Angola > Luanda > Ilha de Luanda > Esplanada do famoso Restaurante Coconuts > 19 de Setembro de 2004 > Em cima da praia, praticamente privativa. Com seguranças, em todos os lados. O apartheid do dinheiro, como em qualquer outra parte do mundo não inclusivo. Um ou outro russo, com dentes de ouro... Dos cubanos, não se dá conta...Um almoço de peixe grelhado com vinho ficava então, no mínimo, entre 40 a 50 dólares (o equivalente ao salário mínimo na função pública, em Angola nessa época!)... Estive em Luanda, pela primeira vez, em setembro de 2003. Ainda no tempo das "vacas gordas": 1 dólar equivalia a c. 85 kwanzas. O cacete (tipo de pão) custava cerca de 20 kwanzas (julho de 2004). Hoje, em 19 de março de 2022, 1 dólar equivale a 455,99 kwanzas (5,4 vezes mais). E 1 euro vale 504,07 kwanzas. Nesse tempo ainda eram raras as caixas de multibanco. Comprávamos kwanzas na rua às quínguilas que puxavam um maço de notas sebentas do farto peito que servia de cofre. A grande maioria da população activa de Luanda (três quartos) estava então na economia informal ou paralela.
Foto (e legenda): © Luís Graça (2004). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
O autor, em Contuboel, c. junho/julho de 1969. Foto: Luís Graça |
A galeria dos meus heróis > O "mô camba" Jorge Levi, natural de Luanda, levado por engano pela "garota de Ipanema" a desertar do exército colonial
– O que é que se leva desta vida ?!... Boa pergunta, a tua, mas, se queres que te diga, não sei, não sei mesmo responder-te... Assim, de chofre, tenho dificuldade em responder-te… Enfim, para te dar uma resposta, digamos, que não seja politicamente correta...
– Prazeres terrenos, coisas boas da vida que não haja no céu… Não é a tal pergunta de um milhão de dólares!...
– Sim, mas... o que me apetecia logo responder-te é aquilo que me parece mais óbvio: não levas nada, "mô camba" [meu amigo], fica cá tudo!… Mas tudo mesmo!... Casas, chácaras, automóveis, iates, contas bancárias, amantes, mulheres, filhos, netos, amigos, camaradas, memórias, vaidades, tainadas...
E deu uma das suas saudáveis gargalhadas, que me vieram confirmar que aquele era mesmo o "mô camba" Jorge Levi
– Eh!, mano, lembrei-me dos iates, mas ficas a saber que não tenho (nem quero ter) nenhum.
– Talvez a pergunta seja cretina… E, depois, a verdade é que...ainda não saiste de cena, como tu gostas de lembrar!
– Porra, ainda não morri, nem sequer arrumei as botas!...É verdade, estou vivo e ainda sou capaz de vir contigo à Ericeira comer uma caldeirada... Já não vinha cá, ao "Puto", há muitos anos!... Sou mais velho do que tu, mas ainda não me acho com idade para encerrar para balanço, fazer o deve e o haver da puta da vida...
Infelizmente ele tivera de voltar à terra dos seus avós não pelas melhores razões, mas sim por motivos de saúde...
– Bem, ainda sou cidadão português... e europeu. Às vezes esqueço-me deste privilégio, que em Angola ou no Brasil vale ouro... Eu costumo dizer, tenho o melhor de dois mundos...Nasci em África, o berço da humanidade...
Procurei tranquilizar o meu amigo, o "caluanda", com quem convivera no Seminário Maior, durante dois anos, antes de irmos para a tropa e depois, para a guerra na Guiné. Voltara a encontrá-lo em Luanda, há uns largos anos atrás, em 2004. E, mais recentemente, em Lisboa, onde ele, de passagem, me procurou no sítio onde eu trabalhava.
Em 2015, ele viera expressamente de Luanda, onde também tem casa, na Maianga, para ouvir em Lisboa a opinião de um reputado urologista, que o tranquilizou, relativamente à gravidade do seu carcinoma da próstata, e o encaminhou para uma conhecida clínica em São Paulo. Embora reservado, o prognóstico não era assim tão mau quanto se temia no início.
Agora na Ericeira, com o grande oceano Atlântico à nossa frente, retomámos a nossa longa conversa na ilha de Luanda.
