quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25863: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte II (J. L. Mendes Gomes / Victor Condeço, 1943-2010)







Em 1935, o Manuel de Pinho Brandão já estava na Guiné, como se infere desta reclamação que ele apresentou ao Chefe da Repartição Central dos Serviços de Administração Civil, sediados em Bolama.  

O reclamante apresenta-se nestes termos: 

(i) "Manuel de Pinho Brandão, maior, solteiro, proprietário e comerciante, residente em Bolama";

(ii) "o expoente é dono e senhor de uma propriedade rústica   denominado "Belém", [na] área da Circunscrição Civil de Fulacunda, exercendo legítima e legalmente o comércio com os indígenas da propriedade, a quem concede regalias na agricultura e exploração dentro dela";

(iii) o reclamente  insurge-se contra a cobrança de imposto de extração de vinho de palma ("licença de fiuração") a indígenas  manjacos  que, com a sua autorização, praticavam esta atividade na sua propriedade para consumo exclusivamente próprio;

(iv) o administrador de Fulacunda  mandou-lhes cobrar, indevidamente, o imposto na importância de 760$00 (talvez mais de 500 euros, a preços de hoje):

(v) além disso, terá  usado e abusado da sua autoridade, mandando prender e conduzir ao posto de Empada aqueles indígenas;

(vi) pede. por fim, que sejam "restituídos aos indígenas interessados os escudos 760$00  para o bom nome das autoridades administrativas e para o bem geral da colónia".


A reclamação, em papel selado e devidamente estampilhada,  é datada de Bolama, 16 de julho de 1935.  A assinatura do reclamante é reconhecida pelo notário de Bolama.  O Manuel de Pinho Brandão tinha carimbo comnercial com indicação da caixa postal, Bolama, nº [ilegível, 26 ? ]. 


Fonte: Casa Comum | Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Bissu | Pasta: 10429.230 | 
 
Conjunto de documentação [10 folhas]  relativa a reclamação, apresentada pelo comerciante Manuel de Pinho Brandão, proprietário do terreno denominado "Belém", na área da Circunscrição Civil de Fulacunda, que se insurge contra a cobrança de imposto de extracção de vinho de palma a indígenas que, com a sua autorização, praticam esta actividade na sua propriedade para consumo exclusivamente próprio. | Data: Julho de 1935 - Setembro de 1935 | Fundo: C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas | Tipo Documental: Documento (...)

Citação:
(1935-1935), Sem Título, Fundação Mário Soares / C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=10429.230 (2024-8-20)


 
 1.  Sabemos que em 1935 o Manuel de Pinho Brandão já estava na Guiné, como se comprova pelo  documento, de 10 pp., acima reproduzido, e  que está no arquivo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), de Bissau, disponibilizado em formato digital, na  Net, pelo portal Casa Comum / Fundação Mário Soares.

Também sabemos que em 1946 tinha diversas propriedades, incluindo em Ganjola (Catió), Cachanga (Catió), Cangalaia,  Iassé e Cauane (Ilha do Como):


Fonte: In: Estácio, António J.E. (2002) – O Contributo Chinês para a Orizicultura Guineense, in: Actas, V. Semana Cultural da China, Centro de Estudos Orientais, ISCSP/UTL: 431‑66


2. Mas também consta o seu nome (ou de um  homónimo) num processo de "expulsão" do território, por "atividades subversivas"


Seria interessante slguém do nosso blogue poder consultar este documento do Arquivo Histórico Diplomático... 

Será que o Francisco seria o tal Chiquinho que, segundo o o Mário Dias, ser filho do velho Brandão da Ilha do Como, e se yornou "turra" e que já teria morrido em 1964 ? (*) 

 O Manuel de Pinho Brandão seria o pai, o velho Brandão, ou algum "júnior" ? Sabemos que o velho Brandão espalhou os seus genes pela Guiné...

Inventário dos arquivos do Ministério do Ultramar

Código de Referência: PT/AHD/MU/GM/GNP/RNP/0559/08865

Título: Expulsões de Manuel de Pinho Brandão e Francisco Pinho Brandão

Data(s): 1964

Nível de descrição: Unidade de Instalação

Dimensão e suporte: 1 U.I.; papel

Idioma: Português

Notas: Classificador do Arquivo do Gabinete dos Negócios Políticos: P17: Segurança Nacional: Sanções Penais aos colaboracionistas com os inimigos.

Entidade detentora: Arquivo Histórico Diplomático


3.  Vejamos, entretanto, o que  mais se diz, no nosso blogue, sobre este homem, em cuja história de vida  se mistura a lenda e a realidade...  Terá conhecido a "época de ouro" da Guiné, com o governador Sarment0 Rodrigues, no pós-guerra, em que era um dos grandes colonos do sul da Guiné, até à decadència (física, económica e social) com o início da "subversão"... Náo sabemos quando nem onde morreu.. O J. L. Mendes Gomes faz um retrato humaníssimo da sua companheira, de alcunha "Sexta-feira" (tal como o companheiro de infortúnio  do Robinson Crusoé).


