sábado, 13 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25741: Os nossos seres, saberes e lazeres (636): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (161): As cores da primavera e cumprimentos a Velásquez na Gulbenkian (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
Com os avisos da primavera, meti-me ao caminho para apreciar o multicolorido de um jardim construído entre fraguedos, nos casebres que tenho em Reguengo Grande. Foi tal a satisfação de ver esta sonata de cores, e depois de andar a catar as ervas, achei por bem que registar em imagens o viço que desponta da terra, mesmo quando encerrada em tanta aspereza. E tanto se trombeteia que há um Velásquez com retrato de Filipe IV para nós vermos na Gulbenkian que vim ver como me comportava no confronto. É uma tela notável, ainda bem que o rei Habsburgo aparece naquele aparato militar para esmagar a revolta da Catalunha, tivemos sorte em haver duas frentes, deu-nos para ter gana em querermos ser independentes mesmo à custa de termos vivido nessa guerra da Restauração o mais trágico período financeiro da nossa História. Quanto aos catalães, eles que decidam. Aproveitei a ocasião para ir saudar algumas das obras que tantas vezes me fazem visitar este museu único e partilho convosco a alegria de as rever.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (161):
As cores da primavera e cumprimentos a Velásquez na Gulbenkian


Mário Beja Santos

Quando adquiri a casinha no Reguengo Grande, concelho da Lourinhã, a promotora imobiliária teve a preocupação de salientar dois aspetos do local: que não me esquecesse do clima, manhãs com neblina, mesmo no verão, uma indiscutível amplitude térmica, a este aspeto respondi prontamente que passara férias anos a fio na Foz do Arelho, ia com os sete filhos da minha madrinha às 9 horas, a neblina costumava levantar por volta do meio-dia e a camioneta trazia-nos de volta pelas 13h, passeávamos de camisola até ao Gronho, ouvindo as fúrias do mar, a senhora promotora que não se preocupasse com esse aspeto, era bem conhecido; e que no fim do terraço havia um espaço inclinado para o vale, património da casa, o antigo proprietário, que praticava o alojamento local, tudo fizera para manter aquela superfície de fragas envolvida em mato. Aceitou-se o desafio, o resultado está à vista, no meio destas pedras que nos lembra a idade do Quaternário a primavera agita-se, multicolorida, até as laranjeiras dão fruta doce, o vale é fecundo, a minha vizinha dá-me abóboras, pêssegos e da última vez trouxe um carrego de favas. Estou num paraíso, não troco este meu lugarejo por um palácio.

Os casebres têm dois terraços, esta manhã sinto a grande satisfação de ter arrancado todas as ervas daninhas, fez-se limpeza geral, costume almoçar no outro terraço pondo um toldo, há mais sombra, fecho os olhos no pós-prandial e vem sempre um sono retemperador.
O colorido entre os pedregulhos falam por mil palavras, ninguém imaginará que aqui havia mato com quase 2 metros de altura.
Procurou-se dar-se um toque de romantismo, há um banco debaixo da figueira, quando começarem a rebentar os figos há para aqui um perfume embriagador, é uma das doçuras da vida campestre, mesmo que se tenha de afugentar as moscas ou ver passar cobras a alta velocidade.
O senhor Tozé é multiusos, faz obras na casa e dá alvitres para que haja mais segurança no jardim, fez estes degraus e outros mais, no cimo está uma das laranjeiras e uma janela aberta sobre o vale.
A Fundação Gulbenkian trombeteia em todos os órgãos de comunicação social que há uma tela de Velásquez no museu, um empréstimo que vem da coleção Frick, sediada em Nova Iorque. Trata-se de um retrato a meio corpo de Filipe IV, era a obra preferida do colecionador Henry Clay Frick, adquirida em 1911. O que há de mais revelante nesta obra-prima?
Se estivesse a contemplá-la com um espanhol ao lado, penso que não teria coragem de lhe dizer que o rei andava na sua incursão militar na Catalunha, 1644, os catalães tinham-se revoltado em 1640 e os exércitos espanhóis desdobraram-se com os acontecimentos portugueses e os da Catalunha. Foi uma guerra que nos levou praticamente à falência, mas vencemos, a seguir veio o acordo de paz, depois das últimas refregas em 1668, a partir daí Castela não tem qualquer ilusão que “de Espanha não vem bom vento nem bom casamento”. Então, o que há de mais relevante é que Velásquez pintou o retrato do rei Habsburgo num ateliê improvisado, era o quartel-general das tropas espanholas. O monarca aparece-nos representado como um chefe militar determinado e vitorioso, enverga sobreveste adornada com brocados, é um conjunto que no seu todo parece matéria viva, é impressionante a modelagem dos tecidos, parecem saltar da tela. E já que vim ao cheirinho desta obra-prima, como é meu costume vou visitar algumas das obras mais diletas.