– O que é que se leva desta vida ?... Perguntas tu, e bem, e eu volto a responder-te: Nada.
– Sim, se eu ainda fosse cristão, remeteria isso para o juízo final. Aí, sim, todos temos de prestar contas, crentes ou não crentes. E eu já tenho o bilhete comprado para a última viagem... Só não fiz a mala... nem pus de lado os mantimentos para a viagem, como faziam os antigos egípcios.
Não tinha perdido o sentido de humor que eu sempre lhe conhecera, apimentado com o gosto da linguagem vernácula. E eu retorqui-lhe:
– Temos todos bilhete comprado ou reservado para o barco de Caronte... Mas acreditas nessa, do além ?
– Já não tenho idade para voltar a acreditar... Perdi a fé, na altura de ir para a tropa... Ou fizeram-ma perder. Fui batizado, em criança, por força do lóbi materno, com grande desgosto do meu avô e do meu pai, que eram militantemente ateus ou agnósticos, nunca soube qual era a diferença...
– Somos todos cristãos, de uma maneira ou de outra, até os ateus e os agnósticos. Todos temos uma matriz cristã... Não há como fugir ao nosso caldo de cultura judaico-cristã... Gosto de repetir que somos todos cristãos, socioantropologicamente falando, uns "cristãos velhos", outros "cristãos novos"... E tu deves ser "cristão nivo", pelo apelido de família... Vá lá, responde à pergunta... – disse-lhe eu, em tom de mais de galhofa do que de proviocação.
– Não me conheces o suficiente, tivemos muitos anos afastados. E eu mudei, como todo o mundo... E mudei muito, Hoje sou como a enguia, refugio-me em subterfúgios, silogismos, desculpas mal esfarrapadas... Se calhar sou demasiado cobarde para te responder com franqueza…
E aí contemporizei eu, mais uma vez:
− Também não quero ser o teu confessor. Se invertêssemos os papéis, eu também ficaria à rasca para te dar uma resposta brilhante, sincera e sobretudo convincente... Iria refugiar-me, como tu, nos lugares comuns... Mas hoje sou eu o entrevistador. Ou o santo inquisidor, se preferires...
E acrescentei, para lhe lisonjear o ego que eu sabia que era bem maior do que o meu:
− De qualquer modo, quero aqui deixar expresso o meu agradecimento pelo tempo de antena que me concedes... ainda por cima num mau momento da tua vida que, felizmente, há de passar... Sei que abriste uma exceção... no ano [, 2015,] em que fazes os setente anos e decides tirar uma sabática... Passas os teus negócios a um dos teus filhos "brasileiros", é isso ?!...
− Mais brasileiros do que angolanos ou portugueses, os meus filhos. Nenhum deles conhece Portugal, para desgosto meu... E de Angola, só Luanda e o Mussulo.... Nisso, fui um mau pai, os meus filhos pouco ou nada sabem das minhas raízes... Tive pouco tempo para eles....
E eu prossegui, explicando-lhe uma das razões de ser do nosso "almoço de trabalho"... A outra razão era de "saudade" e de "amizade".
− Acredita, estás aqui por uma boa causa... E alguém há de pagar o almoço... Já te expliquei, por email, a natureza do meu trabalho de investigação sobre histórias de vida de gente que andou no seminário e fez a guerra colonial...
– Pois seja, como queres. Mas não vejo onde e a quem o meu caso possa interessar. Sou um caso atípico, deixa-me prevenir-te. De resto, continuo a ser um gajo porreiro, mesmo acabado, ou à beira do fim de prazo de validade...
Ele fez que sim com a cabeça, e eu prossegui:
– É verdade... São demasiadas cumplicidades para uma conversa íntima sobre o sentido último da vida... Passei grande parte da adolescência à volta desta estúpida questão existencialista... Anos que, afinal, não vivi!... Mas tu é que foste o sortudo, tu é que tiveste uma vida aventurosa, cheia de emoções, em pelo menos três continentes, entre o Velho e o Novo Mundo...
