quinta-feira, 4 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5932: (Ex)citações (60): Este blogue é um fórum mas também uma câmara de gritos (de saudade, de alegria, de tristeza, de horror, de perdão, de expiação, de amor-próprio, de vaidade, de humildade, de dádiva, de amizade, de solidariedade, de revolta, às vezes de vazio) (Manuel Joaquim, CCAÇ 1419, Bissorã e Mansabá, 1965/67)




Onde está o nosso camarada Manuel Joaquim, ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67  (*) ? Acontece que ainda não temos uma foto dele...

Ei- lo aqui entre o grupo fundador da  Ajuda Amiga... Transcreve-se a legenda:

 "Realizou-se no dia 19/4/2008, no escritório do Carlos Rodrigues em Lisboa, a primeira reunião para criação de um movimento de ajuda à Guiné, onde estiveram camaradas de armas de várias companhias que passaram pelo sector de Bissorã e de Farim.

"Na foto de pé da esquerda para a direita: Manuel 'Pais e Sousa'- CCav 1650, Rogério Marques 'Freire' - CArt 1525, Eurico Caeiro 'Lavado' - CCaç 1419, Júlio da Silva 'Esteves' - CCaç 816 , 'Carlos' Manuel Rodrigues'  Bernardes - CCav 1650, António Joaquim 'Lageira' - CCaç 1419, 'Adrião' Lourenço Mateus - CArt 1525, António Jesus Picado 'Magalhães' - CArt 1525.
"Em baixo da esquerda para a direita: Manuel Joaquim - CCaç 1419, Carlos Silva - CCaç 2548 , José Riço - CCav 1650, e Carlos Fortunato - CCaç 13)". (...)



Lisboa > 20/8/2008 >  Tomada de posse [ dos órgãos sociais da Ajuda Amiga - Associação de Solidariedade e de Apoio ao Desenvolvimento, que é presidida pelo nosso camarada Carlos Fortunato ]. Legenda: de pé, Antero Valongo (a assinar), Carlos Fortunato e Carlos Rodrigues; sentados: António Magalhães, Carlos Silva, Manuel Joaquim e António Bernardes.

Fotos: © Ajuda Amiga (2010). Direitos reservados


 1. Comentário, de hoje,  do Manuel Joaquim, ao poste P5924 (**)

 Oh pessoal, calma no barco!Tenho este livro (**) desde 1980. Li-o e na altura, confesso, achei-o mais como um exercício panfletário contra a guerra do que uma história assente em factos passados na Guiné. Aquela maluqueira passava um bocado ao lado da minha guerra onde tive muito medo, senti a sorte proteger-me, fui louvado por actos em combate, chorei e ri muitas vezes, sofri muito mas também me diverti muito!

E eu era contra aquela guerra. Digo-o agora como o dizia na Guiné aos meus camaradas (e em voz alta, posso prová-lo). Hoje, perante o que fui sabendo, olhando para o assustador número de casos clínicos graves atribuídos ao stress de guerra e, principalmente, lendo esta imensidão de páginas deste blogue onde as sequelas de foro psicológico e psiquiátrico estão tão nítidas e tão vivas!!!

Este blogue é um fórum mas também uma câmara de gritos (de saudade, de alegria, de tristeza, de horror, de perdão, de expiação, de amor-próprio, de vaidade, de humildade, de dádiva, de amizade, de solidariedade, de revolta, às vezes de vazio ).

Voltando ao princípio : A leitura, hoje, do livro faz-me compreender uma parte importante da paisagem dos veteranos de guerra, a que me orgulho de pertencer.Concordo que o livro está datado (mas só no plano ideológico já que,quanto à base do texto,está lá bem escarrapachada muita da ambiência que me envolveu). Recomendo a sua leitura,mesmo que não concordem nada com a perspectiva ideológica do livro .E os erros histórico-geográficos que se possam encontrar não têm importância nenhuma.

Um abraço a todos (da ponta esquerda à ponta direita)
Manuel Joaquim 

(CCaç 1419)

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Notas de L.G.:

3 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4774: Tabanca Grande (167): Manuel Joaquim, ex-Fur Mil Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissorã e Mansabá (1965/67)


(...) Quero inscrever-me na Tabanca, mas ainda não sei bem utilizar esta coisa (mandar fotos p.ex.); estou mesmo no início.

Um info-excluído, ou quase, que está a tentar sair desta situação e dando os primeiros passos na net, encontra um blogue (Luis Graça & Camaradas da Guiné) e... que descoberta!

Já lá vão umas boas horas de emoção! Mas nunca é tarde, nem para aprender a manipular o computador nem para começar a participar nesta rede de emoções/recordações. (...)

(...) Fui professor do ensino básico (Escola Gago Coutinho/Amadora) e director da Escola Profissional de Recuperação do Património/Sintra . Estou aposentado e perto dos 68 anos (1/9). Sou sócio da 'Ajuda Amiga-Associação de Solidariedade e de Apoio ao Desenvolvimento', muito ligada à Guiné. (...)

(**) Vd. poste  de 3 de março de 2010 > Guiné 63/74 - P5924: Notas de leitura (72): Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (Beja Santos)




Guiné 63/74 - P5931: Blogpoesia (67): Pôr-do-sol em Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem de Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 2 de março de 2010:

Meus caros camarigos
Estava aqui deixando voar o pensamento e tentando escrever algo para o José Belo colocar na Tabanca da Lapónia e fui ver fotografias.

Uma coisa que sempre me tocava na Guiné era o pôr-do-sol, sobretudo no Mato Cão.

A fotografia já não consegue mostrar a beleza desse pôr-do-sol, mas a memória leva mais tempo a apagar.

E assim num repente como sempre, escrevi isto que aqui vos deixo, para se quiserem publicarem.

Enviarei obviamente também ao José Belo, que no meio do frio da Suécia, pode ser que sinta um pouco do calor da Guiné.

Abraço camarigo para todos do
Joaquim Mexia Alves



Pôr-do-sol em Mato Cão


Lá longe,
na direcção do Atlântico,
na direcção da foz do Geba,
põe-se o Sol da Guiné.
A terra já vermelha de si própria,
torna-se agora cor de sangue vivo
e pinta toda a paisagem.
O momento é mágico!
Há uma quietude,
uma paz, uma serenidade,
neste momento.
Parece que a natureza ajoelha
e presta vassalagem
ao astro rei.
Neste momento cessa a guerra,
não há explosões,
nem tiros,
nem gritos,
e as bênçãos do calor do sol
afastam as maldições.
Lá no fundo da descida,
do planalto do Mato Cão,
ouve-se o Geba murmurar,
pintado da cor do Céu,
correndo lentamente,
atirando-se para o mar,
abrindo já os seus braços
à espera do macaréu.
A noite chega enfim,
envolta num calor espesso,
tingida de um escuro breu.
A natureza deita-se,
num lento e doce torpor.
Tudo se aquieta,
tudo se acalma,
excepto o coração,
que quer ver mais longe,
mais para dentro da mata,
para saber se descansa,
ou tem de ficar alerta.
Calam-se as vozes em surdina,
apagam-se as poucas fogueiras,
é hora do corpo repousar,
envolvido pela noite,
enquanto a memória avança,
num frenesim sem parança,

lembrando o que está longe,
mais longe que a vista alcança.
O sono vence a lembrança,
fecham-se os olhos cansados.
Amanhã é outro dia,
em que o Sol regressará,
e com ele a doce esperança,
de faltar menos um dia,
para sair da Guiné,
deixando tudo p’ra trás
menos o pôr-do-sol,
que torna a terra vernelha,
pintada da cor do sangue,
que a memória sempre traz.

Monte Real, 2 de Março de 2010
Joaquim Mexia Alves
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 3 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5922: Convívios (109): Tabanca do Centro, Monte Real, 26/2/2010: uma jornada de camaradagem e de solidariedade (Luís Graça / Joaquim Mexia Alves)

Vd. último poste da série de 2 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5918: Blogpoesia (66): Querida Pátria (Albino Silva)

Guiné 63/74 - P5930: Notas de leitura (73): Gadamael, de Carmo Vicente (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52,Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Confesso que fiquei muito impressionado com a leitura dos relatos do 1.º Sargento Carmo Vicente, um pára-quedista zangado com meio mundo, é uma escrita sem perdão e sem reconciliação.
São relatos do início dos anos 80, porventura o tempo já sarou algumas cicatrizes mais profundas.