(ii) Joaquim Luís Mendes Gomes [ex-alf mil at inf, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66]

(...) Era-nos fácil imaginar, com sadia cobiça, a deliciosa época da vida colonial, de antes da guerra, para os felizardos, a quem a sorte, em boa hora, escorraçara, com a pena de desterro, por feitos heterodoxos à moral reinante das gentes da metrópole.

Era o caso do Sr. Brandão, de Ganjola (...) , a quinze km de Catió, um injustiçado lavrador das terras de Arouca. Ali vivia há dezenas de anos, por assassínio, cometido numa das romarias da Senhora da Mó. No meio dos folguedos e romarias, por vezes, acertavam-se contas atrasadas, duma qualquer hora de desavença, mesmo no fim da missa domingueira.

O Sr. Brandão, agora, era um velhote, rodeado de filhos e netos que foi gerando, ao sabor das madrugadas de batuque e da liberdade de escolha, sem custos, entre as mais viçosas bajudas da tabanca…

Uma negra, velha, mas de rosto e olhar, ainda iluminados por olhos meigos, como a sua voz, doce, era a predileta, de sempre. Seu nome, Sexta-Feira. Soava bem aos ouvidos dos falares balantas, fulas ou mandingas. Era ela quem lhe tratava das tarefas caseiras. Dedicada. Sem nada cobrar, para além do breve e malicioso sorriso do velho Brandão, quando lhe despontava o desejo do seu corpo, negro, sem idade. Podia despontar a qualquer hora. Sexta-Feira ali estava, sempre dócil e submissa.

Uma loja farta de tudo o que chegava na carreira regular das barcaças de Bissau. Os lindos panos de cor garrida e os gordos cordões reluzentes, de fantasia, com que as negras tanto gostavam de se enfeitar.

O vinho tinto da metrópole era o regalo dos ociosos negros, de rostos engelhados e curtidos pelo álcool, pela tarde fora, a par da cachaça de coco.O saboroso bacalhau, curado nas míticas secas da Figueira da Foz e Aveiro, tão apreciado e toda a sorte de ferragens eram tudo o que aguçava o desejo daquelas gentes, para a troca do arroz, milho, mandioca, galinhas e demais produtos que, em cortejo lento e constante, pelas picadas entre as frondosas matas, traziam em açafates, à cabeça.O preço era feito, à medida da vontade gulosa do velho, matreiro e bem afortunado, Brandão.

Dizia-se que tinha metade das terras de Arouca… não fosse o diabo tecê-las. Ali, vivia, pacatamente, como se não houvesse guerra, numa típica mansão colonial, de um piso sobreelevado, com um varandim a toda a volta, com as dependências necessárias à farta panóplia de utensílios, alfaias e mercadoria. (...)



A senhora Sexta-Feira


por J. L. Mendes Gomes  (*)


Vivia em Ganjola,
arredores de Catió.
Era a doce companheira
do senhor Brandão. 

Um desterrado de Arouca
a cumprir pena na Guiné.

Fez-se comerciante,
vendia de tudo aos nativos,
por todo o sul desde Bedanda a Cufar.

Faziam bicha em corropio
as mulheres negras,
açafates à cabeça,
e filhinhos atrás das costas.

Traziam ovos,
traziam galinhas,
de cristas rubras,
e levavam arroz e sal
para suas tabancas.

Sua casa era um palacete,
à beira-rio,
onde abundavam os crocodilos,
mas havia peixe a dar com pau.

Ali fui parar um mês com meu pelotão.
Como num quartel.
Ali dei com o célebre Brandão,
sempre rodeado de muitas crianças,
que lhe ventilavam o ar,
na sua esteira suspensa.

E havia uma senhora negra,
cabelo grisalho
um rosto belo,
cheio de rugas,
e uns olhos brilhantes,
um sorriso divino e puro.

Era a Sexta-Feira.
Cozinhava tão bem!...
Que será feito dela?


Berlim, 19 de Junho de 2015, 8h47m
Joaquim Luís Mendes Gomes

[ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66]



Foto nº 1



Foto nº 1A


Foto nº 2

Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (Catió, 1967/69) > Destacamento de Ganjola > Meninos, filhos de habitantes locais, dois deles irmãos, os mestiços . Dizia-se que eram filhos (ou netos?) do velho Brandão (que não sabemos quando e onde morreu). 

O que foi feito destes meninos e desta menina, pretos e mestiços de Ganjola ? Estarão vivos ? Casaram ? Tiveram filhos ? Vivem na sua terra ? São felizes e livres ? Ficamos sempre fascinados pelas fotos de gente da nossa Guiné, de ontem e de hoje... Quantas histórias não ficarão por contar se não inquirirmos estas fotos ?

Fotos do nosso saudoso grão-tabanqueiro  Victor Condeço (1943-2010) [ex- fur mil mec armamento, CCS / BCAÇ 1913, Catió , 1967/69 ], com quem ainda falei, ao telefone, pouco tempo antes de morrer. Uma conversa dramática; ele sabia o que o esperava... Oxalá tenha morrido em paz...