Se é facto que detemos uma portentosa baixela Germain encomendada pelo nosso rei Magnífico, esta peça central de um centro de mesa constituído por três, é impressionante, e descobri que ao fundo está o retrato de Thomas Germain e sua mulher, na chamada secção de arte francesa, gostei da combinação, aqui a tendes.
No máximo sigilo, o Governo soviético, no início da década de 1930, vendeu um conjunto de peças para angariar fundos, fora ano de penúria de cereais, Gulbenkian tinha relações formais com as autoridades soviéticas, tudo por causa do petróleo de Baku. Lá se entenderam e entre outras preciosidades que seriam bem acolhidas em qualquer grande museu de fama mundial estão patentes no museu o quadro da mulher Rubens e esta espantosa escultura, a Diana, de Houdon, um assombro.
Não é a primeira vez que venho a este museu só para estar a contemplar este naufrágio que saiu do génio de Turner. Ficamos com o coração contrito a ver à esquerda o afundamento do navio, as ondas revoltosas e as cores medonhas do céu provocam um terrível contraste; e partilhamos da dor daqueles que procuram a salvação em pequenas embarcações ondulantes, e o grande pintor obriga-nos a fixar o olhar naquela jangada patética onde se procura a sobrevivência enquanto as ondas revelam pedaços da carga do navio enquanto ondas raivosas atiçam aquele mastro que parece vir a ser engolido pela onda que se ergue à direita. Não é por nada, mas temos uma obra-prima de Turner de um calibre tal que faz com que, às dezenas de visitantes, a aglomeração à sua volta, é um dado permanente.
Este inverno cheio de neve foi pintado por Jean-François Millet marca o movimento naturalista, tenha a intuição que anuncia Van Gogh, mas é coisa minha, o que mais me atrai é o elogio da natureza, não há aqui acabrunhamento nestes rigores de inverno, parece que a natureza adormeceu, e o que mais me compraz é a solução talentosa de criar um fio de horizonte e obter com as mesmas cores soturnas um céu ameaçador, com aquela solução de génio que é, ao fundo, uma mansão iluminada por uma luz que parece ter o condão de nos alertar de que a seguir ao inverno vem a primavera.
Quando se folheia uma obra dedicada ao grande escultor Rodin, as imagens mais esplendentes prendem-se com formas volumosas, ou grupos escultóricos que nos obrigam a andar à roda ou até mesmo aquela finura do pensador, que tem algo de matéria bruta. Ora a escultura As Bençãos situa-se no polo oposto, as formas delicadas parecem emergir da tal matéria bruta, têm tal graciosidade e finura que nos deixam sempre um olhar maravilhado.
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Nota do editor

Último post da série de 6 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25721: Os nossos seres, saberes e lazeres (635): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (160): Díspares modos de ver, mimoseio para um coração feliz – Reguengo Grande, Praia da Adraga, Ofélia Marques (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25740: Elementos para a história do Pel Caç Nat 51 - Parte VIII: Cufar, no tempo do Manuel Luís Lomba (1965), do Armindo Batata (1970) e do Luís Mourato Oliveira (1973)



Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Cufar > Pel Caç Nat 51 > s/d (c.1970) > A pista de Cufar

Fotos (e legenda): © Armindo Batata (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Foto nº 2> A antiga pista de Cufar, usada pela Força Aérea Portuguesa durante a guerra colonial (1961/74). Posto de sentinela do tempo da CART 2477 (Cufar, 1969/71). (**)

Fotos (e legenda): © Martin Evison  (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Cufar > 1973 > Fonte com bomba manual de volante com roda de balanço... Vinho empo do colono cabo-verdiano, grande produtor e comerciante de arroz, Álvaro Boaventura Camacho que terá cedido estas instalações (incluindo o aeródromo) à administração do território, com o início da guerra. Ainda se vêm em Portugal em muitas terras da província. Era uma tecnologia que se vulgarizou no séc- XIX:
Foto (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

1. Mensagem enviada,  ao Armindo Batata, pelo editor LG, com data de 18/06/2024, 17:09

Armindo: Aqui tens mais um poste sobre o teu Pel Caç Nat (ou só Pel Caç 51, como vem nos livros da CECA sobre a atividade operacional) e sobre Cufar com algumas das tuas fotos de Cufar "reeditadas" e legendadas. (***)

Toda esta zona (Catió / Cufar ) era o grande celeiro da Guiné, com as melhores e maiores bolanhas... Os balantas de Mansoa começaram a emigrar para aqui, nos anos 20/30, expulsando para as florestas-galeria do Cantanhez "os donos do chão", os nalus, hoje minoritários... Mas também vieram chineses de Macau,  deportados da metrópole, colonos de Cabo Verde... (O contributo dos chineses de Macau, no início do séc. XX, foi decisivo para  o desenolcimento e o sucesso da cultura do arroz, no sul da Guiné, segundo o António Estácio,1947-2022)

O dono de Cufar era o "ponteiro, cabo-verdiano, Álvaro Boaventura Camacho, que nos anos 30 conseguiu uma importante concessão de terras...Era um grande produtor e comerciante de arroz. A fábrica de descasque era dele... 

Tinha uma pista de aviação, ao que parece. Terá cedido ou alugado tudo à tropa no início da guerra... Sabes algo mais sobre ele ? 

Cufar, como sabes, era a "Bissalanca do Sul", com uma pista de aviação, alcatroada com 2,2 km de comprimento... O António Graça de Abreu escreveu bastante sobre Cufar, esteve lá de meados de 1973 até abril de 1974, no CAOP1 (que já não é do teu tempo)...

"Mantenhas". Vamos estando em contacto... e recuperando memórias destas nossas subunidades africanas... de que, infelizmente, "não reza a história"! (Não têm "fichas de unidade", nos livros da CECA - Comissão para o Estudo das Campanhas de África)

PS1- Tens alguma ideia do alferes que foste render ? Provavelmente nem o conheceste... O primeiro comandante, como te disse, era o João Perneco (Guileje, 1966/68), que será alentejano...Já publicámos há dias uma foto de grupo dele..

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2024/06/guine-6174-p25654-elementos-para.html

E do teu 1º cabo trms, que sabia latim e grego, o José Maria Martins da Costa, autor do "Silvo da Granada" ? Tens alguma notícia dele ? Deve viver no Porto...

PS2 - O teu Pel Caç Nat 51 continuava em Cufar (em 1 de julho de 1971 e 1 de julho de 1973).



2. Resposta do do Armindo Batata 

Data - 1/7/2024, 17:08

Caro Luís Graça


Puxando pela memória, surge de facto o tal Camacho. Passou por Cufar quando eu lá estive, i.e., em 1970, tendo viajado em avião civil. 

Na altura perguntei de quem se tratava e a resposta que obtive foi a de que era o dono de Cufar, das instalações que ocupávamos e defendíamos, a quem o exército pagava renda. Recordo-me que foi resposta mais do que suficiente para voltar as costas e continuar com o que estava a fazer.

