabo tecê-las.

Embarcados num veículo de um comerciante local, os dignitários seguiram com destino à região de Oio, zona de Caresse, onde eram conhecidas as bases dos guerrilheiros. Dentre os numerosos candidatos, foram seleccionados apenas alguns ao critério e gosto do Sr. Ansumane, que, repentinamente, tinha assumido o estatuto de líder, fazendo valer os supostos conhecimentos e contactos que possuía. Depois de muitos anos de supremacia fula e dos seus patrões portugueses, parecia ter chegado, finalmente, a hora do ajuste de contas.

O meu pai, como muitos outros, não tinha sido escolhido e esta notícia tinha caído como uma bomba na sua cabeça de homem sensato e precavido. Lembro-me ainda do seu olhar vazio, algo aturdido e descontrolado, caminhando cabisbaixo e alheio a tudo, arrastando- na estrada de terra vermelha e poeirenta o seu duplo bubu azul celeste bordado e suas babuchas árabes de cor branca, consumindo-se na preocupação engendrada pela precariedade e incerteza da situação.

Por ironia do destino aqueles que até então eram os bandidos seriam agora os senhores. “Quem pode compreender as partidas que a vida nos prega, hein?!”, estaria ele a pensar. Em casa ele tinha, pelo menos, dois retornados para proteger e sustentar, um antigo leopardo ferido de insónias e um gato preto já sem unhas, isto, sem falar do resto da família. O pior seria a humilhação pública de ser obrigado a fugir.

A delegação voltou ao pôr-do-sol e, ao contrário do que se esperava, não tinham regressado ao som dos tambores, flautas e nhanhero (1) e logo que chegaram dispersaram-se, desaparecendo nas sombras nocturnas das estreitas varandas de palhotas húmidas do mês de Agosto. Aos mais curiosos respondiam:

  Disseram-nos para ficarmos quietos e esperar, no momento certo eles virão ter connosco.

Na verdade, eles nem sequer tinham sido recebidos e por um triz não foram presos por invasão de zona de guerra, ainda repleta de minas. Teriam sido energicamente repreendidos pela sua precipitação e insensatez e, por fim, foram encarregues de transmitir a toda a população que, na óptica do Partido e dos seus dirigentes, não havia cidadãos de primeira e de segunda, que o objectivo da luta armada era libertar o povo da dominação colonial e da opressão fascista e não trocar esta por outra com pessoas diferentes...Por outras palavras, não havia diferenças entre fulas e mandingas, todos seriam tratados da mesma maneira, iguais perante a lei com direitos e obrigações para cumprir.

Por outro lado, o Ansumane não tinha obtido o reconhecimento que todos esperavam. Assim, as nuvens negras do céu tinham-se dissipado um pouco para dar lugar a um horizonte mais claro, mesmo se ainda era cedo demais para dançar.

Importa dizer que esta informação foi salutar e teve o condão de evitar a situação de debandada geral que já se pressentia dentro da comunidade fula. O gado, principal riqueza da comunidade, já estava posicionado, havia muito tempo, perto da fronteira com o Senegal. 

[ Revisão, fixação de texto, adaptação, para efeitos de publicação neste poste: LG]

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(i) Instrumento de música tradicional dos fulas,  feito de fios de cabelo extraídos do rabo de cavalo.

(Continua)

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Notas do editor:





Guiné 61/74 - P22972: Parabéns a você (2033): José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux. Enfermeiro da CCAÇ 2381 - "Os Maiorais", (Buba, Aldeia Formosa e Empada, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22964: Parabéns a você (2032): José Belo, Cap Inf Ref, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2381, "Os Maiorais", (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70) e Dr. Mário Bravo, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 6 (Bedanda e Bisau, 1971/72)

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22971: (Ex)citações (403): no país onde nascemos, nem as "iscas com elas" eram para todos (Eduardo Estrela, Cacela Velha, Vila Real de Stº António; ex-fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71)

1. Mensagem do nosso amigo e camarada Eduardo Estrela (ex-fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71; vive em Cacela Velha,  a jóia da Ria Formosa, cantada por Sophia; um das suas paixões é o teatro amador, mas também comeu, na infância, órfão de pai,  "o pão que o diabo amassou" (*).