Depois de uma breve pausa, para molhar os lábios com a nossa aguardente DOC Lourinhã, no final da refeição, o Jorge Levi disparou:
– É muita bondade tua. Dás-me uma dica. Vou começar por aí... Nunca tinha pensado nisso, se calhar vivi uma vida por empréstimo, esta vida que eu vivi talvez não fosse minha mas dos personagens que criaram para mim…
– Como assim ?!... É verdade, todos temos várias máscaras, desempenhamos vários papéis, podemos até ter vários heterónimos, como o pobre diabo do Fernando Pessoa que ouvia vozes e acabou por morrer a falar sozinho, entre duas bicas e um bagaço…
– Quero eu dizer: não escolhi, foram mais as vezes que eu segui a única picada que me apareceu pela frente. Noutras deixei-me levar pelas circunstâncias. A única exceção terá sido a entrada no seminário, na altura em que nos conhecemos...
– Exceção ?... – perguntei-lhe eu. – Sempre me pareceste muito autodeterminado, mais seguro do que eu dos "caminhos do Senhor"... De resto, no Seminário Maior, eras o nosso herói, secreto, invejado: uma "vocação tardia", algo de muito bem amadurecido, e ainda por cima vinhas de um meio social favorecido... Até se dizia, ao ouvido, que o "caluanda" (a tua alcunha) era afilhado do Cerejeira... Havia gajos que te invejavam por detrás e adulavam pela frente... Muito mais importante para nós, “sotainas negras”, tinhas mundo, tinhas viajado, tinhas conhecido gajas... Nenhum de nós tinha mundo, e seguramente a maior parte eram virgens...
– Fazes-me rir!...
– Mais tarde, muito mais tarde, voltei a encontrar-te, em Luanda, homem de negócios, até então de sucesso no plano empresarial, profissional, social e até amoroso... E ainda bem que não chegaste a padre, tinhas estragado muitas famílias... Sempre foste um sortudo com as gajas...
– Não me lixes! – intimou-me o Jorge. – São mais as vozes que as nozes. E depois não confundas sucesso com dinheiro. Ganhei muita grana com os negócios no Brasil e até em Angola, no tempo das vacas gordas... Mas também perdi, estupidamente, muito dinheiro... Calotes, casinos, festas, investimentos errados, desvalorização da moeda, subornos, luvas, prendas, "gasosa"... Sobretudo muitas luvas e muitas prendas. Sou realista, dirás tu que sou cínico: o dinheiro compra tudo, menos a felicidade...
– Por favor, não digas isso aos pobres... E os negócios do coração ?
– Da cama, queres tu dizer... Vou-te ser franco, tenho pouco a esconder nesta altura do campeonato: tive gajas porque tinha dinheiro...
– ... E lábia!... Muita lábia, disseram-me!
– Seja, dinheiro e lábia ! – concordou o Jorge.
– Não é preciso mais – anui eu. – E alguma "tusa", vamos lá...Mas até isso agora se compra na farmácia.
– "Cumbú", dinheiro, graveto, meu menino, sobretudo dinheiro para poder sustentá-las!... Não há "fodas" de borla, só por amor... O meu avô paterno, que eu ainda conheci bem, era um mulherengo, eu segui-lhe o rasto... Mas só gosto de brasileiras, dengosas, com cheirinho a cravo e canela...
– "Gabrielas"?!... Mas, já agora, quem era esse teu avô ?
E lá fomos mergulhar na história da família paterna... Esse avô, esse "pretoguês", era um alentejano de Elvas, “um português das Arábias”:
– Levou o meu pai, aos quinze anos, a Badajoz, aos touros e às "putas"... Não fiques chocado: eram outros tempos... Estamos a falar do início da década de 1930. E pôs ao meu pai o nome de Amato Lusitano... Ainda estou a tentar saber porquê... mas cheira-me que tenha a ver com a sua, nossa, costela de judeus sefarditas, e depois cristãos-novos à força...
Falou-me com afeto e admiração desse avô, republicano dos quatro costados, com quem ele ainda conviveu, em vida, em Angola, e que era "o seu ídolo de infância". Quando era "candengue", miúdo, viveu algumas temporadas com esse avô paterno em Nova Lisboa.
Esse avô era um homenzarrão, de barba pelo peito, e grande bigodaça, maçónico, anticlerical, professor primário. Deixara crescer a barba quando foi mobilizado para Angola, durante a I Grande Guerra. Participou nas "campanhas de pacificação do sul de Angola", onde foi ferido.