Foto nº 3


Foto nº 3A



Foto nº 3B

Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) >    Foto 31  do Álbum fotográfico do Victor Condeço > Quartel >> "Cerimónia militar em fevereiro de 1968, por ocasião da imposição à CART 1689 da Flâmula de Honra (ouro) do CTIG, atribuída em julho de 1967. Edifício do comando. Presença de militares, civis da administração, correios e comerciantes locais. Vista parcial do quartel com as tropas em parada".




Foto nº 4

Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Foto 32A do álbum fotográfico do Victor Condeço > Quartel >   "Cerimónia militar em fevereiro de 1968, por ocasião da imposição à CART 1689 da Flâmula de Honra (ouro) do CTIG, atribuída em julho de 1967. Edifício do comando. Presença de militares, civis da administração, correios e comerciantes locais." > Pormenor; quatro funcionários dos correios (à esquerda), seguidos de quatro comerciantes, o libanês José Saad (e filha), o Mota, o Dantas (e filha) e o Barros.



Foto nº 5



Foto nº 5A

Guiné > Região de Tombali > Catió > Foto 26 do álbum fotográfico de Vitor Condeço (ex-Furriel Mil, CCS do BART 1913, Catió 1967/69) > Catió, Vila > 1968> A praça do mercado, vista de quem vinha da pista [tirada à porta da casa do sr. Barros Correia]. À direita o Mercado, ao fundo à esquerda a casa do Sr. Brandão e à direita debaixo da mangueira o Bar Catió e bem ao fundo o quartel.



 Fotos (e legendas) do nosso saudoso Victor Condeço (1943/2010) / Edição e legendagem complementar:  © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados.

(iv) Victor Condeço (1943-2010) [ex- fur mil mec armamento, CCS / BCAÇ 1913, Catió , 1967/69 ]

(...) Na verdade falta ali,  naquela foto [nº 4] , o Pinho Brandão, decerto terá sido convidado tal como outros comerciantes que também não aparecem na foto, caso dos Srs. Coelho, Adib e João,  da casa Gouveia.

Poderão estar na foto Catió_Quartel-31 junto do edifício da direita, junto de outra população mas não dá para reconhecer quem é quem. De memória também não sei se estiveram ou não. [Foto nº 4] 

Contudo pela lembrança que tenho do Sr. Manuel Pinho Brandão, é muito provável que não tenha estado presente. Era pessoa bastante reservada, nunca o vi no quartel nem sequer na rua.

As falas dele com militares ou civis resumiam-se ao Bom dia ou boa tarde, entre dentes, quando ao passarmos à sua casa o cumprimentávamos.

A maioria dos seus dias passava-os na sala de sua casa de esquina frente ao mercado [foto Catió_Vila-26], de portas abertas, na sua cadeira de repouso, fumando.

A lembrança que tenho da família que com ele vivia em Catió é muito vaga, mas lembro-me perfeitamente de duas bonitas, mestiças, suas filhas, das quais não me lembro o nome, jovens na casa dos 20 anos, que confeccionavam bolos de aniversário por encomenda. (...) (***)
_______________


Guiné 61/74 - P25862: O segredo de... (44): Aos 70 anos, comecei a ficar farto da guerra (Torcato Mendonça, 1944-2021)... Um "segredo póstumo" que chega ao blogue por mão da Ana Mendonça e do Virgínio Briote


Foto nº 2



Foto nº 3




Foto nº 8



Foto nº 5



Foto nº 1



Foto nº 4



Foto nº 10



Foto nº 9
 

Foto nº 11


Foto nº 7


Foto nº 6


Guiné > Zona Leste > Regiáo de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Fotos do álbum do Torcato Mendonça, coleção "Fotos Falantes II".



Fotos (e legendas):  © Torcato Mendonça (2007) Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





1. Mensagem. com data de 19 do corrente,  do Virgínio Briote: (i) nosso coeditor jubilado; (ii) ex-alf mil cav, CCAV 489 (Cuntima) e ex-9alf mil comando, cmdt do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67); (iii) frequentou a Academia Militar (1962/64); (iv) autor do blogue, desativado (a partir de 2009), Guiné, Ir e Voltar - Tantas Vidas (recuperado pelo Arquivo.pt em 25/9/2009).



No sábado ao jantar, a Maria Irene lembrou-me que era já na 2ª feira, 19, que iríamos festejar os 57 anos de união e que no dia seguinte, 20, iríamos ter em casa a festa de aniversário dos 24 anos da nossa neta Catarina e que viriam os parentes mais próximos. Estava-me a dizer que era urgente eu limpar o local onde eu tenho tudo o que é só meu, escritos, pastas, livros, tralhas.

Comecei ontem a limpeza e arrumação e foi durante esta operação que encontrei um escrito do Torcato Mendonça, nosso saudoso Camarada. Este breve escrito, que é talvez mais um desabafo, foi-me enviado pelo correio pela Ana Mendonça, sua Mulher, que ainda hoje, fala com muita saudade do seu Torcato. Não sei mas imagino que a Ana M. deve ter encontrado este rascunho nalguma limpeza que tenha estado a fazer.