Data - 1 dez 2021 23h31

 Data - sexta, 4 fev 2022 , 21:06 
Assunto  - Iscas com elas (*)


Caro amigo camarada e companheiro!

Imagina fins da década de 50,  início da de 60. 

Imagina um puto de 10 ou poucos mais, cujo pai, seu herói como são todos os pais, tinha ficado chateado com a puta da vida e decidido partir.

Na tropa,  tal como hoje, calçava n° 40, mas à época e com a idade atrás referida, esse puto tinha o "privilégio" de calçar sapatos n° 41 ou 42, com jornais na frente interior para não caírem dos pés.

Uma sopa confeccionada com o requinte de dez tostões de ossos comprados no talho e algumas, poucas vezes, iscas normalmente acompanhadas com elas, de modo a melhor lastrar a vasilha digestiva, eram um verdadeiro requinte e um manjar a que infelizmente muitos jovens Portugueses, àquela época, não tinham sequer acesso.

Esse era o País onde ambos nascemos! E esse puto era eu! (**)

Espero que tudo esteja a correr bem com a tua saúde.

Abraço fraterno.

Eduardo

P.S. - Podes publicar no blog com as notas pessoais que achares por bem incluir. 

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de fevereiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22960: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (31): "Iscas com elas..."

(**) Último poste da série > 5 de fevereiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22969: (Ex)citações (402): adeus, Fajonquito!... Abandonámos o quartel quando vimos o primeiro macaco-cão "sorridente" (dentes ensanguentados à mostra), a ser arrastado para a cozinha... (Cherno Baldé)

Guiné 61/74 - P22970: Os nossos seres, saberes e lazeres (490): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (36): Numa Lisboa de fronteira, soluções ousadas com gente saloia e corrida de touros (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
Tinha 7 anos quando fui viver no Bairro Social de Alvalade, junto ao Campo Grande, todo o percurso de Entre Campos ao Campo Pequeno, a Avenida 5 de Outubro que acabava num descampado mais tarde ocupado por um colégio e por uma fiada de vivendas, hoje voltadas para a Biblioteca Nacional, as visitas que comecei a fazer à Biblioteca Municipal das Galveias para ler o Cavaleiro Andante, o Mosquito, depois os livros da Biblioteca dos Rapazes, o Júlio Verne e por aí fora, tornaram-me este local familiar. Posso imaginar os problemas postos ao arquiteto para decorar o interior desta estação num território fronteiriço entre a cidade e o campo, assim aconteceu até ao fim da Segunda Guerra Mundial, depois deu-se a explosão da construção para satisfazer novos estratos sociais que emergiram na multiplicidade de serviços que o Estado Novo consentiu. Francisco Simões e a dupla dos arquitetos encontrou soluções engenhosas para representar um quadro de identidade do passado ao presente, todo aquele azul celeste e mármores em policromia acolhem o passageiro e dão-lhe oportunidade, nos minutos de espera, de ir descobrindo a cifra de toda aquela representação humana e animal.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (36):
Numa Lisboa de fronteira, soluções ousadas com gente saloia e corrida de touros