O Jorge sabia pouco desse período, sabia que o avô tinha estado integrado nas forças expedicionárias, sob o comando do general Pereira d’Eça (1852-1917), que combateram e derrotaram não só os alemães como o rei dos cuanhamas, o célebre Mandume (1894-1917) cuja bravura e carisma ele, de resto, passou a admirar. A sua paixão por Angola viria, ao que parece, desse tempo.
– O que te lembras mais desse teu avô ?
– Era uma rabo de saia, tinha olho azul como eu, impetuoso como eu, ainda mais garanhão do que eu, seguramente muito mais feliz e otimista do que eu... Melhor ser humano, seguramente, do que eu. Um homem com princípios e valores, que eu tentei seguir, mas que perdi ou atropelei nas trapalhadas da vida...
– ...Portanto, posso concluir que os amores são daquelas coisas que se levam desta vida...
– Amores e desamores – atalhou o Jorge. – Acho que não tive nenhum grande amor na minha vida... Nem as mães dos meus filhos... Gajas, sim, mas cansava-me delas depressa... porque eram possessivas, ciumentas, intriguistas, sacanas...
– Todavia, casaste ?!...
– Sim, como quase todo o mundo… Não há cão nem gato que não se case e descase... Em Angola, tal como no Brasil, é de bom tom ter uma "legítima" e uma amante. Ou duas, porque a uma delas já estás a pòr os patins... Mas eu suportava mal a rotina do casamento e das relações estáveis... Ao fim de quinze dias a comeres bife, com batatas fritas e ovo a cavalo, já suspiras por umas ostras ao natural com um bom champanhe francês ou por uma feijoada mineira, acompanhada de umas caipirinhas...
– Tudo na vida é rotina! – comentei eu. – E o casamento tem muitas armadilhas, ao retardador.
– Casamento ? O casamento mata a paixão e o amor, e gera o ciúme... O casamento é só para dares uma mãe e um pai ao teu filho...
– Ficou por Angola, o teu avô Levi ?...
– Não, foi ferido, no célebre "quadrado de Mongua" em agosto de 1915 e penosamente evacuado para Luanda, onde se restabeleceu. Milagrosamente...
– Fala-me do teu pai…
– Esse seguiu também as peugadas dos meus avós. Depois do curso do magistério primário, foi para Barcelona tirar belas artes. Era o artista da família... Em 1936, com 22 anos, alistou-se nas milícias da República. Era anarquista. Louco.
– Esteve na guerra civil espanhola ? – indaguei eu.
– Sim, e foi ferido. Ironicamente, não em combate contra os franquistas, mas sim numa "rusga" punitiva realizada pelos comunistas, imagina!... Matavam-se uns aos outros, aqueles filhos da mãe!
– Safou-se ?
– Por um triz! – continuou o meu interlocutor. – Escapou à justiça dos "rojos" e dos "blancos"... Antes da queda de Barcelona, e logo depois dos bombardeamentos aéreos da cidade, o meu pai, que tinha passaporte português, pirou-se para França, creio que por volta de abril ou maio de 1938. Daqui para a Bélgica e depois depois Holanda e finalmente Angola. Eu nasceria seis anos mais tarde, já no final da II Guerra Mundial, em 1945.
– Passou incólume pela teias da PIDE ?
– Não me perguntes como... A PIDE ou a sua antecessora (tinha outro nome, de que eu já não me recordo)...
– A prova é que PIDE não previu nem preveniu, como lhe competia, os trágicos acontecimentos de 1961...
– De resto, havia mais liberdade em Angola, que era uma colónia, do que na capital do Império... – acrescentou o meu amigo.– E éramos mais liberais nas ideias e nos costumes.
– O teu pai chega a Angola, quando ?... – pergunto eu.
– Talvez em finais de 1938 ou princípios de 1939, já não posso precisar. Em Amesterdão, apanhou um navio inglês, misto de carga e passageiros, que fazia a rota do Cabo. Os avós maternos do meu pai, que viviam em Lisboa, com alguns meios de fortuna própria (o sogro do meu avô era médico, também republicano), devem-lhe ter mandado dinheiro, "cumbú", depois que fugiu de Barcelona.
– Chega a Angola... e depois ?