Segue-se o texto, tal como está, sem qualquer correcção da minha parte. Vb





Foto nº 12
Olá Virgínio

Deves ter razão. Hoje, quando abri o telemóvel vi este post (*). De facto, quem vê caras nem sempre vê corações. 

Falei com o Luís Graça e, agora já noite, tentei escrever (escorrer?). Falhou o coração e nada escrevi. Arranquei agora umas palavras ao ler-te e ao título “Apocalipse”. Mesmo nesta amostragem de uma dúzia de fotos vemos muito.

É um rapaz que se deixa fotografar e fotografa aquela loucura ou, porque não, a loucura dele a aparecer. Melhor, se houvesse uma listagem cronológica. 

A 12 é do início da comissão, a 2 é o “Fula” que não sou, é o olhar já marcado e o fotografado sorri, feliz por ter uma criança ao colo, pois gosta delas (Foto nº 4). 

Há mais uma, com os vapores do álcool, ou o olhar louco (turvo?) na emboscada montada (Foto nº 7). 

A camaradagem com o sargento milícia (Foto nº 10),  um amigo que já se foi, certamente de morte natural ou fuzilado pelos libertadores da Pátria. Disseram os ventos que muitos dos que comigo andaram foram assim tratados.

Mansambo era mato e, aos poucos, foi sendo um aquartelamento. Quadrado com, mais ou menos, cem por cem metros, oito casernas, abrigos e mais uns edifícios sem qualificação de nome, mais tarde onde era a cozinha, a arrecadação disto ou daquilo, a enfermaria, ou os abrigos dos obuses 10.5 (Foto nº 9), atrás da tabanca com uma dúzia de
moradores. 

Ao redor estava o IN detestando o despudor daquela rapaziada (Foto nº 11). Tentaram demovê-los e nada conseguiram. Levaram forte aos fortes ataques. Até tivera ajuda de mercenários cubanos, os ataques eram mais certos, mais organizados, mas os rapazes resolviam.

Aquilo ficou fortemente gravado e não passou. Éramos, meu caro Virgínio, uns rapazes na força da nossa juventude (Fotos nºs 1, 3, 6, 8). Hoje já batemos os 70 e tentamos ir saltando um, dia de cada vez (Foto nº 5). 

Vou ao ginásio e sinto um olhar, aqui ou ali, a interrogar-se: o velhote ainda por aqui anda…e eu tento ir andando e espero que a saúde não seja tão madrasta. Comigo ou com os meus, sejam familiares, amigos ou não mas que sejam apenas seres vivos e pessoas de bem.

E, já num tom intimista, só para ele mesmo (**): começo a ficar farto da “guerra” aonde participei e que outros participaram. Parece-me qua andaram por lá e só hoje vão compreendendo o que era aquela Guerra.

(Transcrição: VB / Revisão e fixação de texto: VB / LG)

2. Comentário do Virgínio Briote ao poste P15299 (*)



Torcato:

Das inúmeras imagens que vi daqueles anos da guerra, em Angola, na Guiné, em Moçambique, as que mais me despertaram a atenção até hoje foram as que te pertencem.

E se me pedissem para dar um título a esse álbum, eu escolheria "Apocalipse". Porquê? Porque, tal como no filme 'Apocalipse Now".  de Coppola, vejo um mundo do "outro mundo". Loucura, inocência, violência, rostos falsamente alegres de jovens sorridentes, um mundo surreal.

São fotos, Torcato, que retratam uma "Mansambo" que muitos, mas mesmo muitos de nós, nunca conheceram.

Obrigado por as mostrares, caro Camarada!

Um abraço do V Briote


28 de outubro de 2015 às 21:48 




Torcato Mendonça, Fundão, 27 de janeiro de 2007.

Foto: LG (2007)

3.  Excerto de comentário anterior do Torcato Mendonça (Poste P14309):


(...) "Sim, mudei muito"! Digo-te porquê. Antes de ser militar, fui estudante e nalguns intervalos fiz 'diversos'. Caçado, sem esperar, pela tropa, aí talvez na especialidade comecei a sofrer uma metamorfose. Aos poucos, e já mais na Guiné, o rapaz alegre e 'bon vivant' foi-se ou, porque não, apagou-se mesmo. (...)

Quando vim, nada ou muito pouco restava do outro. Deram-me várias opções de escolha de vida.

Fui sentindo os anos passarem por mim, os meus filhos crescendo. A guerra estava guardada e, de quando em vez, saltitava para o presente e depois de amansada ia-se. Tratava-a com cuidado e sentia que nunca mais voltara de todo, em grande parte talvez. Nem isso. Fisicamente fui envelhecendo, como é natural. Apressado por “aquilo” e pelas cicatrizes físicas.

Optei, já o tinha feito em parte, e deixei a adaptação correr. O meu mentor, o meu companheiro- amigo, esse meu melhor amigo, esse homem que me deu o ser e muito saber, um dia morreu-me. Chorei nesse dia e compreendi que ainda sabia chorar. Mas tinha mudado muito.