Mário Beja Santos

Aí pelos anos 1990 ampliaram-se várias estações do metro, o Campo Pequeno foi uma delas, coube ao escultor Francisco Simões e aos arquitetos Duarte Nunes Simões e Nunes Simões encontrar soluções plásticas e de remodelação num local marcado por uma praça de touros, com reminiscências de moradias, um entreposto de gados num espaço onde mais tarde se implantou uma Feira Popular, e uma vasta tradição à volta do itinerário saloio que passava por Entre Campos, eram negócios de produtos agrícolas levados da região de Loures para os principais mercados da capital. A solução estética a encontrar, diga-se em abono da verdade, não era óbvia, o Campo Pequeno tem um longo passado de zona de fronteira, durante muito tempo era o limite da zona da Lisboa urbana, depois o Campo Grande, deste ao Campo Pequeno passavam os gados para matança e consumo humano, mas havia outras atividades que Francisco Simões estudou e deu resposta com indiscutível talento.
Lembrou as lavadeiras e aguadeiras (vindas de Caneças), as vendeiras de fruta, de galinhas e ovos, as leiteiras e as floristas. Pelo eixo viário paralelo à Avenida da República, e que ainda na minha infância vi marcado por leitarias, carvoarias, tabernas e outro comércio adequado a servir esta tropa de vendedores, muitos deles vindos da Ribeira ou para lá caminhando a partir do chão saloio, pois bem, Francisco Simões perfilou esta mole humana e procurou resposta para o delicado problema da tauromaquia, num tempo em que já crescia a hostilidade às corridas de touros. Também aqui foi hábil, não há representações do ato de tourear, condiciona toda a representação plástica aos elementos do espetáculo: cavalos, touros, cavaleiros, toureiros; obviamente a imagem da mulher, como alusão erótica que a corrida contém.

Estação de metro Campo Pequeno nos primeiros tempos
Respeitaram-se integralmente os painéis por Maria Keil, os anos passam, são bem conhecidas as limitações que lhe impuseram para revestir a pele destas paredes, a artista encontrou soluções felizes, engalanando com geometria dinâmica e subtis jogos de cor todo este revestimento parietal, que hoje admiramos como clássicos da azulejaria.
Se o objetivo do escultor foi o de conceber uma arte ligada às coisas e às pessoas na confluência do Campo Pequeno, no passado e no presente, tomou opções que permitem considerar o produto final como de extrema engenhosidade: cantaria portuguesa, com o recurso ao polimento ou amaciamento dos mármores. Sabe-se que na questão da sua obra Francisco Simões utilizou diversos mármores: lioz, de Pêro Pinheiro; azulino, de Maceira; encarnadão e amarelo, de Negrais; rosa, de Vila Viçosa; ruivina, de Estremoz; brechas, de Tavira; negro, de Mem Martins; verde, de Viana do Alentejo; cinzento, de Trigaches, Alentejo, e azul da Baía, Brasil. Tudo em escultura figurativa. Impossível ao passageiro não se sentir curioso em procurar descobrir o sentido desta ligação entre o passado e o presente.
Impunha-se igualmente um diálogo permanente entre os arquitetos e o escultor. Os arquitetos não podiam fazer alterações de fundo nas dimensões da estação da autoria do arquiteto Keil do Amaral, havia que intervir naquele espaço alargado com as obras de arte, encontrou-se solução na abobada do cais com um azul-céu que aumentou virtualmente as dimensões e renovou os pavimentos mármore, garantido uma fruição dos painéis envolvendo a corrida dos touros e os seus protagonistas. A parceria arquitetura-escultura foi um sucesso.
(continua)
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Nota do editor

Guiné 61/74 - P22949: Os nossos seres, saberes e lazeres (489): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (28): Faiança polícroma, corda seca, ponta de diamante, o azulejo decorativo visto à lupa (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22969: (Ex)citações (402): adeus, Fajonquito!... Abandonámos o quartel quando vimos o primeiro macaco-cão "sorridente" (dentes ensanguentados à mostra), a ser arrastado para a cozinha... (Cherno Baldé)


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 4740 (1972/73) > O "Pifas", mascote da companhia...

Foto: © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Ninguém, civil ou militar,  português ou guineense, conseguiu até agora,  como o nosso Cherno Baldé,   descrever,  com tanta minúcia, vivacidade, humor, ironia, perspicácia e apreensão em relação ao futuro, o que foi a retração do dispositivo militar português e a ocupação, pacífica,  pelo PAIGC dos nossos aquartelamentos e destacamentosdas NT  e povoações sobre o nosso controlo, na sequência dos acordos  de Argel, de 25 de agosto de 1974, entre o Governo Português e o PAIGC. 