Um abraço do
Mário


Com zanga, desalento e contas a ajustar

Beja Santos

“Gadamael” (Edições Ró, 1982) é uma colectânea de relatos de Carmo Vicente, 1º sargento pára-quedista que cumpriu três comissões de serviço na Guiné e Moçambique. Mobilizado pela primeira vez como soldado, acabou por chegar em 1973 à situação de 1º sargento, no comando de um pelotão, precisamente em Gadamael.

Estes relatos não pretendem disfarçar a muita zanga que Carmo Vicente guardou dos homens e da guerra. Não esconde nomes de militares que sinceramente passou a detestar; não esconde a admiração pelos guerrilheiros destemidos, mostra como um quase adolescente ganha gosto pelo sangue e sente-se tentado à bestialidade. São relatos chocantes, incómodos, implacáveis. Pergunta-se se este homem não quer perdoar e escreveu mesmo para desassossegar todos aqueles com quem combateu, transformando a sua visão da guerra numa acusação de toda a guerra, incompatibilizando-se com tudo e todos. Como se passa a analisar.

Tudo começa no baptismo de fogo, à partida previa-se um simples treino operacional, na região de Mansoa. Depois de muita canseira na progressão nocturna, montou-se uma emboscada perto de um trilho inimigo; ao amanhecer, quem emboscava foi surpreendido pelo ataque inimigo. O comandante da companhia incitava-os a agarrarem os turras à mão e alguém lhe gritou: “Apanha-o tu, meu herói de merda!”. Findo o tiroteio, havia dois feridos bastante graves, descobriu-se que o furriel Branco e os seus homens andavam perdidos pela mata, demorou a estabelecer o contacto e a junção das forças. Tratava-se de um baptismo de fogo em que os pára-quedistas descobriam que os guerrilheiros eram muito diferentes daquilo que lhes tinham dito os instrutores. O comandante do batalhão, tenente-coronel Costa Campos exigiu-lhes que voltassem ao terreno e recolhessem o material ali deixado. De novo na zona do tiroteio da véspera, encontraram rastos de sangue de um guerrilheiro que, acabaram por verificar, tinha uma rótula esfacelada. O guerrilheiro pediu clemência, o comandante da companhia prometeu-lhe evacuação desde que ele se mostrasse disposto a colaborar, o ferido recusa. O capitão decreta a sentença de morte, quinze dias depois um soldado pára-quedista exibia, triunfante, duas orelhas humanas dentro de um frasco de compota.

Segue-se a “batalha de Bissau” que ocorreu durante um campeonato de andebol de sete, entre a UDIB e a ASA Clube. Havia duas claques, a primeira, composta pelos civis e alguns marinheiros, era apoiada pelos fuzileiros e por todo o pessoal da Armada; e a segunda, inteiramente formada por militares da Força Aérea, com destaque para os pára-quedistas. Segundo Carmo Vicente páras e fuzileiros eram amigos, mas na ocasião quiseram provocar-se mutuamente. Porquê, fica-se sem se saber. No BCP 12 todo o pessoal foi dispensado para poder assistir ao encontro e apoiar a equipa. Durante o encontro, boinas verdes e boinas negras apoiaram ruidosamente as suas equipas. Súbito, começaram os incidentes e cerca de 400 militares envolveram-se num corpo a corpo incontrolável, derrubaram-se as portas do recinto, a luta generalizou-se pelas ruas da cidade, tudo à cinturada, murro e pontapé. Parecia que os fuzileiros batiam em retirada quando de um prédio em construção saíram seis fuzileiros armados de G3 e de granadas de mão, começando a disparar indiscriminadamente. Dois pára-quedistas ficaram ali mortos. Para Lisboa transmitiu-se às famílias que tinham morrido num acidente com armas de fogo.

Carmo Vicente denuncia constantemente uma cadeia de comando autoritária, chefes incompetentes, cruéis, construtores de operações insensatas. Fala da crueldade e exemplifica com o soldado Queirós, um jovem que embruteceu em pleno teatro de combate. Tinham regressado exaustos da região da Coboiana, uma operação mal sucedida graças à resistência dos homens de Nino. Mal chegados, recebem ordens para voltar a sair. Foi uma duríssima progressão pela mata até chegar a uma tabanca, o dia começava a clarear. O capitão ordenou o assalto fulminante. A ordem era prender toda a gente e disparar sobre quem tentasse fugir. Acabou tudo num pandemónio: a população fugia aterrorizada, os soldados descontrolaram-se, transformaram-se máquinas de matar, parece que só tinham retido no ouvido a ordem de matar quem tentasse fugir. É nisto que o soldado Queirós, apontador de morteiro 60 e utilizador de uma pistola Walther começou a disparar sobre os fugitivos. Um ferido, deitado no chão, parecia pedir clemência, Queirós, abateu-o a frio. Interpelado por Carmo Vicente, Queirós respondeu que nada fizera de mal, era só uma experiência para ver se as balas da pistola furavam um gajo de lado a lado…

E assim chegamos a Gadamael Porto. Vejamos como ele descreve os acontecimentos:

“Quando em Abril de 1973 cheguei a Gadamael, integrado na companhia de caçadores pára-quedistas nº 122 toda a população tinha fugido para o mato, no quartel haviam ficado apenas os militares que constituíam a força ali destacada. Ali passámos os quarenta mais longos dias das nossas vidas. A minha companhia tinha regressado de uma missão de combate que durara três meses. Em Caboxanque e Cadique tínhamos sofrido alguns mortos e feridos enquanto fazíamos a protecção dos trabalhadores que construíam a nova estrada asfaltada entre Cadique e Jemberém. Uma distância de pouco mais de trezes quilómetros que nos ficou à razão por um morto por quilómetro. Encontrávamo-nos terrivelmente cansados, depois daqueles três meses de mato e esperávamos descansar. Porém, não era o que pensava o nosso comandante de batalhão. Ele tinha passado os últimos três meses em Bissau e Cufar, fazendo a guerra com umas cervejas frescas na frente, bebendo à medida que ia estudando os mapas… não vale a pena perder tempo a demonstrar a estupidez militarista deste homem. Não era o único, havia-os ainda piores do que ele. Existiram na guerra colonial centenas de comandantes iguais que se guindaram à custa do sangue, do suor e das lágrimas dos homens que comandavam… O comandante do BCP 12 tinha oferecido os pára-quedistas a Spínola, talvez na mira de apanhar mais algumas armas, mesmo que para isso tivesse que sacrificar a vida dos homens que comandava”. Depois do trajecto entre Bissau e Cacine, feito de noite, com todas as luzes apagadas, ainda longe do objectivo, ouvia-se nitidamente o bombardeamento a que Gadamael estava a ser sujeito, graças às armas pesadas do PAIGC. É assim que Carmo Vicente apresenta a situação: todo o quartel e aldeamento estavam praticamente destruídos, apenas um ou dois edifícios ainda se mantinha teimosamente de pé. Os bombardeamentos continuavam, toda a gente nas valas. Encolhidos dentro das valas, os militares procuravam não deixar nenhuma parcela do corpo à vista. Os vários feridos graves eram evacuados para Cacine em botes de borracha ou sintex. Competia também aos páras fazer alguns patrulhamentos à volta do quartel, e foi num desses patrulhamentos que a menos de 200 metros do arame farpado a unidade do Carmo Vicente sofreu uma grande emboscada, cerca de 45 minutos de um dilúvio de metralha. O rescaldo foi 18 feridos graves. Noutras circunstâncias, houve que apoiar forças do Exército que estavam a ser emboscadas. Ele conta que houve um caso em que saíram das valas para ajudar um pelotão que tinha sido atacado e encontraram três soldados e um alferes com os rostos parcialmente desfeitos por rajadas disparadas à queima-roupa. Carregaram os mortos às costas e é nisto que começou o novo bombardeamento e o soldado pára, de nome Costa, que carregava o cadáver do alferes, atirou-se para o chão, tendo ficado embrulhado num morto que o cobriu de sangue. Quando viu aquelas pastas de sangue coagulado, perdeu as estribeiras, parecia enlouquecido e teve de ser evacuado. Descreve que o estado de espírito das tropas era de tal maneira baixo que quando apareceram os botes com os fuzileiros para evacuar os mortos foram literalmente assaltados por uma avalanche de fugitivos que queriam sair daquele inferno. Surgiram indícios de motim. Por exemplo, o alferes Danif recusou-se a ir para o mato declarando sem rodeios que não estava disposto a deixar-se matar inutilmente. Fala também no alferes Coutinho Pereira que também partiu para Bissau, desertando-o do comando do seu pelotão.