Mais forte, a parte psicológica foi de certeza a de estabilização mais difícil. Nunca estabilizará. Por isso hoje, velho aos 70 anos, com a saúde (ou falta dela) a mostrar os rombos na carcaça nada tem a ver com a hipotética entrada normal na velhice. (...)



4.  Comentário do editor LG (a propósito do Poste P15299 (*) e deste "segredo póstumo" do nosso muito querido e saudoso Torcato Mendonça (****):

Em 2014 demos início a uma série chamada "selfies / autorretratos". Não teve muito sucesso. Publicámos até agora quatro. O Vasco Pires deu o pontapé de saída... 

No nosso tempo, na Guiné, não havia tempo nem pachorra para a gente de se ver ao espelho, quanto mais tirar uma "selfie"!... Um ou outro de nós tinha máquina fotográfica ou fotógrafo de serviço (que ganhava algum patacão tirando "chapas" ao pessoal), pelo que até há algumas belíssimas fotos e alguns bons álbuns fotográficos...

É material, de grande interesse documental, não só para alimentar e desenvolver as nossas memórias como para enriquecer o acervo dos que hão de fazer, com rigor, honestidade, isenção e objetividade, a história daquele período de Portugal (bem como da Guiné-Bissau)...

Enfim, a par das nossas memórias escritas, é um material que andamos, há anos, desde pelo menos 2004, a tentar salvar das garras do esquecimento, do abandono, da destruição, dos alfarrabistas, da incineradora e do caixote do lixo...

Um desses álbuns, que veio enriquecer a fototeca da Tabanca Grande foi o do Torcato Mendonça (1944-2021), ex-alf mil art, CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69), senador da nossa tertúlia, e um dos mais ativos e produtivos colaboradores do nosso blogue (com cerca de 265 referências). Foi também, de há muito, e enquanto vivo, um dos nossos conselheiros e colaboradores permanentes.

Foi autor de várias séries:
  • Pensar em voz alta;
  • Ao correr da bolha;
  • Estórias de Mansambo, I e II
  • Nós da memória

A partir de 2015, porém, e até por razões de saúde (da Ana e dele próprio), o Torcato Mendonça  tornou-se muito mais discreto, remetendo-se ao silêncio, ou intervindo uma vez por outra com um breve comentário, embora continuando nosso fiel leitor.  

Há muitos camaradas, mais novos, "periquitos" no blogue, que não puderam na devida altura acompanhar a sua vasta produção (postes, fotos, comentários), sempre de grande qualidade e autenticidade. São hoje uma referência incontornável...

(...) Sabemos que não é "confortável" para os ex-combatentes falar, para os seus "pares", num blogue como o nosso, com a audiência que o nosso tem, sobre as "questões do foro íntimo", "ver-se ao espelho", e devolver, sob a forma de escrita, os seus "selfies", os seus "autorretratos... Ou partilhar fotos mais íntimas, retratos em grande plano, que mandávamos às esposas, às namoradas, aos pais, à família, às madrinhas de guerra... De um modo geral, preferimos as fotos de grupo... Estamos a falar dos nossos "verdes anos", à distância de meio século..

De qualquer modo, e de acordo com o subtítulo deste poste (*), quem vê caras, (nem sempre) vê corações... Daí a razão de ser desta seleção de retratos do nosso querido amigo e camarada que vivia no Fundão (embora tivesse nascido no sul, sendo de origem algarvia e alentejana). São fotos da sua coleção "Fotos Falantes II"... A numeração, arbitrária, foi nossa. Bem como a sua edição... E intencionalmente não lhe acrescentámos legendas... 

Em sua homenagem (****), voltamos a publicar estas fotos, agora mais do que reeditadas..., acompanhando a partilha do seu "segredo póstumo", que a Ana Mendonça mandou, em forma  manuscrita,  ao Virgínio Briote, e que este achou por bem não mandar para a "cesta secção"... 

(Que saudades tenho de ti, Torcato!... Que saudades temos todos de ti, camarada!)


(***) Último poste da série > 22 de maio de 2024 > uiné 61/74 - P25549: O segredo de... (43): Jaime Silva, ex-alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72): na guerrra não valia tudo...


terça-feira, 20 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25861: Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal (Excertos) (Jaime Silva) - Parte VI: faltosos, refratários, desertores e... os do "sangue, suor e lágrimas"...




Emblema do BCAÇ 381 ("Diabos") (Angola, 1962/64), a que pertencia a CCAÇ 390 e o ex-1º cabo radiotelegrafista Francisco Manuel Ferreira de Sousa, que resgatou o corpo de um camarada, gravemente ferido em combate, nos Dembos, e  cujo depoimento se reproduz mais abaixo.

Emblema da excecional  coleção de brasóes, guiões e carchás de Carlos Coutinho / Portal UTW . Dos Veteranos da Guerra dfo Ultramar (com a devida vémia...)



 SILVA, Jaime Bonifácio da - Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal- In:  Artur Ferreira Coimbra... [et al.]; "O concelho de Fafe e a Guerra Colonial : 1961-1974 : contributos para a sua história". [Fafe] : Núcleo de Artes e Letras de Fafe, 2014, pp. 23-84.