– Desembarcou em Luanda, onde o navio inglês se reabastecia, e foi visitar os pais, em Nova Lisboa, decidindo depois percorrer Angola, de lés a lés, de Cabinda ao Cunene.
O Jorge conta-me que o pai, Amato Lusitano, para sobreviver e custear a expedição, fez de tudo um pouco: fotografia, pintura, ilustração, jornalismo. E até safaris. Era um bom aguarelista. Ganhou dinheiro a vender aguarelas e retratos a carvão aos fazendeiros ricos e até aos sobas, aos administradores, aos caçadores profissionais e aos missionários, que só conheciam a sua região.
Enfim, escreveu para jornais em Luanda e até em Lisboa, sob pseudónimo, notas etnográficas sobre os usos e costumes dos diversos povos de Angola. Havia então uma grande curiosidade sobre a África negra, que viria a ser reforçada, em 1940, com a Exposição do Mundo Português, "de que foi comissário um grande africanista, o capitão Henrique Galvão, se não estou em erro, e que o meu avô conheceu", acrescentou o Jorge.
Depois da eclosão da II Guerra Mundial, o pai do Jorge, o Amato Lusitano, fixou-se em Luanda, na Maianga. Como tinha o curso do magistério primário, e havia falta de professores, não lhe foi difícil arranjar emprego. Mas não gostava de ensinar.
– Era uma homem de ação, e um gajo da noite, o meu pai. Não tinha pachorra para os putos da escola nem para os inspetores escolares nem muito menos para os filhos. Por outro lado, amava os grandes espaços, as chanas e os desertos... Eu nasci, como te disse, antes do final da guerra…
– Um pai ausente ?!... – insinuei eu.
– Sim, em boa verdade, cresci sem pai, sem o afeto, o colinho, de um pai. A minha mãe sofreu muito com as escapadelas e as infidelidades dele... Ela, sim, era uma verdadeira matriarca, uma mulher de forte personalidade, uma verdadeira angolana... Fiz o 7º ano no antigo Liceu Salvador Correia. E depois vim para Lisboa, para casa dos meus tios-avós maternos, que tinham um palacete na avenida da República, e que eram muito católicos. Viviam bem. Um deles era cónego da Sé e muito influente junto do Cardeal Cerejeira. Em contacto com a malta do colégio Pio XII e da JUC, aproximei-me da Igreja. E, de repente, no meu 2º ano de agronomia, tive uma coisa parva, daquelas que não têm explicação, uma crise mística, senti que Deus me chamava para padre e me confiava a grande missão de salvar a humanidade...
– Porra, uma vocação tardia?!... – interrompi eu.
– Sim, se quiseres... Entrei com facilidade no Seminário Maior, com a bênção do tio-avô cónego e do Cardeal Cerejeira, que me tratava por "meu filho"... Ainda me lembro de ter ido lá ao palácio dele, o palácio do patriarcado, ali no Campo de Santana, se não erro, fui ao beija-mão com o meu tio-avô cónego...
– Mas foi sol de pouca dura, não ?!... Refiro-me à crise mística...
– Fiz dois anos de teologia, como sabes. Nas férias grandes, não resisti ao pecado da carne. Andei enrolado com uma gaja francesa que, ainda por cima, me pregou um valente "esquentamento".
– Acontecia aos melhores. E depois ?...
– Já não era o primeiro, para quem, como eu, nascera e crescera em África... Lá havia maior liberdade de costumes. Ou, se quiseres, maior promiscuidade sexual... Andava-se nos musseques com segurança, pelo menos até ao final de 1960...Enfim, perdi a vontade de salvar a humanidade, deixei de ouvir a voz de Deus a chamar-me, senti-me expulso do Paraíso como o Adão, ao ver o meu diretor espiritual a apontar-me o dedo e a por-me fora do seu gabinete... Fiquei especado no meio do corredor!... Ingénuo, havia lhe contado tudo, desculpando-me que a carne era fraca, que eu era pecador, para mais impenitente, incapaz de mostrar arrependimento....
– Estou a imaginar a cena!... Foi aí que saíste.