O alferes que me rendeu, nos últimos dias de dezembro de 1970, foi o Manuel Rosa. Creio não estar enganado no nome, até porque conheci-o na metrópole onde estive de férias,  no final da minha comissão, tendo regressado quando me faltava cerca de um mês para completar os 24 meses. 

O pai dele tinha uma loja de pneus na Rua São Filipe Neri, em Lisboa,  e almocei com ele e a família numa casa que eles tinham em Dona Maria / Belas. Imagina o quanto constrangedor foi aquele almoço, em que todos queriam saber "coisas" sobre o local para onde ele ia.

Quanto ao 1º cabo de transmissões José Maria Martins da Costa, sabia que ele tinha sido seminarista mas pouco mais soube. 

O cabo de transmissões, assim como o maqueiro, eram incorporados na escala de serviços da companhia para as saídas, o que limitava bastante os contactos e relacionamento, que em Guileje eram mais frequentes precisamente por sairmos menos do que em Cufar. 

O que retenho sobre ele não tem interesse algum para esta recuperação de memórias que em boa hora iniciaram. Quanto ao livro (o "Silvo da Granada"), de que nunca tinha ouvido falar, vou tentar encontrá-lo.

Abraço, 
Armindo Batata

Capa do livro do nosso camarada de Barcelos, 
Manuel Luís Lomba,“A Batalha de Cufar Nalu” 
 (Terras de Faria, Lda. 4755-204 – Faria, 
Barcelos, 2012). Uma batalha 
de meses, que começou 
em 20/21 de dezembro de 1964
 (Op Ferro, com forças das
CCaç 617 e 728, CCav 703 e 4ª CCaç).  
 


3. Comentário do Manuel Luís Lomba ao poste P18074 (**)
[ O Manuel Luís Lomba foi fur mil cav, CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66, autor de "Guerra da Guiné: a batalha de Cufar Nalu", 2012; membro da Tabanca Grande desde 17 set 2012].
 
Olá, Luís  (Oliveira):
Antes da guerra, Cufar seria o principal centro da produção arrozeira do chamado celeiro da Guiné - Catió e Cacine. O edifício da vossa "intendência" era o que restava da moderna fábrica de descasque de arroz, que pertencera ao cabo-verdiano de origem madeirense Álvaro Boaventura Camacho

O abrigo subterrâneo parece dos escavados por nós (em 1965). A bomba de picota também é desse tempo. 

A pista de Cufar era a segunda maior da Guiné, inaugurada em 1958 pelo PR  General Craveiro Lopes, na ocasião da inauguração do aeroporto/aeródromo da base de Bissalanca, transitado de Brá (futuro aquartelamento da Engenharia, dos Comandos, dos Adidos e futuro Ministério das Obras Públicas da República da Guiné-Bissau).

A nossa subunidade (CCav 703) ocupou Cufar: a fábrica e a povoação estavam totalmente destruídas, por acções de guerra, entre Janeiro e Março de 1965, em operação de "intervenção às ordens do Comando-chefe"; em Dezembro de 64 participara na operação à mata de Cufar-Nalu e em Maio de 65 foi recorrente na operação que limpou essa mata, pelo desempenho decisivo da CCaç 763, do camarada Mário Fitas, que nos havia rendido na ocupação de Cufar. 

Nessa altura, a base de Cufar Nalu do PAIGC era comandada por Manuel Saturnino Costa, que virei a conhecer pessoalmente como ministro das Obras Públicas de consulado de 'Nino' Vieira e que chegará a seu Primeiro-ministro, ainda vivo, creio eu, - os meus votos da melhor saúde. [ Nascido em 1942, em Bolama, morreu em Bissau, em 2021, aos  78 anos: era irmão do Vitorino Costa].

Falei há dias com o ex-alferes Ramos Sequeira, julgo que foi o último comandante do pelotão de canhões s/r de Cufar 
[Pel Canh s/r 3079 ?] , recentemente regressado da visita a Cufar, que me disse: "Cufar encontra-se destruída e abandonada, os seu campos de arroz não foram recuperados, o capim vai até à pista de aviação que, do seu contributo à guerra da Guiné, passou a contribuir para a sua desgraça".

E como o blogue me permite, informo-te que sou autor de um livro centrado em Cufar e na mata de Cufar Nalu.

Ab. Manuel Luís Lomba
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Notas do editor:


Guiné 61/74 - P25739: Parabéns a você (2290): António Tavares, ex-Fur Mil SAM da CCS/BCAÇ 2912 (Galomaro, 1970/72)

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Nota do editor

Último post da série de 12 de Julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25736: Parabéns a você (2289): SMor Paraquedista António Dâmaso das CCP 121 e CCP 123 do BCP 12 (Guiné, 1969/70 e 1972/74)

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25738: Notas de leitura (1708): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1867 e 1868) (11) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
Nota-se que o Boletim Official incorpora mais relatos sobre os Estabelecimentos de Cacheu e Bissau, há noticiários mensais, fala-se em missionação, e no caso concreto há uma referência ao régulo de Bolor que se converteu ao catolicismo, as notícias de saúde ganharam realce, a doença do sono, a varíola, as úlceras e a sífilis, há vigilância e policiamento no rio Geba, abriu-se uma delegação da conservatória de Sotavento (Cabo Verde) e encontrou-se um relato vibrante, com muita terminologia naval do comandante do iate de S. Pedro enviado ao Capitão dos Portos da Província, é um documento surpreendente que nos dá a possibilidade de entender os tormentos do transporte marítimo naquele ponto da costa ocidental africana.