1. Estamos a reproduzir, por cortesia do autor (e com algumas correções de pormenor), excertos do extenso estudo do nosso camarada e amigo Jaime Silva, sobre os 41 mortos do concelho de Fafe, na guerra do ultramar / guerra colonial. A última parte do capítulo é dedicada  é dedicada a testemunhpos e depoimentos recolhos pelo autor (pp. 67/72).





Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar – Uma visão pessoal [Excertos] 

Parte VI:  faltosos, refratários, desertores e... os do "sangue, suor e lágrimas"...  
(pp. 67/72)





Jaime Bonifácio Marques da Silva (n. 1946): (i)  foi alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72); (ii)  tem uma cruz de guerra por feitos em combate; (iii)  viveu em Angola até 1974; (iv)  licenciatura em Ciências do Desporto (UTL/ISEF) e pós-graduação em Envelhecimento, Atividade Física e Autonomia Funcional (UL/FMH); (v)  professor de educação física reformado, no ensino secundário e no ensino superior ; (vi) autarca em Fafe, em dois mandatos (1987/97), com o pelouro de desporto e cultura; (vii) vive atualmente entre a Lourinhã, donde é natural, e o Norte;  (viii) é membro da nossa Tabanca Grande desde 31/1/2014; (ix) tem 85 referências no nosso blogue.



8. Testemunhos de ex-combatentes de Fafe participantes na Guerra (pp. 67/72)


Consegui recolher alguns depoimentos de ex-combatentes de Fafe que, após serem mobilizados e terem decidido não dar o “salto” para França, acabaram por cumprir uma Comissão de Serviço num dos três teatros de operações em África. 

É meu objetivo tentar contextualizar e responder às questões que levantei no número cinco do ponto seis deste texto, ou seja, através do seu testemunho, tentar perceber qual o enquadramento e envolvimento pessoal de cada um na orgânica e dinâmica das ações levadas a cabo pelas Unidades Militares onde estiveram destacados.

  • Testemunho 1

Quantos ficaram “aptos para todo o serviço militar” ou “livres do Serviço Militar” na sequência das “Inspeções Sanitárias”, por doença crónica ou “grande cunha”?



Não sabemos. Conhecemos, no entanto, um caso paradigmático de uma “grande cunha”. Trata-se de Albino Marinho Mota, à data defesa central do Sporting Clube de Fafe, 1.90 cm de altura, e aprovado nas provas para ingresso na Academia Militar, da qual veio a desistir. 

De acordo com o depoimento que recolhi em 29 de outubro de 2013, através do irmão, António Amável Marinho Mota, ex-furriel em Angola, o seu irmão Albino, jovem cheio de saúde, ficou livre de todo o serviço militar por “falta de robustez”, graças à “grande cunha” do Padre Albino, pároco de Antime, junto do médico,  seu amigo e responsável pelas Inspeção Militar em Fafe naquele ano. 

O médico era de Famalicão, local onde, anteriormente, o Padre Albino tinha exercido o sacerdócio.

  • Testemunho 2

Quantos decidiram “dar o salto” para o estrangeiro para fugirem à Guerra, antes de irem às inspeções, após serem “apurados para todo o serviço militar” ou depois de saberem que tinham sido mobilizados para o Ultramar?



Segundo António Mota e Fernando Ribeiro testemunharam na mesma data, havia em Fafe um grupo de cidadãos que deve ter “safado da tropa“ muita gente. Neste grupo integravam-se, entre outros, ,ajor Miguel Ferreira (Major do Ribeiro), brigadeiro da Cera, tenente José Campos e António Saldanha.

Fernando Ribeiro contou, ainda, que um tio dele, chamado Armindo Ribeiro e caseiro do major do Ribeiro, foi “safo da tropa” por ele. 

Disse, ainda, que acompanhou um amigo a Chaves, que tinha medo de ir sozinho, para levar um outro amigo até à fronteira para fugir a “salto” à tropa (não se lembra já do nome). Tem cinco cunhados e todos eles foram “a salto” para França, incluindo um com 17 anos para fugir à tropa e um outro que já tinha feito a tropa na Guiné.

Confirmaram os dois que o António Augusto Saldanha fazia do seu Café Avenida o centro de acolhimento aos fugitivos à tropa, dando ajuda e transportando-os no seu Ford até à fronteira.

  • Testemunho 3

Quantos viveram o drama de verem um seu camarada morrer, transportaram às costas um camarada morto, ferido ou estropiado, ou deram sangue no local para o salvar na sequência de uma emboscada ou rebentamento de mina?


  • Depoimento 1.

Testemunho recolhido em outubro de 2013 na casa do ex-combatente Francisco Manuel Ferreira de Sousa, em Regadas, e na presença da esposa.

O Francisco Manuel Ferreira de Sousa é natural de Felgueiras, Margaride. Após terminar o serviço militar casou e veio viver para Regadas, terra da esposa. Esteve emigrado durante quatro anos em França e, ao regressar a Portugal, empregou-se na fábrica da Bouça, em Felgueiras, onde trabalhou 27 anos, sendo, hoje, reformado.