Foi em Gadamael, diz Carmo Vicente, que tomou consciência que jamais se poderia vencer a guerrilha do PAIGC: “não me desviarei da verdade se afirmar que em Gadamael o PAIGC travou a batalha decisiva na sua luta pela independência, que quer tivesse havido, ou não, o 25 de Abril, teria conduzido o povo da Guiné a uma rápida vitória. Em Gadamael tombaram para sempre quase 50 irmãos nossos que não queriam combater e que abominavam a guerra. Quase 50 homens que, se o pudessem ter feito, teriam gritado antes de morrer: entreguem a Guiné aos Guineenses!”

São relatos sofridos, onde não se esconde o ressentimento, são libelos acusatórios, filípicas e catilinárias dirigidas a comandantes e outros, são memórias em carne viva pelo sofrimento dos camaradas e até da população inocente. Há, no entanto, que questionar se o autor mediu as consequências de tanta acusação e tanto despeito, depois do que se escreveu e já não se pode voltar atrás.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de março de 2010 > Guiné 63/74 - P5924: Notas de leitura (72): Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5929: Estórias avulsas (76): Como reencontrei um camarada ao fim de 15 anos (Mário Migueis)

1. Mensagem de Mário Migueis da Silva* (ex-Fur Mil de Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), com data de 2 de Março de 2010:

Caro Vinhal:
Na sexta passada, estive, uma vez mais, de visita a um ex-camarada da CCAÇ 2701 - Saltinho 70/72 -, que a doença tem perseguido ferozmente nesta fase da sua vida (após uma delicadíssima operação cirúrgica ao coração há cerca de dois anos, acabou de ser operado, in extremis, a um aneurisma na aorta). Chama-se Rui Coelho, é natural de Ermesinde e funcionário da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Dada a minha Especialidade (Informações, lembras-te?...), lidei directamente com o Rui (Cripto), do qual tenho as melhores recordações de amizade e camaradagem.
[...]
Um grande abraço do amigo
Mário Migueis


Como reencontrei Rui Coelho ao fim de 15 anos

Agosto de 1986
Os meus dois filhos, um com sete, outro com cinco anos de idade, não desistem de me pressionar para a realização urgente de um acampamento com os quatro primos sensivelmente da sua idade, dois deles residentes em Lamego, mas de férias na minha casa, em Esposende.

“Esta agora,… e para onde é que eu vou com esta malta toda? Não posso ir para longe, porque os pais ficam preocupados; não posso ficar muito isolado, porque preciso de ter tudo, ou quase tudo, à mão…”

Pensa daqui, pensa dali, ainda experimentei sugerir o quintal da minha casa, mas levei logo um rotundo “bââaaaaaaaaaaaaaaa!!!!!!!”. Então, de repente, tive uma ideia luminosa: o “Camping” da Prelada, no Porto!...

“É isso mesmo, é o parque que preenche todos os requisitos e mais alguns para a finalidade em vista.”

Só lhe conhecia a fachada, virada para a Rua Monte dos Burgos, uma das mais movimentadas da invicta cidade, mas sabia, pelos roteiros, que era, então, um dos melhores “campings" do país, a funcionar num grande e frondoso parque com pequenos lagos, um dos quais com um castelo e patos, cisnes e muito mais. Enfim, cenário para as aventuras que todos desejávamos. Para além do mais, tinha resolvido o problema da noite, após o jantar, que me preocupava sobremaneira, porque imaginava os putos sem sono e desorientados, sem saberem o que fazer até à hora da deita.

“Tinha resolvido o problema como?!...”

Ora, iríamos era comer à Feira Popular, que tinha lugar, ali a dois passos, no Palácio de Cristal e, com todas aquelas diversões ali à mão de semear, ia ser divertidíssimo para os campistas, que haveriam de regressar ao parque arrasados e a cair para o lado com a soneira.

Pois bem, no dia seguinte, por volta das cinco de uma tarde cheia de sol, lá demos entrada no Parque da Prelada, para uma estada provável de dois dias. De saco às costas e aos pinotes de ansiedade, pareciam pequenos pára-quedistas prontos a lançarem-se num espaço fantástico de novas aventuras - nisso era especialista o sétimo puto, então com trinta e tal anitos de idade.

Estava a malta a montar as três tendas, os mais velhinhos – eu, incluído – ensinando os outros a espetar as estacas e a esticar as espias, quando se ouviu uma voz grossa e supostamente irada atrás de nós:

“Que pouca vergonha vem a ser esta?!!...”.

Volto-me, curioso, para identificar o brincalhão e acabo à gargalhada, abraçado ao intruso, por entre aquelas exclamações próprias de quem já se não vê há séculos.

Era, nem mais nem menos, o Rui Coelho, um dos dois 1.ºs Cabos Op. Criptos da CCAÇ 2701, com a qual estive, no Saltinho, de Março/71 a Março/72, altura em que foi rendida pela CCAÇ 3490, do nosso camarada António Batista, “ sócio honorário” da Tabanca de Matosinhos.

Eu e o Rui já não nos víamos desde a altura do seu regresso à metrópole - tinham decorrido apenas cerca de quinze anos -, pela simples razão de que eu ficara ainda pelo Saltinho a amargar mais uns oito mesitos, facto que me fez perder o seu rasto. Deixámos os putos entretidos com a montagem das tendas e fomos até ao bar do parque matar saudades, enquanto degustávamos um bom vinho do Porto, oferecido pelo amável director do “camping”, que era, afinal, ele mesmo, o Rui Coelho.

Ainda hoje fico a pensar na coincidência tão curiosa da minha escolha de um parque que eu não conhecia, a uma distância da minha casa – apenas cerca de 40 kms – que ditariam como altamente improvável a sua escolha para o que quer que fosse, e as circunstâncias em que tudo tinha ocorrido. Contou o Rui que tinha acabado de chegar e, como era habitual, fora dar uma vista de olhos ao livro de entradas no parque, tendo-lhe chamado a atenção um nome – o meu -, que, pesem embora os anos volvidos, ainda lhe era familiar.

A partir daquele memorável “Acampamento dos Sete Putos”, eu e o Rui passámos a rever-nos com alguma frequência, inclusivamente nos convívios anuais, que entretanto a Companhia CCAÇ 2701 passou a realizar.

Ontem mesmo, fui visitá-lo. Só que, desta feita, ao Hospital da Prelada, onde está internado desde Outubro passado. Fora sujeito a uma intervenção cirúrgica de urgência a um aneurisma na aorta, tendo vencido, à rasquinha, mais um dos combates com que a vida o tem confrontado. Acabou de dispensar a cadeira de rodas e já se encontra em plena fase de reabilitação física. A nossa conversa decorreu num dos ginásios daquela casa de saúde, enquanto o Rui se familiarizava de mansinho com os exercícios que lhe vão devolver toda aquela energia que sempre o caracterizou. É que o Rui, para além do trabalho de gabinete – criptografia - , dado, nos mais dos casos, à criação de proeminentes barriguinhas e flacidez muscular , era um excelente desportista, tendo feito parte da equipa de futebol de 6 “Os Infernais”, que era apenas a campeã da CCAÇ, tendo vencido o último campeonato sem empates nem derrotas. Mas, para além de um camarada inteligente, responsável e grande atleta, o Rui Coelho era um tipo muito valente. Baixo e entroncado, ninguém lhe metia medo, fosse alto e espadaúdo, fosse azul ou amarelo - ”era do norte, canudo!... “ Recordo-me muito bem, por exemplo, de uma vez em que me obrigou a meter “uma cunha” ao capitão para que este o autorizasse a participar numa operação, em que as hipóteses de contacto com o IN eram mais que muitas. O Rui foi, sobreviveu e pediu mais. Já agora, uma nota curiosa: o Rui tinha um fraquinho pelo nosso morteiro 10.7, fazendo, voluntariamente, equipa com o grandalhão do Furriel Bernardes, especialista de Armas Pesadas.