Um abraço do
Mário



Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos de 1867 e 1868) (11)


Mário Beja Santos

É por estes anos que se regista uma nova atitude do Governo Geral de Cabo Verde relativamente aos Estabelecimentos de Cacheu e Bissau, estes têm tido sempre um tratamento residual nas matérias versadas pelo Boletim, dizem respeito a nomeações, licenças para tratamento, movimento marítimo, questões associadas às pautas aduaneiras, enfim, formalidades, só muito raramente se noticiam beligerâncias, acordos de paz, ocupação do território, agricultura. A problemática da saúde passa a ser objeto de informação e começam mesmo a surgir relatórios mensais transmitidos da Costa da Guiné para a cidade da Praia, mas não haja ilusões, tudo com grande lentidão e omissão, como se tem vindo a referir, não há menção do que se passa no Casamansa, esporadicamente se aflora o assunto dos tumultos à volta de Bissau e Cacheu, sabe-se que há uma colónia cabo-verdiana no Rio Grande de Bolola, fruto das fomes que avassalaram o arquipélago, mas a discrição é a alma do negócio.

No Boletim n.º 40, de 5 de outubro de 1867, o Secretário do Conselho Inspetor da Instrução Primária envia uma circular a todos os administradores dos concelhos para se lhe remeter com a maior brevidade um mapa formulado segundo o modelo que se juntava sobre o movimento das escolas de instrução primária. Mais adiante, no Boletim n.º 44, de 2 de novembro, recolheu-se um extrato das informações sobre o estado da Guiné Portuguesa quanto aos meses de agosto e setembro:
“O rei e toda a tribo gentílica de Bolor, na margem do rio de Cacheu, haviam abraçado o catolicismo, sendo batizados pelo reverendo Vigário-Geral, o Cónego Joaquim Vicente Moniz, que em tal acto celebrou uma solene missa, a primeira naquelas paragens.”
Neste mesmo número do Boletim dá-se a notícia de que faleceu em S. Belchior, em 15 de agosto, o Segundo-Tenente do Batalhão de Artilharia, António Luís Menezes. Por muito que se procure documentação sobre estes destacamentos no rio Geba (Geba propriamente dito, Fá e Ganjarra e S. Belchior), até à data nada se encontrou.

Elemento muito curioso nos surge no Boletim e que tem a ver com as vicissitudes do transporte marítimo na Guiné, com o uso de terminologia naval, um texto surpreendente a todos os títulos. Trata-se de um relato endereçado em 26 de junho ao Capitão dos Portos da Província, vem assinado por Francisco Resende Costa, Comandante do iate S. Pedro:
“Em cumprimento das ordens que me foram dadas, no dia 26 de Março pretérito, pelas 10 horas, depois de ter recebido a bordo os governadores da Guiné e Cacheu, e mais funcionários públicos, mandei suspender o navio do meu comando com destino a Bissau. No dia 28, pelas 24 horas, mostrou-se o mar muito agitado e vento forte do Norte, a ponto de se arrebentarem as driças do traquete e vela grande, desta forma só navegámos com as velas da proa, aguentando para o Norte até que no dia 30, pelas 2 horas, o mar abonançou e pude então mandar enviar de novo as driças.

No dia 1 de abril, mandei sondar, e encontrou-se 11 braças, que pelo fundo reconheci estar ao norte do Cabo Roxo. Continuando assim a navegar, até encontrar 8 braças, mandei fundear, à espera do dia para navegar para o Sul.
Pelas 18 horas, mandei suspender e naveguei até 24 horas do dia 2 que obtive a minha latitude; e na mesma ocasião, pela espessa cerração que então cobria a costa, a muito custo pudemos avistar o Cabo Roxo. Assim navegámos até que pelas 4 horas e 30 minutos do dia seguinte avistámos as ilhetas, continuando a cerração.
Estando ao meio do canal e sendo a maré desfavorável, mandei andar a E.N.E. da agulha, a fim de encontrar menos fundo para ancorar.
Sendo bem impetuosa a força do corrente, e descuidando-se o homem do prumo, o navio encalhou em Bossis às 10 horas do referido dia, onde estivemos até 16 horas, e obtivemos enchente para safarmos, não tendo o navio sofrido avaria alguma.

No dia 4, pelas 24 horas, tendo maré de enchente, mandei suspender, bordejando com o vento O.S.O. até pôr-nos ao meio canal. Continuei a navegação até ao dia 5, no qual ancorámos em Bissau pelas 8 horas, sem mais ocorrência de consideração a mencionar.

No dia 12 de abril, recebendo as ordens do Governador da Guiné, suspendemos para Cacheu, com um prático acordo, levando o Governador da referida Praça de Cacheu, o condutor de obras públicas, e um oficial subalterno. Navegando com vento N.O., pelas 18 horas do dia 15, fundeámos em Cacheu, sem novidade.

No dia 24, recebendo as ordens do Governador de Cacheu, suspendemos pelas 14 horas para Bissau.

Navegando no dia 25, pelas 19 horas, descuidando-se o prático, o navio tocou-se nos baixos de Jufunco, de onde pudemos safar pelas 20 horas, tendo a maré de enchente, até 24 horas que ancorámos. Suspendemos no dia 26, bordejando com a maré de vazante até 6 horas do mesmo dia, do qual fundeámos por falta de maré.

No dia 27 pela 1 hora (estando ancorado) o mar bastante agitado e muito vento, perdemos o ferro de estibordo; e sendo substituído com o de bombordo e aumentando o tempo; pelas 5 horas e 30 minutos perdemos também este com 30 braças de amarra, ficando apenas com um ancorote. Vendo-nos obrigados a navegar por falta de ferro. Navegando no dia 28 pelas 8 horas, fundeámos em Bissau com o referido ancorote; requisitando em seguida ferros, sendo-me satisfeito um.
Necessitando rever-se o fundo do navio, e conforme as ordens do Governador da Guiné, encalhámos no dia 3 de maio, em frente da praça, encontrando-se somente arruinado o cadasta, e uma braça de quilha desforrada. Não se procedendo logo ao conserto, por ter o navio que seguir para o Rio Grande de Bolola, levar o destacamento; largando para aquele ponto no dia 6 às 14 horas, chegámos com 24 horas de viagem.