– Não me expulsaram, tinha boas cunhas. Eu é que tomei a iniciativa de sair, fiz as malas e nem disse adeus àquele ninho de lacraus, de mentes perversas e falsos moralistas... Foi aí, que começou a debandada, poucos do meu tempo chegaram a padre, se é que chegou algum, com os ventos do Vaticano II a soprarem já forte. Claro, passei por uma crise de identidade, andei na noite de Lisboa e, para curar-me, acabei por ir para a tropa e alistar-me como voluntário nos paraquedistas. Mas chumbei. E foi um duro golpe na minha autoestima...
– Abreviando a história, foste para a Guiné como alferes miliciano...
– De cavalaria, imagina!
– Afinal, cunhas sempre as houve... – atalhei eu.
– Acabei por ir, em rendição individual, não já para um esquadrão de cavalaria, que era em Bula ou Bafatá, não me lembro, e ficar no Quartel Geral, na Amura, a lidar com mapas e papéis... Um tédio, como deves imaginar, para um gajo que sonhava com os paraquedistas!... O que me valia era a 5ª Rep, o Café Bento, onde passava uma boa parte do dia... Ainda te lembras, do Bento, junto à Amura ? Era o maior "mentidero" da Guiné...
E continuou a sua narrativa:
– Fui de férias em julho de 1970, e aproveitei para dar um salto a Luanda, para matar saudades da minha cidade, da minha mãe, restante família e amigos, incluindo alguns dos antigos condiscípulos do liceu, que ainda restavam, poucos, por lá, e que eu não via há vários anos, desde que fora para Lisboa estudar... Uns estavam na tropa, outros na guerra, de um lado ou do outro... Um ou outro, mestiço, iria chegar mesmo a general nas FAPLA na segunda guerra da independência.
Bissau, comparada com Luanda, nessa época, era uma vilória. Luanda crescera com a guerra e sobretudo com o notável desenvolvimento económico dos anos 60, coincidindo com a guerra (que não chegava lá). Era das cidades mais prósperas e animadas de toda a África...
– Devias ter conhecido Luanda nessa altura!...– fez-me ele inveja.
Embora fosse filha de "coronel" (o pai era um grande fazendeiro no Nordeste), a Zinha lutava contra a ditadura militar, como de resto muitos dos jovens universitários, artistas e intelectuais brasileiros dessa época. Em trânsito por Luanda, a brasileira queria viajar para o sul de Angola e para a Namíbia, para fazer um trabalho de pesquisa sobre os ovambos, com uma tradição histórica de resistência à colonização europeia, alemã,inglesa e portuguesa... Mas as autoridades portuguesas e sul-africanas cortaram-lhe as asas e as veleidades…
– Mal a conheci, fiquei seduzido pelo seu "canto de sereia". Passei com ela um mês maravilhoso na ilha de Luanda e no Mussulo... Chamava-lhe a "garota de Ipanema", estava então na moda a canção do Tom Jobim e Vinícius de Morais...
Pôs a mão na testa, e exclamou:
– Porra, eu devia estar muito bêbado!... E estava. Sem me dar conta, acabava de me tornar desertor do exército colonial... Que leviandade!... Há amigos e familiares meus que nunca acreditaram nesta história do arco da velha, e continuam a pensar que eu desertei por razões políticas.
– A sério ?!... Não tiveste noção da gravidade dessa tua levi...andade ? Durban ou Rio de Janeiro, a distância era a mesma de Bissau.
– E como foi depois a vida no Brasil ?
– Um ano depois, ou nem tanto, a minha fogosa companheira passou à clandestinidade... Desapareceu, pura e simplesmente... Deixou-me um bilhetinho na porta da geladeira: "Amo-te muito, mas mais a liberdade do meu Brasil. Ti cuida. Ciao”.
– Tiveste que ir à vida... ou melhor, ir à procura doutra "garota de Ipanema"...
– Não gozes, tem pena de mim... Tive uma enorme dor de corno, porque o PCB, o Partido Comunista Brasileiro, roubara-me a namorada... Talvez tenha sido..."a mulher da minha vida", se bem que eu nunca casaria com ela... A pobre da Zinha será encontrada, mais tarde, penso que já em 1973, morta com um tiro na nuca, nua, violada, na lixeira de uma favela... Pelo que consegui apurar, mais tarde, fora executada por um esquadrão da morte.
– Porra, lamento muito!...