"Os Infernais" - Campeões Absolutíssimos de Futebol de 6/SEIS da CCAÇ 2701 - Saltinho 70/72.
De pé, da esquerda para a direita: Mário Migueis, Duarte (Fur Pel Caç Nat 53), Rui Coelho, Sargaço (Cripto) e Simão (Escriturário, já falecido); em baixo, mesma ordem, Remígio, Cruz (Transmissões) e Amadeu


Por pequenas/grandes coisas como as referidas, associadas ao facto de trabalharmos juntos diariamente no gabinete de Comando - que acolhia igualmente o Serviço de Informações e, numa saleta contígua, o Centro de Criptografia -, o Rui Coelho era dos meus camaradas mais considerados e amigos. Fez também parte do quarteto da Redacção/Edição/Distribuição do jornal da unidade – o conceituado e independente “Saltitão”, de que hei-de falar a seu tempo – e acompanhou-me, assim como ao outro 1.º Cabo Op. Cripto (Zé Sargaço) e ao Furriel TRMS (Faria), em montes de iniciativas e brincadeiras, tais como entrevistas feitas e gravadas nos postos de sentinela durante as noites de Natal e Ano Novo.

Para ele, os meus votos de um restabelecimento total e com a velocidade de uma “zulu”.

Esposende, 26 de Fevereiro de 2010
Mário Migueis

PS: Como o Rui, alegando já não ter paciência para "as internetes", declinou o meu convite para a nossa tertúlia, cravei-lhe uma cópia das fotos do seu album de combatente para eventual publicação no blogue.
Em anexo, seguem alguns exemplares com a respectiva legenda."
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5733: História de vida (17): António Marques, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), um sobrevivente nato (Mário Miguéis / Luís Graça)

Vd. último poste da série de 16 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5822: Estórias avulsas (75): Do Cumeré a Canquelifá (João Adelino Aves Miranda, ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4610/73)

Guiné 63/74 - P5928: Memória dos lugares (73): Bissau, cidadezinha colonial (Parte I) (Agostinho Gaspar / Luís Graça)



Guiné > Bissau > s/d  > "Monumento ao Esforço da Raça. Praça do Império"... Bilhete postal, nº 109, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa")






Guiné > Bissau > s/d  > "Av Carvalho Viegas"... Bilhete postal, nº 129, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa")





Guiné > Bissau > s/d  > "Praça Honório Barreto e Hotel Portugal"... Bilhete postal, nº 130, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa")






Guiné > Bissau > s/d > "Aspecto parcial e Câmara Municipal"... Bilhete postal, nº 133, Edição "Foto Serra" (Colecção Guiné Portuguesa")




Guiné > Bissau > s/d > "Vista parcial e Ilhéu do Rei"... Bilhete postal, nº 117, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa")

Colecção: Agostinho Gaspar / Digitalizações: Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).


1. Comentártio de L.G.: Quem de nós não mandou à família e amigos um postalinho da Bissau colonial dos anos 60 ? (*) Escrito à pressa, tranquilizador... Nós por cá todos bem, como podem ver isto até é bonito, e  calmo, e limpinho, há gente a passear nas ruas e avenidas novas...

Quem de nós não passou uns dias, desenfiado em Bissau, longe do Vietname, ou simplesmente em trânsito, e portanto quem não reconhece estes lugares ? (**) Muitos dos nossos camaradas que não se podiam dar ao luxo de vir à Metrópole no gozo da licença de férias, escolheram Bissau como a solução menos dispendiosa...É certo que não havia muito para fazer e para ver em Bissau, mas sempre se saía dos Bura..kos em que vivíamos, no sul, no leste, no centro...

A colecção de postais ilustrados "Guiné Portuguesa", editada pela Foto Serra (C.P. 239, Bissau), era provavelmente a mais conhecida e a de melhor qualidade fotográfica... Muitos destes postais (a colecção conmpleta deverá ter deverá ter perto de 2 centenas) eram impressos em Portugal, na Imprimarte -  Publicações e Artes Gráficas, SARL...

Em boa hora, o Agostinho Gaspar (***) conservou e fez-nos chegar, a título de empréstimo, a sua colecção de cerca de 90 postais ilustrados (alguns a preto e barco) sobre a Guiné que conhecemos... Escolhemos alguns menos conhecidos... Peço aos  amigos e camaradas da Guiné, que conheceram a Bissau desta época,  que façam os comentários e observações. E quem conhece a Bissau de hoje, que faça o favor de actualizar o roteiro: por exemplo, como se chama hoje, a Praça Honório Barreto ? Ou a Av Carvalho Viegas (que eu não sei quem foi) ?

É também um pequena prenda que damos aos nossos leitores, nas vésperas de atingirmos o milhão e meio de páginas visitadas e um Giga de imagens no Picasa Web Albuns (Lá vamos ter que comprar mais espaço aos donos do Google!)...

Sobre Bissau do anos 50, vd, ainda os postes do nosso amigo e camarada Mário Dias (****).
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Notas de L.G.:

(*) Sobre Bissau temos, só na II Série do nosso blogue, cerca de 180 referências (marcadores / descritores)

(**) 14 de Novembro de 2007 >  Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)

(...) À noite, entretanto, c’est le vide: os únicos noctívagos ainda são aqueles que vêm do mato e que sofrem da fobia do arame farpado: é vê-los até às tantas da madrugada, à mesa das esplanadas, empanturrando-se de ostras e de cervejas e contando histórias do mato. Mas em vão o guerreiro, em cura de repouso, busca outra atmosfera em que o oxigénio não esteja carregado das toxinas da angústia e da lassidão… A menos que, no dia seguinte, tenha passagem marcada para a Metrópole… Ele vem da guerra e para a guerra há-de voltar, de avião ou de barco, já que não há praticamente ligações terrestres de Bissau para o resto da Guiné. De qualquer modo, os que vêm do Vietname, ainda são as espécies mais curiosas da fauna humana que vagueia por esta capital-fantasma.

De facto, aqui desaguam todos os rios humanos da Guiné: a carne que já foi do canhão e agora é do bisturi (ou dos vermes, em caixões de chumbo, discretamente empilhados, à espera que o Niassa ou o Uíge ou o Alfredo da Silva os levem nos seus porões nauseabundos); os desenfiados, como eu, todos os que procuram safar-se do inferno verde, quanto mais não seja por uns dias ou até umas breves horas, que o tempo aqui conta-se, de cronómetro na mão, até à fracção de segundo; os prisioneiros de guerra, esfarrapados, andrajosos, a caminho da Ilha das Galinhas; as populações do interior desalojadas pela guerra; os jovens recrutados para a nova força africana; enfim, os criminosos de guerra como o capitão P. que está aqui detido no Depósito Geral de Adidos à espera de julgamento em tribunal militar – suponho eu -, juntamente com um furriel miliciano da sua companhia. Ambos estão implicados em vários casos, muito falados, de violação e assassínio a sangue frio de bajudas, além da tortura e liquidação de suspeitos (..)