No dia 10, pelas 20 horas, tendo recebido ordens do Governador da Guiné e tomando algumas praças de pré, tabuado e plantas para esta cidade, largámos para Bissau onde chegámos com 48 horas. Encalhou-se novamente o navio no dia 24, para fazer obra no cadaste e na quilha, a qual se concluiu no dia 25, levando uma sobreposta no cadaste e duas folhas de cobre na quilha, ficando a obra bem arranjada e o forro de cobre em bom estado.

Recebendo as ordens no dia 6 do corrente e tendo a bordo passageiros, mandei suspender pelas 16 horas para esta cidade, trazendo onze dias de viagem.
Os mastros acham-se em mau estado, com especialidade o de traquete que está podre debaixo da romã, os quais precisam ser cortados ou substituídos por outros novos. Deus guarde a Vossa Senhoria.”


Estamos agora no ano de 1868. No Boletim n.º 5, de 1 de fevereiro, retiro do extrato das notícias da Guiné:
“Alcançam a 14 do corrente mês as notícias recebidas naquele distrito, e comunica o respectivo Governador que era regular o estado sanitário, bom o alimentício, sofrível o do comércio, e que em todo o distrito reinava sossego e tranquilidade pública; que o filho do régulo de Badora se lhe tinha apresentado, acompanhado de alguns grandes do território, solicitando em nome do mesmo régulo a paz (interrompida desde a guerra de 1861) o que daria em resultado a entrega dos presídios de Fá e Ganjarra, desde aquela época em poder dos Biafadas de Badora, e que ele Governador só espera a escuna Bissau para nela se dirigir a Geba e concluir aquela negociação; que as colheitas de arroz e mancarra continuavam, que não haviam sementeiras e plantações por não ser o tempo próprio para elas.”

Temos agora o Boletim n.º 9 de 29 de fevereiro, portaria n.º 35 A. Reza o seguinte: “Tendo o decreto de 2 de Outubro de 1867 estabelecido no Julgado de Bissau uma delegação da conservatória de Sotavento, havendo sido nomeado Pedro Augusto Macedo d’Azevedo para interinamente exercer o cargo de ajudante privativo, encarregado da mencionada delegação, havia agora que procurar o edifício para a delegação.” Era, portanto, determinado ao Governador da Guiné que procurasse um edifício para a delegação reunindo as necessárias condições. E no Boletim n.º 11 de 14 de março, texto do Presidente da Junta de Saúde para o Secretário do Governo Geral dá-se a informação de que grassa em Geba, no Rio Grande e em Bolama a varíola.
Vapor Cherim usado nas campanhas de Angola, século XIX
Rumo a Canhabaque, foto da atualidade
Paquete Loanda, pertencente à Mala Real Portugueza, 1891-1903
Mulher com Boubas, Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, vol. VII, 1952
Um caso de elefantíase, Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, vol. XXVII, 1972

(continua)
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Notas do editor:

Post anterior de 5 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25719: Notas de leitura (1706): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1865 e 1868) (10) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 8 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25726: Notas de leitura (1707): "Missões de Um Piloto de Guerra", por Rogério Lopes; edição de autor, 3.ª edição, 2019 - Memórias de um piloto nos primeiros anos da guerra da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25737: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte II: 15 minutos, de ferro e fogo, no K3, em meados de 1963


Foto nº  5


Foto nº 6


Foto nº 6A

Foto nº 6B


Foto nº 7

Guiné > s/l > s/d > O alf mil art José Álvaro Carvalho  (1º trimestre de 1963/meados de 1965) > Nestas fotos do seu álbum ainda não conseguimos identificá-lo: talvez possa ser o militar que se vê na foto nº 6B, em segundo plano, de pefil, de óculos.




Angola > Ponte do rio Cuanza (em contrução, desenhada pelo eng. Edgar Cardoso) > c. 1971 > O José Álvaro Almeida de Carvalho, diretor do departamento de trabalhos externos da empresa L. Dargent Lda. Aqui ainda no início da montagem do tabuleiro da ponte...Viveu 5 anos em Angola (até depois do 25 de Abril de 1974).

Fotos: © José Álvaro Carvalho (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O José Álvaro Carvalho, 85 anos, natural de Reguengo Grande, Lourinhã, entrou recentemente para o nosso blogue. Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 890 (*). 

Não dispondo da sua caderneta militar (diz que nunca a teve), o Zé Álvaro (como eu o trato, afetuosamente), não sabe exatamente em que data chegou ao CTIG, para render um alferes de uma companhia de intervenção, sediada em Bissau. Aponta para a primavera de 1963, escassos depois da guerra ter "oficialmente" começado, na "narrativa" do PAIGC,  com o ataque  a Tite, na região de Quínara, em 23 de janeiro de 1963.

Já estava há 26 meses na tropa. E deve ter cumprido mais uns 26 ou 27, no CTIG, entre o primeiro trimestre de 1963 e o segundo semestre de 1965. Passou por Bissau, Olossato e Catió, aqui já a comandanr um Pel Art / BAC, obus 8.8 (a duas bocas de fogo).


O alf mil Maurício Saraiva,
nascido em Sá da Bandeira,
quando ainda frequentava
 o curso de comandos,
em Luanda, em 1963.
Foto de Virgínio Briote
(2015)
No CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico do fado, "Carvalhinho" (*) . O Mário Dias, o Manuel Luís Lomba, o Virgínio Briote são (ou ainda são) do seu tempo e rconhecem-no.  O Armor Pires Mota (ex-alf mil, CCAV 488/BCAV 490, Bissau, Ilha do Como, Jumbebem, 1963/65) também era do seu tempo (ligeiramente mais novo: jul 63/ ago 65). Era também amigo do então alferes  'comando' Maurício Saraiva, que será depois visita da sua casa, em Lisboa (foto à direita, em q963, quando frequentava, em Angola, o curso de comandos).De acordo com as as suas memórias de guerra, ao oitavo mês de Guiné, o Carvalho (ou "Carvalhinho") ainda estava no Olossato. E no excerto que passamos a reproduzir. preparava-se para fazer uma golpe de mão ao K .  
Por sua conta e risco, tanto quanto dá para perceber. (K, leia-se K3 / Saliquinhedim: 
Saliquinhedim ao Km 3 da estrada Farim-Mansabá, será ocupado mais tarde, no último trimestre de 1965, pela  CCaç 1421).