Com os seus 13/14 anos, ele foi uma testemunha, histórica, privilegiada, diremos mesmo única,  do que se passou na sua terra natal, Fajonquito, no dia 1 de setembro de 1974, bem como nas semanas antecedentes e subsequentes.  

Este comentário que ele deixou no Poste P22912,  obriga-nos a reproduzir, em duas ou três postes, já a partir de amanhã, o poste de antologia, P6864 (*), que por ser muito extenso e ter sido publicado há 11 anos e meio atrás, não é conhecido da maior dos nossos leitores.

Voltamos a dizer aqui que a série de que ele é autor,  "Memórias do Chico, menino e moço", já há muito merecia publicação em livro. Oxalá/Inshallah(/Enxalé ainda possa aparecer um patrocinador, individual ou institucional, que aceite custear parte ou a totalidade dos custos de produção editorial de uma obra que é já, em formato digital, no nosso blogue, um grande documento humano. 

A lusofonia só teria  ganhar com isso.  E é mais do que tempo de perdermos  a  mania do "politicamente correto" quando falamos do passado... O fortalecimento da amizade entre os dois povos, e e das relações entre os dois países, só tem a ganhar com a partilha de testemunhos "puros e duros" como o Cherno Baldé, o "Chico de Fanjanquito"... (LG)


2. Comentário de Cherno Baldé  ao poste P22912 (**)


Caros amigos,

De acordo com o plano do Estado-Maior, a entrega do quartel de Fajonquito devia acontecer no dia 02Set74 (*), na realidade esta cerimónia (fúnebre) foi antecipada um dia antes (ver a pesquisa de José Marcelino Martins sobre as companhias que passaram por Fajonquito).

O pequeno grupo (menos de um Pelotão da segunda companhia do BCAÇ 4514/72, comandada pelo Cap Mil Inf Ramiro Filipe Raposo Pedreiro Martins) que restava para a entrega,  estava com os cabelos em pé de tanta pressa para deixar a localidade.

Eu, mais um grupo de crianças (todos rafeiros profissionais) que tinha ido buscar o (seu) café da manhã, fomos dos poucos que tiveram o privilégio de assistir à rápida cerimónia que decorreu na parada, junto ao mastro da bandeira, mas fora dos arames, pois o aqurtelamento, de facto, ja estava sob o controlo dos guerrilheiros, sempre armados, que nos olhavam com aquele olhar felino de homens de mato, como que a dizerem: "Pensam que isto vai continuar, seus malandros?". 

Por algum tempo, talvez 2 ou 3 meses, ainda continuámos a comer bacalhau com arroz e um pouco de batatas dos restos que tinham ficado no depósito de géneros. Abandonámos o quartel quando vimos o primeiro babuino sorridente (dentes ensanguentados à mostra), a ser arrastado para a cozinha.

O PAIGC sabia o que estava a fazer e, para adormecer a desconfiança dos homens grandes fulas, o primeiro bigrupo que entrou na Tabanca era constituido maioritariamente de jovens e simpáticos balantas de Sul com excepçao do homem da segurança (a PIDE do partido) e do Comissário Político que eram naturais da zona e conheciam tudo e todos. Caso fossem mandingas (nossos vizinhos e arqui-rivais), certamente, a recepção não seria a mesma e muitos iriam juntar-se aos que ja estavam do outro lado da fronteira Norte.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé
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Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6864: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (18): A (mu)dança das bandeiras em Fajonquito, em 1974

 
(***) Último poste da série > 4 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22966: (Ex)citações (401): A Suécia... sempre original (José Belo) - Parte II: A cidade de Södertälje, com mais de 70 mil habitantes (,sede de grandes empresas conhecidas como a Scania, a AstraZeneca e a Alfa Laval), vai usar corvos-da-nova-caledónia para recolher as beatas do chão

Guiné 61/74 - P22968: As tuas melhoras, camarada! ... (3): Padre Mário de Oliveira (ex-alf mil capelão, CCS/BCAÇ 1912, Mansoa, 1967/68): "hora a hora Deus melhora", diz o povo, mas sabendo-se que "a doença vem a cavalo e vai a pé"...