(***) Vd. poste de 7 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5898: Tabanca Grande (206): Agostinho Gaspar, de Alqueidão, Boavista, Leiria, ex-1-º Cabo Mec Auto, 3ª C/BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74)


(****) Vd.postes de:

9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXII: Memórias do antigamente (Mário Dias) (1): Um cabaço de leite

19 de Fevereirod e 2006 > Guiné 63/74 - LDXVI: Memórias do antigamente (Mário Dias) (2): Uma serenata ao Governador

15 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXX: Memórias do antigamente (Mário Dias) (3): O progresso chega a Bissau

Guiné 63/74 - P5927: Ser solidário (60): Petição: Senhores da Europa, mantenham o vosso apoio aos nossos amigos da Guiné-Bissau!

Página de rosto do sítio da OXFAM Novib ,[ versão em espanhol,] uma importante ONG holandesa que anunciou recentemente  a sua retirada da Guiné-Bissau, depois de longos anos de trabalho no terreno.


1. Três prestigiadas ONG [, Organizações Não-Governamentais], uma de Portugal, outra do Canadá e outra ainda da Bélgica, históricos cooperantes na Guiné-Bissau,  lançaram uma petição pública, em linha [pela Internet], aos (i) Ministros dos Negócios Estrangeiros Europeus, e aos (ii) dirigentes das ONG europeias, mostrando a sua inquietação face à mudança de estratégia de países como a Holanda  no domínio da cooperação com a Guiné-Bissau, e mais concretamente ao anúncio da retirada, deste país lusófono,  de importantes ONG como a OXFAM NOVIB.

Aqueles de nós que concordarem com o conteúdo da petição, poderão assiná-la, bastando para o efeito deixar os seguintes elementos de identificação:  Nome (obrigatório) / Endereço de email (obrigatório) / Nº do BI (facultativo) /  Comentário (facultativo) / Organização (facultativo).
 
 Eu, Luís Graça,  assinei (nº 631).


 Keep on supporting Guinea-Bissau
 
View Current Signatures   -   Sign the Petition


To:  European governments, European NGOs, Donors
(Versão em Português a seguir) (*)

Petition by the organizations CIDAC (Portugal), INTERPARES (Canada) and Solidarité Socialiste (Belgium)

To the European Foreign Affairs Ministers
To the leaders of European NGOs

From the conquering and recognition of its independence in 1974, Guinea-Bissau has suffered political instability and demonstrated very little capacity to assure a minimum level of basic needs satisfaction for its 1,5 million inhabitants. Facing growing predatory exploitation of its natural resources, with environmental and social risks caused by mining operations without proper legislation and the State's inability to assume its regulator and referee role, along with recent waves of political unexplained murders, the country has additionally found itself tangled in the narcotraffic web over the last 4 years. Guinea-Bissau is part of a region where the sum of the instabilities represents a real risk to all Western Africa.

Within this volatile context, Non-Governmental Organizations from Guinea-Bissau have played a fundamental role in maintaining minimum stability though their civic action, and systematically providing a number of basic services to the populations in the areas of health, education, agriculture, economy and environment... trough their interventions both in urban and rural areas. Following the legislative and presidential elections that took place in 2008 and 2009, witch have reestablished constitutional law in the country, Guinean Civil Society Organizations will additionally play a crucial part in ingraining the ideas of democracy, social justice, fight against poverty and for the environment, alongside with a government that remains fragile and with little means to reach out to all the population and territory.

Facing this scenario and in a moment where the necessity for continuous support to Guinean Civil Society Organizations seems so obvious as well as a precondition for building and consolidating a true culture of peace in Guinea-Bissau, it is with unease we hear of the departure of long time allies of Guinean NGOs, especially in the cases of the withdrawal announcements made by historical partners such as OXFAM NOVIB, in the context of drastic changes in the Dutch cooperation policy framework.

To allege lack of visible results in contrast with the effort and investments made by European States and NGOs in Guinea-Bissau, as well as being far from the truth, is a fundamental strategic error. Development is a long term process and attaining social justice is only possible though ties of solidarity which in turn need time to mature and become fruitful.

The undersigned organizations and individuals support this petition and reiterate the necessity of
- donors
- European Governments and
- European NGOs

not to give in to current trends of aid concentration that very clearly contribute to further marginalizing countries such as Guinea-Bissau, and to reconsider their relationship with Guinea-Bissau, making funds available and weaving long term alliances and solidarity ties with Guinean CSO, thus assuring that CSO can continue to fulfill their vital role in the country's development.

(*) Versão portuguesa

Mantenham o apoio à Guiné-Bissau!

Petição submetida pelas organizações CIDAC (Portugal), INTERPARES (Canada) e Solidarité Socialiste (Belgique)

Aos Ministros dos Negócios Estrangeiros Europeus,
Aos dirigentes das ONG europeias,


Desde a conquista e reconhecimento da sua independência em 1974, a Guiné-Bissau tem padecido de instabilidade política e demonstrado pouca capacidade em assegurar um nível mínimo de satisfação das necessidades básicas para os seus cerca de 1,5 milhões de habitantes. Confrontada com uma predação crescente dos seus recursos naturais, com riscos ambientais e sociais devidos à uma exploração mineira sem quadro legislativo apropriado e à incapacidade do Estado em assumir o seu papel de regulador e árbitro, com recentes ondas de assassinatos políticos inexplicados, o país encontrou-se também nestes últimos 4 anos preso nas malhas do narcotráfico. A Guiné-Bissau inscreve-se numa região em que a soma das instabilidades representa um risco real para toda a África Ocidental.


Neste contexto bastante volátil, as Organizações Não Governamentais [ONG] da Guiné-Bissau têm tido um papel fundamental na manutenção de uma estabilidade mínima através da sua acção cívica, e na permanência de um leque de serviços de base para as populações nas áreas da saúde, educação, agricultura, economia, ambiente... através das suas intervenções tanto em zonas rurais como urbanas. Na sequência dos processos eleitorais legislativo e presidencial decorridos em 2008 e 2009, que repuseram a ordem constitucional no país, as organizações da Sociedade Civil Guineense terão ainda um papel crucial a desempenhar em favor do enraizamento da democracia, da justiça social, da luta contra a pobreza e pelo meio-ambiente, ao lado de um Estado que continua frágil e com poucos meios para chegar ao conjunto da sua população e do seu território.


Perante um cenário e num momento em que a necessidade de continuidade e de reforço do apoio às Organizações da Sociedade Civil [, OSC,] guineenses parecem uma evidência e uma condição imprescindível para a construção e consolidação de uma verdadeira cultura de paz na Guiné-Bissau, assistimos, inquietos, a anúncios da saída de aliados das ONG guineenses, sendo de destacar o anuncio da retirada de parceiros históricos como é o caso da OXFAM NOVIB, na sequência de alterações drásticas do quadro de cooperação holandês. Alegar a falta de resultados visíveis perante os esforços e investimentos levados a cabo pelos Estados e ONG europeus na Guiné-Bissau é, além de uma contra verdade, um erro estratégico fundamental. O desenvolvimento é um processo de longo prazo e o alcance da justiça social só é possível através de laços de solidariedade que também precisam de tempo para amadurecer e dar frutos.


Os abaixo-assinados, organizações e pessoas singulares, apoiam esta petição, e reiteram a necessidade,


dos doadores,
dos governos europeus,
das ONG europeias,


não cederem às tendências de concentração da ajuda que de maneira muito clara marginalizam ainda mais países como a Guiné-Bissau e reconsiderarem a sua relação com a Guiné-Bissau, disponibilizando fundos e mantendo ou tecendo alianças e laços de solidariedade de longo prazo com as OSC guineenses, garantindo assim que estas podem continuar a desempenhar o seu papel vital em favor do desenvolvimento do país.
[ Fixação / revisão de texto / título: L.G.]