Cumpriu uma comissão de serviço em Angola, com o posto de 1.º cabo e a especialidade de telegrafista condutor. Pertenceu ao Batalhão n.º 381, constituído pelas Companhias n.º 388, 389 e 390. Fez parte da 1.ª Companhia, a n.º 390, inserido no pelotão de transmissões que esteve sediado, primeiro, no Norte, em Pamgo Aluguen, desde 9 de dezembro 1962 e, depois, a partir de outubro de 1963, no Leste, em Vila Teixeira de Sousa (zonas onde atuei com o meu pelotão em 1971). 

Finda a Comissão, o seu Batalhão embarcou no Lobito a 21 de fevereiro de 1965 e chegou a Lisboa a 2 de março de 1965.

A sua companhia sofreu duas emboscadas graves:

(i)  A primeira em 29 de janeiro de 1963, na picada entre Pamgo Aluguen e o Úcua, resultando a morte de seis camaradas seus e a captura pelo inimigo de mais dois militares portugueses. As cabeças destes, disse, foram descobertas mais tarde pelas nossas tropas espetadas num pau (foram encontradas por acaso numa operação) e a um dos mortos, também encontrado, os “turras” esquartejaram-no.

(ii) A segunda emboscada ocorreu a 19 de agosto de 1963 e é sobre esse acontecimento que o Francisco Sousa escreveu um texto em 1965, tendo entregue uma cópia, talvez no ano 2000, na Delegação de Fafe da APVG. 

Guardei cópia do texto e em novembro de 2013, nas vésperas da minha comunicação, procurei-o na sua casa em Regadas, tendo-me confirmado o seu conteúdo e relatado, ainda, outros momentos marcantes da sua comissão em Angola. Esteve na Biblioteca Municipal onde, durante a minha comunicação, relatei a história na sua presença.

Pelo realismo e riqueza da descrição da ação, transcrevo o texto escrito pelo radiotelegrafista Francisco de Sousa, com sua autorização, tendo procedido a pequenos cortes devido à sua extensão, mas unicamente nas partes em que, por vezes, repete a mesma ideia.


“Um certo dia em Angola... 
Entre Rainha Santa e St.º António, Dembos"

por Francisco Manuel  Ferreira de Sousa 
(ex-1º cabo radiotelegrafista, 
CCAÇ 390 / BCAÇ 381, Angola, 1962/64)


A operação realiza-se a 19 de dezembro de 1963, na zona dos Dembos, no norte de Angola, entre as fazendas de café da Rainha Santa e de St.º António.

Por entre a espessa mata de uma das regiões do Norte de Angola, prosseguia em missão de serviço um grupo de homens composto por trinta e cinco soldados, entre os quais dois alferes e três sargentos, além do enfermeiro e telegrafista. (…)

O calor perturbava-os, a sede atacava-os, os assobios estranhos de certa ave desconhecida preocupava-os, (…) mas estes bravos homens nunca souberam perder a calma. Confiavam em si próprios e na sua melhor companhia, a “arma”. (…) 

A caminhada prossegue agora mais espinhosa! Teremos de alcançar o cimo deste morro” (…). 

Atingiram o cimo do morro à distância de cinquenta metros. A sede fazia-os desesperar. Descido o morro do lado oposto, o guia “preto” que os acompanhava disse,  a um por um, “menino tropa ter cuidado, mandioca ser bandido", e apontava com o indicador uma lavra de mandioca e milho, com cafeeiros. Estes eram os primeiros vestígios que se nos deparavam. (…) 

Quando deram por ela estavam no fim da descida. Deram todo um ai de alívio ao depararem com água, dizendo baixinho: "graças a Deus"! 

Mas ninguém tocou na água sem ordem, era turva e pantanosa, mas ninguém a recusou. Uns mergulharam a boca na água, outros enchiam e bebiam pelos quicos, ou seja, “bonés”, a sede era irresistível. 

Após terem apagado a sede, alguém falou, dizendo que preferia morrer do que voltar a sofrer a sede. E as lágrimas corriam-lhe pelas faces. Já estavam perto, já se pisava terreno da lavra e a escassos metros o início do objetivo.


“Vinte minutos de agonia sangrenta“


Atravessaram a lavra e encontraram a picada, que dava diretamente ao objetivo. O palpitar de um dos presentes era certo, não estava enganado, já não era a primeira vez que ali passava e alguém já tinha ali perto ficado ferido com um tiro de “canhangulo”. 

Caminhavam serenamente, quando surgiu a sombra negra. Um tiro isolado quebrou o silêncio, automaticamente todos se deitaram no solo. Ouve-se um segundo tiro e o silêncio voltou, os homens da primeira secção deviam estar em perigo. Meu dito meu feito, um terceiro tiro voltou a quebrar o silêncio, seguido de gritos de agonia. Era verdade que alguém estava ferido! 

As armas vomitavam rajadas contínuas! Ouve-se uma voz chamando pelo enfermeiro. O guia preto (Cunha) foi atingido num quadril e conseguiu recuar para a retaguarda dizendo: “está menino tropa ferido, deita sangue muito mesmo”. 