Na versão, digital, que nos facultou, em formato pdf,  das suas memórias de guerra, os topónimos da Giné aparecem só com as iniciais (como é o caso  de O, 
de Olossato). Não há nomes de militares.  Nem datas.  Esclarecimentos  e informações  complementares têm sido obtidas através das  nossas conversas na Praia da Areia Branca (onde reside atualmente).

Pelas nossas contas (e apenas com base dos livros da CECA), essa companhia para a qual ele terá ido, inicialmente, em rendição individual,  pode ter sido a CCAÇ 273 (mo
bilizada pelo BII 17, Angra do Heroísmo): esteve no CTIG desde janeiro de 1962 e acabou a comissão em janeiro de 1964. (Nessa altura, a comissão na Guiné era de 24 meses.)  

Sabe-se que a CCAÇ 273 teve um pelotão destacado no Olossato, por períodos variáveis, em 1963. Era comandada pelo cap inf Jerónimo Roseiro Botelho Gaspar.

Mas voltemos às memórias do Olossato, destacamento que ele vai reforçar,  dois meses depois de estar em Bissau, a fazer segurança a Bissalanca (de 3 em 3 dias) e patrulhamentos nos arredores.  

De acordo com o poste anterior, ele  tinha saído em coluna auto,  para uma missão na região do Cacheu, de que foi desviado, para o Olossato, ao chegar a Mansoa, por ordem do QG (**): 

(...) "O pelotão para aí destacado, não conseguia não só defender o povoado, como até impedir que o inimigo, encurralando-o de metralhadoras apontadas a cada porta do edifício do quartel, um antigo celeiro de amendoim rodeado de arame farpado a distância conveniente, se passeasse impunemente na aldeia, entrando nos dois estabelecimentos comerciais existentes, abastecendo-se do que bem entendia, em troca de requisições supostamente válidas, após ganha a guerra e exercendo junto da população civil branca ou africana as mais variadas formas de propaganda e intimidação.

"Após confirmar por rádio para o QG as ordens que acabara de receber, desviou a marcha no sentido da povoação de 
O[lossato] , entrando na região onde a guerrilha tinha começado a atuar recentemente e era constituída por um polígono com cerca de 120 kms de comprimento na sua maior dimensão e oitenta na outra , cuja principal estrada, que o atravessava em diagonal, estava obstruída por árvores derrubadas assim como todos os pontões e pequenas pontes já destruídas que atravessavam as linhas de água, que eram muitas em todo o território por ser este a foz dum rio importante, que se dividia por grandes e pequenos canais que se ligavam e entrelaçavam entre si." (...)

Portanto, quando chegou ao Olossato, com o seu pelotão, a "guerra subversiva" tinha começado na região do Oio. Estava-se já na época das chuvas. (E na sua terra, Lourinhã, estava-se em plena época balnear.) É uma narrativa, quase telegráfica, incisiva, "pura e dura", que me faz lembrar as crónicas do "Tarrafo",  o livro de 1965, do Armor Pires Mota, que também andou por aqueles lados (sector de Farim), além de ter estado na Ilha do Como (Op Tridente).



Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) > Escala 1/50 mil) > Pormenor: localização de Saliquinhedim / K3, entre o Olossato e Farim. (Não confundir com o verdadeiro Olossato, que fica a sudoeste de Farim, e que está localizado na carta de Binta.)



Guiné > Carta da Província (1961) (Escal: 1/500 mil) > Posição relativa do Olossato, em pleno coração da região do Oio... Do Olossato a K3 / Saliquinhedim eram c. 20 km por estrada. (A o
cupação de Saliquinhedim ao Km 3 da estrada Farim-Mansabá foi feitta pela  CCaç 1421 no final do ano de 1965.)

Infografias:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)



Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) 

Parte II:   15 minutos, de ferro e fogo, no K3, em meados de 1963



Durante as sestas, depois do almoço , o sono era calmo e repousado. Mas agora era noite e não conseguia dormir.

− Eles aí estão,  meu Alferes!!!

Choviam tiros por todo o lado. As metralhadoras dos postos principais matraqueavam o mais que podiam à medida que aumentavam os pec-bum dos disparos contrários.

Pegou numa granada de mão e, curvado, correu para o posto mais próximo.

 
Deixem-nos vir!!!

As metralhadoras calaram-se. As palmeiras suavam humidade, indiferentes aos homens e aos ruídos da noite.

Ouviam-se rebentamentos ao longe.

  Estão a estoirar com os acessos!!!

Tinham medo que alguma ajuda fosse pedida, mas não corriam esse risco. À noite o teto de nuvens era tão baixo que o rádio só emitia ruídos.

Chamou o furriel mais próximo.

 
− Não quero mais tiros! Deixem-nos chegar à vedação e depois acendam as luzes exteriores e abram fogo de novo. Por cada tiro quero um homem ferido ou morto! Se se vão embora sem "levar na tromba",  amanhã estão cá de novo!

No dia seguinte:

− Encontrámos alguns rastos de sangue.

− Quantos?

− Quatro.

− Já não foi mau.

O sol a pique aquecia a humidade excessiva, para que as plantas vivessem prósperas, numa inundação de verdura que era preciso destruir diariamente, à volta do celeiro de amendoim, único edifício do aquartelamento.