Guiné 63/74 - P5926: O Nosso Livro de Visitas (84): A minha Homenagem pessoal ao Humberto Duarte (Carlos Coutinho, ex-Combatente em Angola)



1. O nosso Camarada-de-Armas Carlos Coutinho, que cumpriu a sua comissão militar em Angola e foi grande amigo pessoal do nosso falecido Camarada Humberto Duarte, enviou-nos a seguinte mensagem, pretendendo assim prestar-lhe a sua homenagem:

HUMBERTO CARNEIRO FERNANDES DUARTE

O último combate do Sargento-Mór Op. Esp./RANGER Humberto Carneiro Fernandes Duarte, que serviu como Furriel Miliciano na CCS do Bat Caç 4514/72, no Catanhez - Guiné - 1973/74

Conheci o meu amigo e camarada há uns anos largos num jantar de confraternização promovido pela A.O.E., ali prós lados de Rio de Mouro, para o qual tinha sido convidado.

A certa altura, entabulei conversa com o Humberto e apercebemo-nos que haviam lugares comuns no nosso passado - ele tinha sido aluno do LAFOS, eu do PILAO -, e ambos arranhamos em tropas "esquisitas", bem como ambos andamos um bocado fora da mãe etc., etc.

Tendo ficado para o fim do jantar "cravaram-me" para levar o Humberto a casa, mas ele assim que entrou no carro adormeceu, ressonando que nem um leão, e, pior, não me respondia a nada, pelo que tive que abrir o vidro todo do carro. Estavamos em Dezembro e pus-lhe a "carola" de fora da janela do carro a apanhar vento, para ver se ele recuperava um pouco.

Começou então o festival:

- Oh mano, onde é que tu moras?

Resposta:

- Em frente... à esquerda.

E eu lá ia para a esquerda.

- E agora pra onde?

- Em frente... à direita...

E eu lá ia, em frente e à direita, mas não muito convencido pois ele nem os olhos abria, como é que ele havia de saber onde estava?

Bom, após umas tantas esquerdas e outras tantas direitas, decidi sair da IC 19 e passei pra Nacional. Entrei nos bairros da zona, depois numa estrada de terra batida, e, por fim, numa picada pelo meio de um pinhal, ali prós lados de Sintra.

E o meu amigo continuava a dizer:

- Em frente... à esquerda... em frente... à direita...

Eu comecei a ficar f.d.do, voltei á IC 19, e, não querendo mexer-lhe na carteira, pois se o "muadié" acordava ainda me pregava um par de bananos, a pensar que ainda estava lá pelo meio das bolanhas, tive que insistir com ele. No meio daquele breu-breu-breu, percebi uma palavra: RINCHOA. Pensei: "Ah até que enfim algo de concreto."

Enfiei direito à Rinchoa, passei por debaixo da linha do comboio e vi uma placa a dizer GNR.

"Tou safo - pensei -, alguém desta Guarda tem de conhecer este "sócio".

Parei o meu pópó à porta do posto, e aqui, começou a segunda parte deste filme.

Entrei, apresentei-me dizendo ao que ia, e, Alelulia, um dos guardas que estava à civil reconheceu o Humberto. Como o homem tinha uns papéis para tratar, pediu-me para esperar, pelo que, sentamos o amigo Humberto num dos bancos da saleta de entrada (do tipo jardim em ripas bem envernizadas).

O nosso amigo recostou-se e larga a ressonar, enquanto eu fiquei, como devem entender, na palheta com a rapaziada, por sinal todos eles jovens, e, interessados em ouvir o que já tinha passado para ali chegar.

Eu nunca tinha posto os meus "mokotós" para aquelas bandas, nem me sabia sequer orientar bem.

Nisto o amigo Humberto inclina-se para a frente até ficar com o tronco na vertical, mas, não a manteve, e, num movimento digamos uniformemente acelarado para a frente, descendente, prega uma marrada completamente desamparado, numa mesa de vidro que estava em frente ao dito banco, não me dando tempo de o segurar pela gola do casaco.

Só não rachou a tola toda nos vidros, porque havia uma série de revistas e jornais sobre amesa que evitaram que ele cortasse a cara toda. Curiosamente com o choque ele fez ricochete e voltou a recostar-se às costas do banco sem dar por nada.

Escusado será dizer que a dita mesa ficou feita em pedaços com a mocada que ele lhe pregou.

Então, foi ver o GNR conhecido dele a varrer os cacos, e, eu, é claro, tive que me "oferecer" para "chegar á frente" com as despesas, mas, diga-se em abono da verdade, o Sargento do posto (do qual não me recordo do nome infelizmente), no dia a seguir, quando lá voltei para tratar do assunto, fartou-se de rir e não quiz receber nada pelos estragos.

Chegado a casa dele entrei a "matar", um salamaleque à antiga portuguesa dedicado à esposa, e:

- Oh minha Senhora por quem é... não leve a mal... sabe como é a emoção de encontrar camaradas da tropa.

Diz-me o Leitão (o tal amigo da GNR):

- Oh camarada, não há problema esta é das nossas.

Foi assim que conheci tanto o meu amigo Humberto como a esposa, Senhora Dona Ana Mittermeyer, que tem sido, como sempre foi, desde os tempos de Moçambique (onde nasceu), uma Mulher de Armas.

Muitas outras cégadas tivemos, umas mais "contáveis" (se assim se pode dizer, que outras), mas todas elas terminaram bem e com um sentido de camaradagem elevado.

Só contra a "matacanha" no pâncreas o não pude ajudar.

Despeço-me dele, tendo a certeza que o Humberto estará numa mesa, com um jarrinho de branco à frente à minha espera, lá em cima.

Lamento camarada, não poder estar contigo na hora final porque estou na Argélia, mas virarei hoje uma garrafa de JB, e cantarei todas as velhas canções de marcha da velha Legião (que tu tantas vezes já me aturaste).

Até um dia destes camarada!

DANS LA BOUE, DANS LE SABLE BRULENT,
MARCHON L´AME LEGERE ET LE COUER VAILLANT
MARCHON CAMARADE

Carlos Coutinho
(ex-Combatente em Angola)
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Nota de MR:

Vd. poste anterior desta série em:

25 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5884: O Nosso Livro de Visitas (83): José Henriques, ex-Fur Mil da CART 2340

quarta-feira, 3 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5925: In Memoriam (37): Missa do 7º Dia pelo Humberto Duarte, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER do BCAÇ 4514, Cantanhez - 1973/74


1. A esposa (Ana Duarte) do nosso Camarada Humberto Carneiro Fernandes Duarte, que foi Fur Mil Op Esp / RANGER do BCAÇ 4514, Cantanhez -1973/74, falecido no passado dia 28 de Fevereiro, pediu-nos para comunicar o seguinte:
A todos os Camaradas e Amigos do Humberto, que puderem estar presentes, que a Missa do 7 º Dia pela paz e repouso da sua alma se vai realizar no próximo dia 6 (Sábado) de Março, no Quartel da Carregueira, pelas 11 horas da manhã.

Durante a missa, cumprindo um dos últimos desejos do Humberto, será efectuado o toque do silêncio.

Com os melhores cumprimentos Amigos a todos.

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Nota de MR:

Vd. poste anterior desta série em:

1 de Março de 2010 >
Guiné 63/74 - P5916: In Memoriam (36): Falecimento do Humberto Carneiro Fernandes Duarte, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER do BCAÇ 4514, Cantanhez - 1973/74 (

Guiné 63/74 - P5924: Notas de leitura (72): Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Acabo de confirmar o talento literário do José Martins Garcia.
O Jorge Cabral tem que o ler, está aqui um parodiante ao seu nível, é a guerra no bota abaixo, gente trauliteira, copofónica, a verdadeira, a genuína, a incomparável luta de classes entre milicianos e malta do quadro permanente. Não percam.

Foi um presente do José Grave, em breve teremos mais José Martins Garcia, em toda a sua pompa e circunstância.

Um abraço do
Mário


O massacre de toda uma geração

Beja Santos

Se Armor Pires Mota é o primeiro nome da literatura da guerra colonial na Guiné nos anos 60, José Martins Garcia impôs-se como o nome cimeiro dos anos 70. Dele escreveu Álvaro Manuel Machado: “Romancista, contista, poeta, ensaísta e dramaturgo, a sua obra está intimamente ligada, por um lado àquilo a que poderíamos chamar a “açorianidade”, na melhor tradição de um Vitorino Nemésio (de quem é um dos mais consagrados estudiosos) e, por outro lado, a um dramático e ciclicamente presente memorialismo da guerra colonial, dramatismo sempre compensado por um rigorosa lucidez crítica e por um sentido muito pessoal da sátira levada ao extremo da caricatura. Assim, com o romance Lugar de Massacre (1975) ou com os contos de Morrer Devagar (1979), que de certo modo prolongam este romance, José Martins Garcia foi dos primeiros a evocar o “massacre” da guerra colonial como destruição interior de toda uma geração”.