Guiné > Região do Oio > Mansoa > c. 1967/68  >   O alf mil capelão Mário de Oliveira, assinalado a amarelo,  entre militares da CCS/BCAÇ 1912  (1967/69) e/ou da CCAÇ 1686 (que esteve sempre em Mansoa e a que pertenceu o Aires Ferreira, alf mil inf, minas e armadilhas, e membro da nossa Tabanca Grande) . O Mário de Oliveira viria a receber ordem de expulsão do CTIG em 8 de Março de 1968. (*)

Foto: © Padre Mário da Lixa (2003). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem pessoal do nosso editor LG:


O Padre Mário da Lixa,
nascido em Lourosa,
Santa Maria da Feira,
 em 1937


Amigos e camaradas:

Tenho boas notícias!... O nosso homem, com múltiplas fraturas (bacia e pernas, devido ao choque da viatura automóvel, desgovernada contra um muro ou parede de uma casa, em Macieira da Lixa, Felgueiras, no passado dia 26 de janeiro), está a reagir bem aos antibióticos que teve de tomar devido aos problemas respiratórios e renais, a seguir à intervenção cirúrgica a que foi submetido... (**)

Ao que nos disse a enfermeira, que está com ele nos cuidados intensivos, de regresso ao serviço depois de dois dias de folga, o Mário está a recuperar bastante bem, contrariando os prognósticos mais reservados...

Esteve em coma induzido, e o bispo do Porto deslocou-se pessoalmente a Penafiel, ao Centro Hospitalar de Vale do Sousa, para se inteirar do seu estado... Alguém da equipa de saúde deu   conhecimento ao doente desse facto, e ele reagiu, entubado, com um encolher de ombros, como quem diz: "Vem atrasado mais de 50 anos!"... 

A Alice, que o conhece bem, e sabe da sua coragem e força de caráter, logo me tinha dito: "O Mário é um resistente, vai safar-se de mais esta"!...

Hoje já não estava em coma induzido, mas está cheio de ferros... Foi uma cirurgia de muitas e muitas horas...Vai ter uma dura recuperação nos tempos mais próximos... Mas os  amigos e camaradas do Mário da Lixa já podem respirar um pouco de alívio...

É, para já, o que tenho para vos contar. E citando a sabedoria popular, "hora a hora Deus melhora", mesmo sabendo-se que "a doença vem a cavalo e vai a pé"...

Força, Mário!...Queremos em breve dar-te uma "alfabravo". (***)


PS - Se acharem bem, mandem-lhe uma mensagem, para ele ler, quando sair do hospital e voltar a casa, ele vai gostar e não se importa que eu aqui divulgue o seu endereço de email: padremario@sapo.pt 

Este endereço é, de resto,  público: ver aqui o jornal digital Fraternizar, de que ele é o fundador e diretor.
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Notas do editor:



sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22967: Notas de leitura (1416): “A crise alimentar e o estado socialista na África Lusófona”, por Rosemary E. Galli, artigo publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 6 e 7, Janeiro/Dezembro de 1987 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Fevereiro 2019:

Queridos amigos,
É uma tremenda injustiça não se dar o devido relevo aos trabalhos desta investigadora norte-americana. Este artigo é comprovativo de alguém que investiga e que sabe arrumar o pensamento. Rosemary Galli irritou muito as elites do PAIGC entre os anos 1970 e 1990, pôs a nu muita ingenuidade e desconhecimento: estavam a repetir de portas e travessas uma estratégia que já tinha sido elaborada no Estado Novo. Ainda hoje continuam no limbo as denúncias de René Dumont que deitou abaixo a euforia do modelo industrial que se pretendia instituir na Guiné-Bissau, um sorvedouro de divisas que arrasaria o sistema financeiro, como arrasou.