Durante o dia, a carne dos homens ficava mole. Ainda bem que só havia ataques à noite.

Era a hora do rancho. Os quinze homens do pelotão desfalcado, os nove da secção que o reforçava e os quatro condutores juntaram-se à volta das panelas fumegantes na cozinha de campanha instalada ao fundo do edifício, para receberem a sua ração e irem em seguida para a mesa de refeições, num compartimento separado por divisórias de esteira com 2 metros de altura como todos os outros que formavam as instalações do pelotão.

O impedido aproximou-se:

−  Meu Alferes, o jantar está pronto.

Trazia-lhe a amostra: sopa de feijão, batatas com bacalhau, bolachas, café instantâneo e vinho.

Provou e disse:

 Está bom.

Sentado com os três furriéis à volta duma mesa de caixotes, aguardava em silêncio que o impedido lhe trouxesse a refeição, a pensar que o tempo nunca mais passava. 

Tinha tido 26 meses de serviço militar na metrópole e já estava em África havia oito meses.

O operador rádio trouxe-lhe uma mensagem cifrada do pelotão do alferes que comandava uma guarnição a Norte, a guarnição de B
 [Bigene],  que havia pouco tempo ali tinha estado a contar-lhe do almoço com o comandante da lancha patrulha do rio C[acheu]

Tinha-lhe dito que esse comandante era uma óptima pessoa, uma vez que,  mesmo sem o conhecer, tinha atracado a lancha no cais e convidara-o para um excelente almoço. 

Não lhe apeteceu dizer que aquele almoço se destinava a ele, conforme tinha sido previamente combinado mas não tivera oportunidade de informar o comandante da lancha do desvio que lhe fora imposto e da alteração das instruções do quartel-general.

Na referida mensagem indicava-se em pormenor todo o percurso dos guerrilheiros treinados num campo junto à fronteira do S
 [enegal]. que passavam na região Norte, atravessavam no rio junto à povoação de
K[3],  onde recebiam apoio logístico e seguiam depois por um trilho a corta-mato até à estrada que passava a alguns km do seu aquartelamento, entrando depois na zona que o inimigo pretendia dominar, lutando por ocupar e controlar um território que lhe parecia estrategicamente propício.

Depois do café disse aos furriéis :

− Vamos arrasar o 
K[3].

− Fica a 30 kms.

 Por isso não nos esperam.

Levantou-se da mesa e foi fumar um cigarro sentado do lado de fora do edifício. Não havia vento. O calor continuava a encharcar-lhe o corpo. Tinha anoitecido. As estrelas mal se descortinavam por entre a humidade do ar. Devia ser aí que habitavam as coisas certas e decentes. Dentro em pouco viria mais uma das repentinas trovoadas da época, a descarregar água por todo o lado, a inundar tudo.

Já deitado, pensava que com alguma sorte a operação correria bem. O 
K[3] era a passagem obrigatória dos abastecimentos e dos homens do inimigo, treinados junto à fronteira, que diariamente reforçavam os efectivos da região. Ali se devia esconder todo o apoio necessário à travessia do rio: canoas e barcos de borracha,  como dizia a mensagem cifrada. Nas palhotas da aldeia próxima, ouvia-se o choro de crianças assustadas.

***

Eram 4 horas da manhã. O sargento de ronda que o antecedia, foi acordá-lo:

− Meu alferes, está na hora.

Levantou-se cheio de sono, e acendeu um cigarro que apagou depois de saborear algumas fumaças com força. Deu a volta a todos os postos e parou por fim no último.

− Tudo bem?!

 
− Tudo bem, meu alferes.

Para lá do arame farpado pouco se via além do reflexo das poças de água onde centenas de rãs coaxavam no silêncio da noite. Sentou-se ao lado da sentinela a sacudir os mosquitos que lhe mordiam o corpo por cima do fato de combate.

Já no seu compartimento, estendeu-se na cama à espera do café.

Pensava nas praias da sua terra, naquela altura cheias de gente e sol e paz. Deu-lhe vontade de rir o facto da vida poder ser tão diferente.

O rádio, em escuta, fazia a zoada do costume. Ouviu o ruído dos homens a acordar e foi até à cozinha.

 Quer provar o café,  meu alferes?

 Não, obrigado.

Depois de comer chamou os 4 furriéis ao seu compartimento. Apontou um deles e disse:

 Você entra comigo no centro da aldeia.

Apontando outro disse:

 Você fica no aquartelamento.

Apontando os dois restantes disse:

 
− Vocês entram à direita e à esquerda. 100 balas a cada homem, quatro granadas de mão, uma ração de combate. Levantar às zero horas, partida à uma. Caras sujas com rolha queimada.

Apontou no mapa e disse:

 Seguimos por aqui a corta-mato durante cerca de 20 kms até onde se situa a estrada que conduz ao 
K[3].. Nesta altura estamos a 2 kms do objectivo. Seguimos a pé. Os carros estacionam escondidos. Os motoristas aguardam no máximo 8 horas pelo nosso regresso. Se não regressarmos ao fim desse tempo, voltam para o aquartelamento pela estrada. Se forem descobertos ou tiverem suspeitas disso regressam também de imediato. Se mandar retirar e dispersar, o local de reunião será sempre junto do estacionamento das viaturas mesmo depois destas terem partido. O ataque não pode demorar mais do que 15 minutos. Ao fim desse tempo retiramos à minha ordem. Se houver algum tiro prévio que nos denuncie, abandonamos o objetivo, dispersamos e retiramos para o ponto de reunião sem atacar. Vamos entrar de Este para Oeste,  destruindo tudo o que for útil ao apoio do inimigo.

Apontou um furriel e continuou :

 − O Furriel J, da 1ª secção que entra pela esquerda, vai passar no rio e com granadas de mão o seu pessoal, destrói todas as canoas assim como qualquer outro tipo de embarcação. A segunda secção dá-lhe apoio. Hoje à tarde quem não estiver de serviço deita-se e procura dormir. Podem retirar-se.   [...]