Soaram vozes provocando o inimigo com palavras impróprias, ouve-se um estrondo da primeira granada que rebentou, e o silêncio voltou. Mais dois estrondos de mais duas granadas lançadas. Com a arma tirada das mãos do ferido, ele ficou indefeso.

A desorientação era grande, os homens da frente recuaram e o ferido ficou só na zona de fogo. É preciso ir buscá-lo, alguém falou. Olharam-se, mas ninguém se decide, até que um mais corajoso, chamado Sanção, empunhou a sua arma e correu por entre o capim para buscar o ferido e, passados escassos momentos, chegou até nós com ele às costas. 

Ninguém falava. Ouviam-se gemidos de dor. Desabotoámo-lo. O sangue empoçava nas roupas. Os pensos individuais não eram o suficiente e o enfermeiro nada podia fazer. Estavam certos que aquele mártir morreria.

Alguém olhou em redor e nada via, a não ser o infeliz e mais quatro colegas. Os outros teriam recuado para a mata que ficava a uma dezena de metros. A coragem daqueles quatro aumentava! 

O telegrafista estava presente e, ajudado por outro, enlaçou o ferido, transportando-o cerca de vinte e poucos metros, mas o infeliz não podia mais, a sombra da morte aproximava-se dizendo: “Não posso mais, mas peço-vos que não me deixem aqui! Sei que vou morrer, mas paciência!” ,

Os quatro presentes tentavam animá-lo, mas nada resultava. Ele voltava a dizer: “Não me estejam a iludir, porque sei que morro! Mas não me deixem aqui! Falta-me o ar!” E nunca mais falou.

Novamente o telegrafista, olhando os seus colegas, disse: “Tenham calma! Ele aqui não ficará.” A vítima, olhando-o, tentou sorrir ao sentir-se confiante. Alguém
 [o Francisco, relatou-me]  correu imediatamente e, atravessando a alta lavra, encontrou o resto do grupo deitado, completamente desorientado. 

Os nervos aumentaram-lhe e disse: “Que cobardia é esta?! É preciso ir buscar o ferido ou então passaremos todos por cobardes.” 

Alguém se levantou, foram dois e com as lágrimas nos olhos disseram: “Tens razão. Deixemo-nos de ser cobardes!” E deram a correr como doidos e foram buscá-lo.

Entretanto, o alferes disse: “Ligar o rádio!” Mas o telegrafista respondeu: “Aqui é impossível. Tratemos primeiro em sair desta zona e depois será possível.” E ele concordou. 

Já se encontrava no meio de todos a vítima, ainda com vida, mas pouco tinha para durar! Não falava mais, ouvia, duas injeções para tentar vedar o sangue, mais pensos, mas nada resultou! O ferimento perfurou os pulmões. Todos os esforços eram insuficientes para lhe salvar a vida! Estava no fim! E com o último sorriso ao de leve, deu um suspiro, morrendo, assim, nos braços dos seus colegas! 

Pragas foram rogadas ao inimigo: “Aqueles malditos”, que nem se chegaram a ver! Eram só desabafos. “Não podemos ficar aqui, temos de seguir, mas agora em sentido contrário!” 

O problema maior era transportar o falecido, mas um outro maior ainda: tinham perdido a carta topográfica e não sabiam qual a direção a tomar. 

Fez-se uma maca com os camuflados e dois paus, e assim se transportou o falecido. Uma ideia: subir ao morro e no alto fazer ligação com o rádio. “Chegamos por volta das quatro horas, ter pronto helicóptero ou ambulância K. Entrem em contacto de quinze em quinze minutos”. 

Perguntaram: «Informem se há Maikes ou Foxtrotes” [Mortos ou Feridos]  ». Estavam mais à vontade por estarem em contacto, mas na verdade a preocupação ainda não tinha acabado, pois não sabiam qual a direção a tomar. 

Tomaram-se várias opiniões, mas ninguém tinha a certeza do que dizia, até que, por fim, por entre uma pequena clareira, avistaram ao longe uns morros carecas. Eram os de Stª Clara. Era precisamente o que interessava. No sopé dos mesmos existia o aquartelamento e a fazenda de Stª Clara. 

Todos se sentiram mais tranquilos, e alguém apontou, dizendo: “Sempre em frente!” Obedecendo à ordem, colocaram-se todos em fila indiana e retomaram a marcha, e todos com receio de voltarem a ser atacados.

O caminho tornava-se difícil. O calor aumentava, e o sangue coalhado nas roupas do falecido começou a cheirar. Uns viraram a cara, para não verem a vítima, outros enchiam-se de coragem, e era o que valia àqueles que a não tinham.

E assim após dez horas de caminhada, debaixo de sol escaldante, onde a sede era grande e o sofrimento incomparável, chegaram ao fim de mais um dos muitos dias de sofrimento. Paz à alma dos que morreram inocentes! Felizes aqueles que se libertaram do perigo! 

Tudo isto foi real, e para mim será inesquecível.

(Continua)

Próximo depoimento: Osvaldo de Fafe atira-se ao rio Tombar, na Guiné, para salvar um camarada da Lourinhã

(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos, parênteses retos: LG)

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