Um abraço do
Mário



A economia guineense: Do desenvolvimento colonial a Nino Vieira (1)

Beja Santos

O artigo “A crise alimentar e o estado socialista na África Lusófona” por Rosemary E. Galli, publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 6 e 7, janeiro/dezembro de 1987, oferece-nos uma extraordinária síntese do que aproxima a perspetiva colonial para o desenvolvimento agrícola e como este mesmo desenvolvimento foi encarado pelos dirigentes do PAIGC de Luís Cabral a Nino Vieira. Rosemary Galli é um nome importantíssimo na investigação da Guiné-Bissau, é coautora de uma obra incontornável “Guinea-Bissau: Politics, Economics and Society” (1987) e autora de “The Political Economy of Rural Development” (1981), ao tempo era professora universitária em Iowa, no Wartburg College.

Na introdução, a autora justifica-se: “Este ensaio sustenta que as fontes da política governamental na África Lusófona seriam tanto históricas como contemporâneas, e que foram legitimadas por um modelo de acumulação derivado simultaneamente da tradição socialista e da prática do Governo colonial. De facto, em pouco se diferenciavam”.

A lógica do Estado Novo é bem conhecida: uma política de extração de excedentes agrícolas e minerais das colónias destinadas a fornecer matérias-primas para as indústrias portuguesas; esses produtos eram vendidos nos mercados mundiais em troca de divisas que ajudassem a equilibrar a balança comercial portuguesa. Com o objetivo de estimular o comércio com Portugal, Salazar elevou os preços da importação do algodão, do açúcar e dos óleos vegetais ligeiramente acima dos níveis do mercado mundial. Os camponeses foram obrigados a cultivar produtos tais como o algodão em Angola e Moçambique e amendoim na Guiné. Outra das políticas utilizadas foi a de encorajar a produção em grande escala de colheiras. Esperava-se que os camponeses fornecessem a mão-de-obra nestas plantações, e o regime estabeleceu uma legislação laboral que, para muitos, era uma forma moderna de escravatura. Tratava-se de acumulação primitiva na sua forma mais crua.

Vale a pena tomar à letra o essencial da argumentação de Rosemary Galli. O desenvolvimento da agricultura da Guiné teve sempre lugar no contexto de uma economia regional integrada na economia mundial. Floresceu sem qualquer intervenção direta por parte do Estado. A partir do século XIII, os guineenses constituíam parte da economia e da sociedade da Senegâmbia dominada pelo Império Mandinga do Mali. Os principais povos do litoral da Guiné – Balantas, Manjacos, Papéis, Brames – foram empurrados ao longo da costa pelos súbitos de um império que estava em plena expansão – os Mandingas. O Mali controlava o comércio internacional da África Ocidental. O comércio atlântico começou quase os portugueses transformaram as áreas costeiras em animados centros de comércio. Estabeleceram-se em claves com autorização dos governantes locais, forneciam-se produtos manufaturados em troca de ouro, marfim e, sobretudo, escravos. Os comerciantes Mandingas e mais tarde Fulas deslocaram-se para as zonas costeiras para estar perto dos entrepostos europeus.

Com a abolição do tráfico de escravos, os guineenses viraram-se para a produção de mercadorias agrícolas, a principal colheita de exportação era o amendoim. As primeiras plantações situavam-se nas ilhas Bijagós e no continente ao longo do Rio Grande.

Portugal iniciou a sua ocupação da Guiné em finais do século XIX. Em finais da década de 1980, os Balantas iniciaram a primeira de uma série de migrações maciças em direção ao sul da Guiné, para a área de Fulacunda e mais tarde para Catió, tornaram-se preponderantes no Tombali e em Quinara, construíram elaborados arrozais. Embora os portugueses fizessem concessões de terras a comerciantes portugueses, cabo-verdianos e de outras origens, os Balantas eram quem de facto possuía as terras e estabelecia uma relação comercial com os concessionários. Na década de 1920, Catió tornou-se o celeiro da Guiné e por volta de 1930 passou a exportar arroz. A influência do comércio português até ao Estado Novo foi bastante difusa. Os franceses controlavam o comércio do amendoim, os alemães e os belgas tinham desenvolvido o comércio da borracha e de produtos derivados da palmeira até à I Guerra Mundial e o arroz encontrava-se nas mãos de pequenos comerciantes, sendo a produção e a recolha feita por camponeses.