Lugar de Massacre é um livro soberbo (Edições Salamandra, 3.ª edição, 1996). É difícil acreditar que haja prosa mais niilista, corrosiva e grotesca que a que ele utiliza na construção dos personagens, dos ambientes e atmosferas, nos diálogos entre guerreiros, até nas circunstâncias do quotidiano. Martins Garcia usa a exaustão o non sense como metáfora, a relação entre chefes e subordinados decorre habitualmente entre o despotismo, a orgia sexual e a bebedeira que culmina no embrutecimento e até mesmo na hospitalização. É um livro autobiográfico, como ele próprio anota: “Este romance foi redigido entre o mês de Dezembro de 1973 e o dia 8 de Setembro de 1974. Qualquer coincidência com a realidade colonial dos anos 1966 – 1968, no que respeita à Guiné-Bissau, não é produto do acaso”. O personagem principal é Pierre Avince, que nada tem a ver com o jovem conde d’Avince, seu camarada de armas, este é um lídimo representante do antigo regime, dos bons usos e costumes. O conde vive do aparato, é paspalhão, veio convencido da sua missão de soberania. No fundo, é menos que medíocre, as suas farroncas, a sua prosápia, denunciam-se quase instantaneamente. Como representante da velha ordem, o conde não se conforma com o pandemónio em que vivem os seus camaradas, os seus palavrões, as sua falta de maneiras, o seu beber desatinado. Pierre Avince é o anarca consumado, trata o conde d’Avince por monarqui-cozinho, separando bem os dois blocos fónicos. A descrição do Quartel-General é de que ali reina a demência e a disciplina chocarreira: ali preside Sua Alteza (será o comandante militar?), o chefe de Pierre Avince é o capitão Pássaro que bem cedo se apercebe a permanente dor de cabeça que lhe trarão estes novatos. A discussão acesa entre os dois Avince não tarda a rebentar:

“O conde d’Avince deambulou um pouco e meteu-se no quarto. Pierre começou um discurso, pastosamente:

– Um dos piores defeitos da nossa colonização é o anacronismo. Transpõem-se para os colonizados valores caídos em desuso. Neste aspecto, a cultura é como a maquinaria: só se vende aos subdesenvolvidos a tralha que deixou de dar lucro. Quando derem a estes gajos uma fábrica de armamento, é porque já foi inventada, para os deuses, uma forma superior de destruição, o armamento fluido, o raio da morte. Quando os civilizados deixam de ligar à moral de entrepernas, a moral de entrepernas é exportada para outras latitudes. Isto é o mundo que a Europa criou. A Europa e o seu falso pudor…

– Não posso consentir! – gritou o conde”. Como sempre, Pierre insulta o conde, que recua, indignado. É nisto que chega o conde d’Enxeque, o bródio acelera-se. Pierre parte para Catió, os dois condes andam desaustinados, naquele Quartel-General, os desvios sexuais não param. Também não é por acaso que o livro é dedicado “a todas as vítimas da paranóia e da incompetência dos déspotas, caídas para nada no campo do dever e do absurdo”. De vez em quando Pierre vem até Bissau onde a relação entre os dois condes atingiu o desregramento total. Acabamos por perceber que Pierre é oficial das transmissões e que anda de aquartelamento em aquartelamento a tratar das ditas.

É nisto que ele vai parar à Ponta do Inglês, temos aqui algumas da páginas mais brilhantes, indispensáveis, do romance. A Ponta do Inglês é uma posição praticamente indefensável, os transportes entre o Xime e aquele destacamento junto do rio Corubal estão interditos: “A única saída era à beira-rio, se a Marinha tivesse tempo ou propósito dali mandar uma lancha. Mas constava ninguém apreciar essas paragens que, bem interiores ao mapa da Guiné-Bissau, constituíam na realidade o último enclave do ocupante, tomando por referência o largo afluente de nome Corubal. Daí para Sul – dizia-se –, embarcação que ousasse adiantar-se saía rendilhada de bala inimiga, como já se provara. E em terra, nas picadas que tinham ligado a Ponta ao Xime e ao Xitole, o matagal apagara o trilho humano, dando por zero a parte colonizadora da civilização.

Havia três meses que aqueles Destacamento de quarenta humanos ali encontrara abrigos e arame farpado e ali se exercitava na espera, numa inquietação sem finalidade senão a de sonhar a evasão. Para além da vedação, percorriam, bem armados, uns cinquenta metros, para alcançarem água vagamente potável, tendo o cuidado de se abastecerem pela manhã, visto já terem notado, na lama fresca, pegadas de pé descalço… Reinava o sol sobre os perdidos defensores da cerca e então algum sorriso lhes sublinhava as falas. Mas vinha a noite e os receios aos montes acidulavam os gestos com que baralhavam as sebentas cartas e as davam a rostos apreensivos de tanto jogarem sem uma só certeza. E quando o vento sarcástico da história lhes fundia mais uma lâmpada amarelenta, falavam de socorro e reabastecimento, culpando da solidão e da escassez de tudo o encarregado das transmissões, incompetentes em horas de exploração ganindo apelos junto ao rádio perro, para nada senão raivar de nervos”. Confesso que me emocionei a ler a reler estes trechos. Várias vezes fui à Ponta do Inglês, nessa altura (1969, 1970) ali perto se acantonava população que lavrava as bolanhas entre o Poidom e a Ponta de Luís Dias, terra fértil de onde vinha o arroz que alimentava uma boa parte dos quartéis do PAIGC da região do Corubal. Ali fui, pelo menos duas vezes, com o Luís Graça e parte da CCaç 12. Eram itinerários muito perigosos mas a beleza do Corubal, de deslumbrante, contrastava em flagrante com uma qualquer iminência de desforço com o recurso das armas. Percebe-se a solidão daqueles homens, a vontade de transgredir, os tiros nocturnos para afugentar os silêncios da floresta envolvente. Com os nervos sempre em franja, ouvindo as flagelações ao longe, dentro de qualquer Ponta do Inglês a alucinação espreita.

Depois, Pierre Avince partiu para São Domingos (sempre o assunto das antenas, ninguém quer viver com as transmissões fanhosas ou silenciadas), prossegue o despautério, perde imenso dinheiro no jogo na vila transformada em caserna e onde tudo ameaça apodrecimento: “Para tomar banho, Pierre teve de permanecer ao lado de um grande monte de excrementos, porque o duche se situava ao lado de uma retrete alemã cujos mecanismos se haviam estragado. De modo que saiu do banho com a impressão de ser ter sujado nos problemas de toda aquela guerra idiota”. De São Domingos segue para Sedengal e depois Ingoré. Curioso, acompanha o médico a Suzana quando aqui se declara a peste. Depois um jipe acciona uma mina, há um morto e vários feridos. Pierre, que caminha para o fim da comissão, é já uma esponja que absorve todo o álcool, recolhe aos serviços de psiquiatria, temos aqui novamente páginas fulgurantes que atestam o elevado recorte literário de Martins Garcia. Pierre é a personagem do massacre, a tal destruição interior, o cérebro inerte e um corpo disposto a todos os desmandos. Embrutecido, não deu pelo Maio de 1968, está desinteressado de tudo, sente-se louco de condição, depois a comissão termina, toda a vida de Pierre vai ficar marcada indelevelmente por aquele lugar de massacre.

Tenho para mim que este romance é o acontecimento principal da literatura da guerra colonial na Guiné dos anos 70. Vale a pena falar a seguir dos contos de Morrer Devagar que comprovam o elevado talento deste escritor da Ilha do Pico que nos deixou em 2002.