– Mudei de ares, e em boa verdade precisava de ganhar dinheiro... O patacão da guerra e a mesada da mamã (na realidade do avô do Uige, que cedo recuperou a fazenda depois dos trágicos acontecimentos do 15 de março de 1961 e montou um grupo de milícias de autodefesa) haviam-se acabado há muito... Mudei-me para São Paulo... Lá conheci gente, portugueses, que se opunham ao regime do Estado Novo e à guerra colonial, incluindo alguns marinheiros que haviam desertado em França... Um deles abriu-me as portas do mundo dos computadores..., coisa de que eu nunca ouvira falar.
Nessa altura estava já em grande expansão, a mecanografia, as "main frames" e a informática de gestão. O Jorge Levi encontrou emprego numa conhecida multinacional, de origem francesa. Depressa aprendeu o essencial do negócio ... Acabou por abrir uma empresa de importação de equipamentos informáticos... Mais tarde, negociaria também em armamento, e em equipamentos eletrónicos para fins militares (carros de combate, transmissões, sistemas de defesa anti-aérea, etc.). Tudo de origem francesa.
Não se abriu comigo sobre esse período mais "obscuro" da sua vida, em que, segundo me deu a entender, terá chegado a vender a alma ao diabo... Pudor ? Má consciência ? Sigilo ?
– Sabes como é, o segredo é a alma do negócio e em países como Angola os negócios de guerra são segredo de Estado... Posso só acrescentar que fiz algumas coisas que envergonhariam o meu avô paterno (para não falar do meu pai, que esse deixou cedo, em Barcelona, a bandeira preta da revolução, o gajo era anarquista, como te disse)... Negociei com ditaduras militares latino-americanas... mas também com os cubanos, os angolanos, os franceses e por aí fora...
Muitos anos depois, vou encontrá-lo, ao Jorge Levi, no centro de Luanda, por um bambúrrio, por um feliz acaso da sorte. Combinámos um encontro no Coconuts, no outro dia As suas feições não tinham mudado muito, apesar do tempo decorrido...
– Como o Mundo é Pequeno!...
Dessa vez, na praia à frente ao Coconuts, pus-me a mirá-lo de perfil, e reconhecê-lo por detalhes como o nariz aquilino e o olho azul, de judeu sefardita, com provável ascendência holandesa… Os seus antepassados, cristãos-novos, terão ido para Amesterdão no séc. XVII. Alguns, poucos, ainda regressariam a Portugal, duzentos e tal anos depois, na segunda metade do séc. XIX, com o triunfo do liberalismo...
Embora discreto nesta matéria, dava então a entender que tinha bons conhecimentos no MPLA e até na "entourage do Edu" (ou do "nosso mais velho", como se dizia respeitosamente nessa época, em Luanda)... Tinha também boas ligações aos franceses e até aos russos, depois da queda do muro de Berlim. Não tinha, de resto, grandes preconceitos, de natureza político-ideológica, cultural, ética ou religiosa, quando se tratava de "negócios... sujos", mas "chorudos" como os da indústria da guerra.
– Que o meu avô me perdoe!– e levantava as mãos aos céus, esquecendo-se que o avô era ateu ou agnóstico..
Nunca mais voltara a Portugal, a não ser a seguir ao 25 de Abril, para regularizar a sua situação militar e pedir um passaporte. Beneficiou da amnistia aos refractários e desertores. Tinha tripla nacionalidade, angolana, portuguesa e brasileira... Era tratado como VIP na terra onde, de resto, nascera...
No dia seguinte ao nosso encontro, ele ia deslocar-se ao Huambo para prestar uma discreta homenagem ao seu saudoso avô. Apesar da guerra, e da destruição da cidade, os seus ossos ainda lá estavam, no cemitério local. Mandara compôr e ajardinar a campa que, milagrosamente, escapara à sanha dos homens da UNITA. Tinha lá um antigo empregado que zelava pela boa memória do patrão Levi...
– Ele era do MPLA, o teu avô ?