 Na madrugada seguinte, á saída da povoação  [do Olossato],  entraram no mato. As viaturas, ligadas entre si por correntes, roncavam no trilho enlameado estreito demais para elas. A vegetação rompia as capotas. Os homens seguiam em silêncio. O domínio do medo torcia-lhes as caras pintadas. De quando em quando era necessário que os guias indígenas procurassem melhores trilhos explorando o caminho mais à frente. e, em cada uma destas paragens, os soldados saltavam e escondiam-se no mato. Os motores ferviam. 

Ao fim de 3 horas, encontraram a estrada que levava a K[3]. Esconderam as viaturas e dentro em pouco os gritos da floresta tornaram-se normais. Caminhavam curvados, a um e outro lado da estrada em fila indiana, em silêncio. Parecia participarem num jogo de segredos fora do tempo, em que jogavam a vida.

A humidade diluía o suor, tornando-lhes o corpo peganhento, as roupas pesadas, repulsivas, a cara negra com riscas brancas. Pousavam os pés no chão com todo o cuidado, e investigavam com os olhos, reflexos e sombras. Sabiam bem o que os podia denunciar. 

Há mais de 1 ano que andavam metidos naquelas andanças. Agora davam mais importância  vida, porque a morte, na guerra é sempre uma derrota.

 [Ele, o alf Carvalho], seguia à frente com os guias. Em cada curva do caminho levava dois homens e avançava algumas dezenas de metros. Só depois o resto do pelotão avançava.

A terra exalava humidade e calor. Os mosquitos não os largavam há muito. Zumbido enlouquecedor,  ávido de sangue quente.

Perto da aldeia, abandonaram a estrada e redobraram as cautelas. O céu, com rasgos de luz menos escura, anunciava os sons da manhã.

Progrediam agora a dois e dois, de abrigo em abrigo. A alguns metros das primeiras cubatas, sentada no chão e encostada a um tronco velho, a primeira sentinela dormitava. Foi engolida em silêncio pelas facas de dois soldados.

Alguns cães ladraram. Farejavam sarilho. Rebentou a primeira granada. Daí em diante foram sombras vertiginosas, respirações de morte, ferro e fogo, gritos, ferro e fogo, confusão, instantes infernais, ferro e fogo, palavrões, guinchos, ferro e fogo, gemidos, correrias, aflições, ferro e fogo, e cubatas a arder reflectidas na água mole e suja do rio e tiros, tiros e explosões.

Veio depois o silêncio da retirada dispersa e rápida, corrida louca para o ponto de encontro junto das viaturas, com tiros ocasionais a persegui-los. Contou os homens já com os motores em marcha. Estavam todos. Regressaram.

***

Levantou-se. Tomou o pequeno almoço e foi passear pela povoação.

 
− Bum dia, noss' alfero.

As poucas casas dispostas dos dois lados da estrada faziam-lhe lembrar a aldeia onde tinha nascido.

O inimigo lutava o mais que podia para arranjar simpatizantes e para isso não molestava a população civil,  branca ou negra. Só em ultimo caso empregava a força.

Homens e mulheres faziam a sua vida de todos os dias como se nada houvesse, mas,  por de trás dos olhos de cada um, lá estava o terror, a duvida, a ansiedade, a insegurança da hora seguinte. Os nervos tensos à espera do mínimo sinal para fugir, recolher ao abrigo possível.

Depois da sesta da tarde, verificou a situação de todas as medidas defensivas instaladas. Esperava uma represália. Passou o resto da tarde a estudar a forma de melhorar as defesas existentes e implementar métodos de ataque em situação de fogo como sair do aquartelamento através de trincheiras etc.

A noite adivinhava-se pesada, escura, trovejante, desagradável. São estas noites que escondem medos e vergonhas, disfarces e desumanidades. Mas não são noites de guerra, porque a falta de claridade dificulta os movimentos.

Pensava em tudo isto depois de dar ordem de prevenção, e se encostar solitário junto ao abrigo duma sentinela.

Estava tudo a postos para mais um jogo de morte.

O pequeno Unimog blindado com chapas de bidão endireitadas, tinha a traseira encostada à porta principal do celeiro de amendoim que servia de aquartelamento. 

Junto a esta porta, o piso do edifício era sobrelevado em relação ao chão cerca de 1,2 metros, a fim de permitir o carregamento fácil dos camions de transporte que em tempo aí se abasteciam.

A corda amarrada ao “cavalo” de arame farpado que na vedação servia de porta, estava estendida no terreiro e entrava no interior do edifício de modo a que daqui, puxando-a,  se desobstruísse a entrada e o Unimog pudesse sair.

As metralhadoras das duas portas foram abastecidas com mais caixas de munições. Os dois morteiros, um atrás e outro à frente,  entrincheirados também.

Fora enviado para ali porque o destacamento anterior tinha sido várias vezes encurralado no aquartelamento com fogo cruzado inimigo que,  após enfiar uma metralhadora a cada porta, se passeava no povoado abastecendo-se nos estabelecimentos existentes, a troco de improvisadas requisições supostamente válidas, alardeando o seu poder e exibindo a sua melhor propaganda.

Tinha esperança de que com o seu pelotão isso nunca acontecesse.

Todas as máquinas de guerra do destacamento luziam limpas e oleadas, possivelmente satisfeitas por poderem vomitar fogo tão frequentemente. Tinham-nas feito para isso.

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, itálicos e negritos, parênteses retos: LG)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de  
26 de junho de  2024 > Guiné 61/74 - P25684: Tabanca Grande (560): José Álvaro Almeida de Carvalho, ex-alf mil art, Pel Art / BAC, obus 8.8 m/943 (1963/65) , adido 14 meses ao BCAÇ 619 (Catió, 1964/66): senta-se no lugar nº 890, à sombra do nosso poilão