O Estado Novo tentou instituir um monopólio comercial português. Colocou o comércio de importação e exportação nas mãos da Companhia União Fabril, que operava na colónia através da Companhia António Silva Gouveia. Uma vez que as sucursais da Casa Gouveia não conseguiam cobrir todo o país, uma série de outros comerciantes portugueses e sírio-libaneses foram autorizados a funcionar como agentes de recolha, e a administração colonial estabeleceu uma quantidade de centros comerciais tornando obrigatória a entrega de colheitas aos compradores oficiais sediados nesses centros. O comércio obrigatório foi complementado pelo cultivo obrigatório do amendoim. O Estado Novo distribuiu aos produtores variedades de amendoim melhoradas. A partir dos anos 40, os funcionários administrativos locais passaram a ser responsáveis pela demonstração de novas técnicas de produção e novas culturas junto dos produtores rurais. Os Serviços Agrícolas distribuíram variedades de arroz e de amendoim altamente produtivas e procuraram introduzir a tração animal.

Nos anos 50 e 60, uma expansão significativa do número de portugueses residentes em Bissau e outras localidades foi responsável pela alta percentagem de importações de alimentos e vinho. Além disso, o regime colonial recrutou cerca de 5 mil cabo-verdianos e guineenses com instrução para os níveis inferiores da administração e das empresas comerciais. Estes também adotaram padrões portugueses de consumo que, especialmente após a independência, limitaram severamente os recursos nacionais. Os dirigentes do PAIGC que levaram a colónia à independência tiveram origem neste estrato privilegiado mas contaram com o apoio de uma grande parte da população rural. Na altura da independência prometeram apoio governamental ao desenvolvimento rural mas as políticas levadas a cabo tenderam a agravar a frágil situação dos produtores, provocada especialmente pela guerra de libertação nacional.

(continua)

Fotografias e comentários da doutoranda Lúcia Bayan, que amavelmente cedeu este precioso material ao nosso blogue:

A produção e comercialização do vinho de palma ocorrem na época seca. A recolha e produção são feitas pelos homens e a comercialização pelas mulheres.

Para a colheita do vinho de palma, os homens trepam ao cimo das palmeiras, com a ajuda de um cinto, feito essencialmente com o caule de uma folha da palmeira. Chegados ao topo, ferem o tronco da palmeira e recolhem o vinho (a seiva) para garrafas de plástico, através de um funil feito com uma folha, um instrumento que parece uma flor.

O vinho é recolhido uma vez por dia e despejado em bidões de 25 litros, que são guardados em pequenos recintos no mato. Aqui o homem gere o grau de fermentação, de acordo com as necessidades do mercado.

Depois as mulheres levam os bidões até aos mercados e pontos de venda. Nos primeiros, o vinho é trocado por outros produtos, vendido à unidade ou a granel a comerciantes senegaleses, sendo estes os principais compradores. Nos segundos, o vinho é vendido a granel aos senegaleses.

O comércio a granel é muito forte. Na época seca, uma carrinha senegalesa percorre a estrada, entre São Domingos e Varela Iale, uma vez por semana, parando em todos os mercados das tabancas, que ficam junto à estrada, e em pontos de venda, instalados junto à estrada para servir as tabancas mais afastadas, como, por exemplo, Catão. No pico da época, Março e Abril, a carrinha senegalesa faz esta viagem duas vezes por semana. Sendo assim uma importante fonte de rendimento para os Felupe.

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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22952: Notas de leitura (1415): "Guerra da Guiné", da autoria do Coronel Fernando Policarpo; Quidnovi, 2006 (Mário Beja Santos)