– Se sim, nunca mo disse abertamente... Era um nacionalista, isso sim. Se quiseres, era o que se chamava um "compagnon de route", um companheiro de estrada... Mas como era branco, "tuga", e era funcionário público,com uma boa casa e uma boa horta, e tinha uma família numerosa para sustentar, incluindo criados (que ele considerava como parte integrante da família), nunca tomou posições públicas que o comprometessem aos olhos das autoridades portuguesas, e nomeadamente da PIDE, que certamente o vigiava, embora discretamente, em Nova Lisboa. Claro, apoiou Norton de Matos, Humberto Delgado...
E esclareceu:
– Nunca fui (nem já irei) à Torre do Tombo, tendo estado a viver fora de Portugal estes anos todos, mas é bem possível que o meu avô tivesse ficha na PIDE... Apesar de ser um herói da I Guerra Mundial, com uma cruz de guerra... Mas era amigo de muitos futuros nacionalistas angolanos... Ele ensinou a ler e a escrever a alguns dos melhores quadros e dirigentes, da região do planalto, não só do MPLA como da UNITA...
Em tom de desabafo, e com toda a sinceridade, o Jorge confidenciou-me:
– O meu querido avô não chegou (e ainda bem) a conhecer a independência da terra que ele tanto amava e que fez sua. Muito menos passou pela provação da devastadora guerra civil que se seguiu... Morreu cedo, ia fazer setenta anos, em 1965. Teria morrido de desgosto, se visse os angolanos a matarem-se uns aos outros, com russos, cubanos e sul-africanos pelo meio. E se soubesse que o seu neto querido também havia contribuído, indiretamente, para isso...
– E o teu pai ? Os teus pais ?
– Do meu pai perdi-lhe o rasto, disseram-me que se tinha radicado na África do Sul, logo a seguir ao 25 de Abril ou já depois da Independência, ninguém me soube dizer ao certo. Vivia com uma "cabrita"... As nossas relações sempre foram distantes, para não dizer difíceis. Para mim, morrera há muito... Na realidade, ele já morreu há uns bons anos atrás, na África do Sul, mais ou menos com a idade que eu tenho hoje... Nem sequer o vi, quando estive de férias da Guiné, em 1970. A minha mãe, essa, é retornada, não é assim que vocês dizem, aqui no "Puto" ?!... Ainda é viva, com 90 anos feitos, vive com uma das filhas... Uma grande senhora! Eu chamava-lhe a "rainha do Congo"... Portuguesa dos quatro costados, saudosa do império, salazarista, católica, apostólica, romana!... Mas uma santa, com lugar garantido no céu!
– E tu ?... Afinal, o que vais levar desta vida ? Ou contar ao São Pedro, à hora de lhe bateres à porta ? – insisti eu, com humor e ironia.
– Depois da nossa conversa, longa mas agradável, aqui à beira-mar, na Ericeira (de que já não me lembrava de nada), e depois da tua aguardente, que não fica atrás do "cognac" dos franceses, cheguei a esta conclusão definitivamente provisória ou provisoriamente definitiva....
– Não, não fostes nenhum canastrão! – arrematei eu. – A não ser porventura daquela vez em que foste levado pela "garota de Ipanema" a desertar do exército colonial... O maior problema de pessoas como tu, com uma vida – como eu hei de dizer ? –, tão cheia, tão preenchida, é como saber sair de cena, sair do palco e das luzes da ribalta, com dignidade, discrição, estilo, humanidade... e humildade.
– Aliás, é o nosso problema, meu e teu: como é que a gente aprende a despedir-se, com tempo e vagar, da Terra da Alegria, para citar o meu poeta preferido, o Ruy Belo, que também era das Católicas, acho até que foi da "Opus Dei" ?!...
Não voltei a vê-lo, ao Jorge Levi. E o meu último mail, enviado para a caixa de correio da sua conta no Brasil, foi devolvido há uns largos meses atrás, sinal de mau augúrio. Onde quem quer que ele agora esteja, espero que ainda me possa ler, e se ria das "baboseiras" que aqui escrevi a seu respeito, uns anos depois...
Mas juro que é a verdade e só a verdade, mesmo que nomes de pessoas e de lugares possam eventualmente estar trocados, para respeitar o direito, do "mô camba", meu amigo, condiscípulo e camarada Levi, ao esquecimento... É o último direito, que ele e eu temos, o direito ao esquecimento.
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Nota do editor:
Último poste da série > 29 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22497: A galeria dos meus heróis (43): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - III (e última) Parte (Luís Graça)