Este livro foi-me enviado pelo nosso camarada José Grave, de Ponta Delgada. Agradeço-lhe do coração a lembrança, já lhe incumbi nova missão, a de desencantar obras de Álamo de Oliveira e de Umberto Bettencourt, outros dois camaradas nossos que escreveram sobre aquela guerra.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5888: Notas de leitura (71): Além do Bojador, romance de estreia de Manuel Fialho (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5923: Blogando e andando (José Eduardo Oliveira) (4): Lugar aos novos, Emanuel Fernando Gonçalves Pereira, cooperante na Guiné-Bissau

1. Mensagem do nosso camarada José Eduardo Oliveira* (JERO) (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Binta, 1964/66), com data de 28 de Fevereiro de 2010:

Emanuel Fernando Gonçalves Pereira, nasceu em Alcobaça a 08/08/1978 na maternidade de sua casa na Av. Maria e Oliveira, n.º 23/ 1.º, dada a incompatibilidade que sua tinha mãe com a medicina e com os hospitais. Tem portanto 31 anos.

Quando cresceu foi um excelente estudante. Passou pela Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Leiria e pela Universidade de Economia de Trento-Itália, licenciando-se em Gestão de Empresas, actividade que passou e exercer desde os 24 anos. Depois de diversas experiências de consultoria de gestão por conta de outros… criou a sua própria empresa.

Da actividade de consultoria de gestão surgiu o convite para fazer a reestruturação administrativa e organizacional da Caritas Guiné-Bissau. E é de lá que nos escreve:

- Fui nomeado pelo Bispo de Bafatá, a 03 de Outubro 2009, data em que cá cheguei, como Coordenador Geral de Projectos da Instituição para o território da Guiné-Bissau o que é uma grande responsabilidade uma vez que esta é uma instituição que assegura a maioria dos serviços de acção social no país, estando sob a sua tutela a maioria das instituições de saúde e de apoio à nutrição cá existentes.

Segue-se o primeiro testemunho deste jovem alcobacense com muitas saudades da sua terra mas, nitidamente, já apaixonado pela Guiné.

Vamos ver o que dizem os tertulianos da nossa Tabanca Grande.

Eu, que sou suspeito, gostei muito. E já lhe pedi mais escritos e fotos.

Sem esquecer os velhotes… há que dar lugar aos novos.
JERO


O HOMEM DA RAÍZ NO BOLSO
Emanuel Fernando G. Pereira

Cheguei à Guiné-Bissau a 10 de Outubro do ano passado, com a missão clara de fazer a reestruturação administrativa e organizacional da CARITAS.


Os elevados índices de pobreza fazem com que esta instituição seja um parceiro privilegiado de organizações como as Nações Unidas e a União Europeia, daí que o rigor organizativo terá de ser um dos elementos distintivos da sua acção.
Face a isto, revesti-me de toda a coragem, sentido profissional e pragmatismo para estar à altura do desafio. Pensei que a minha acção seria um contributo importante para a organização institucional do país, uma vez que do meu trabalho, eventualmente, surgiriam activos organizativos aplicáveis a outras instituições.
Cedo percebi que só seria bem sucedido por aqui, se temperasse a frieza inicial que me servia de protecção, por um profundo sentido humano que, na realidade, justificava a decisão que tomei. Deste exercício humano e pessoal, resultou um despertar para uma outra forma de ver o homem no mundo e na vida.


Como há despertares que nos agitam e nos mobilizam os passos, certo dia, rendido, tentei-me na direcção da urbe profunda. Deixei-me levar pelo movimento colectivo de uma cidade que pulsa fervente num caos de trânsito, que pula por estradas outrora asfaltadas, num movimento incessante de gente que tudo oferece, num nevoeiro místico de pó e gasóleo.
Entrei no Bandim, um dos mais emblemáticos mercados tradicionais de Bissau. Atraído ao seu interior, senti o estômago vacilar, mas logo o espanto se encarregou de o encorajar, até se instalar o encanto pelo que se deparava aos meus olhos.
Era incrível! Tudo se vendia. Cores, aromas, soluções e bens… Numa simplicidade alquímica de quem do nada tudo tira e tem.
Recomendo-me ao saber ancestral de um vendedor velho e causticado, que sentado no chão, cheio de poeira e mau trato, me recorda a velha inimizade entre a descendência de Eva e a da serpente, que abunda pelas terras da Guiné. Estendendo para mim a sua mão fechada, convida-me a tomar nas minhas um objecto, segundo ele, sacro.
Descubro na palma da minha mão uma raiz. Uma pequena raiz branca, polida e com um cheiro forte e intenso. Segundo o velho vendedor, aquele objecto seria como que o meu anjo da guarda por aquelas paragens, não havendo assim víbora que me atacasse ou corrompesse.
Desde então descobri na Guiné rostos duros de pedra, mas capazes dos mais belos sorrisos que alguma vez vi. Percebi que também aqui a vida vale a pena, pelo tal sorriso que se faz com pouco mais de nada.
Descobri, por aqui, saudações duplicadas a cada manhã e que são mote para mãos dadas e apertadas num gesto longo e prolongado, num gesto de alguém que, efectivamente, está e deseja estar unido ao outro.


Descobri paisagens…Uauuuuu! De cortar a respiração. Justificando, também, a passividade autóctone ante a monumental espectacularidade com que o criador dotou o horizonte, tirando qualquer réstia de coragem a quem o possa querer conquistar em vez de o contemplar.


Descobri que em tudo na vida o sentido místico da missão tem de imperar. Porém, sou um profissional da economia, dos números e das organizações humanas…Pragmático inveterado, mas confesso que diante de tamanha ciência no saber estar de um povo, rendo-me aos seus conselhos e guardo no meu bolso a raiz que me defende do veneno da víbora e me lembra que aqui o homem é sábio e está mais à frente.

Bissau, 05 de Fevereiro de 2010; 18:32 (Hora local)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 21 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5860: O 6º aniversário do nosso Blogue (7): Sempre em frente (José Eduardo Reis de Oliveira – JERO -, ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 675)

Vd. último poste da série de 8 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5785: Blogando e andando (José Eduardo Oliveira) (3): O PREC na Baía

Guiné 63/74 - P5922: Convívios (196): Tabanca do Centro, Monte Real, 26/2/2010: uma jornada de camaradagem e de solidariedade (Luís Graça / Joaquim Mexia Alves)



Fotos: © Luís Graça (2010). Direitos reservados

1. Monte Real, 2º almoço-convívio da Tabanca Grande, 26 de Fevereiro de 2010. Restaurante Montanha.

Além do régulo, Joaquim Mexia Alves, estiveram presentes (por ordem alfabética): Agostinho Gaspar (que entrou a gora, formalmente, para a nossa Tabanca Grande), Alice e Luís Graça, Álvaro Basto e pai (Rolando Basto), Antonieta e Belarmino Sardinha, Artur Soares, Dulce e Luís Rainha, Gil Moutinho, Giselda e Miguel Pessoa, Hélder Sousa, Idálio Reis, Isabel e Alexandre Coutinho e Lima, João Barge, José Belo (o "lapão"), José Eduardo Oliveira (JERO), Jorge Narciso, Juvenal Amado, Manuel Reis, Silvério Lobo, Teresa e Carlos M. Santos, Vasco da Gama, Victor Barata... (Não sei se falta alguém; o Gil Mouitinho e o João Barge não fazem parte, formalmente, da nossa Tabanca Grande, mas estão automaticamente convidados a fazer parte desta comunidade virtual, se assim o entenderem).

A Alice teve, no final da refeição, uma gastroenterite que lhe estragou o dia, e abreviou o nosso convívio. Valeu-nos a competência e a experiência de alguns camaradas, que o calo ganho nas matas e bolanhas da Guiné nunca se perde: enfermeiros não faltaram, o Jero, o Álvaro, a Giselda... A todos queremos agradecer as manifestações de ternura e de solidariedade... Sem esquecer a dona da casa, a Dona Preciosa.

A Alice está melhor, à hora e data em que escrevo. A todos/as manda uma muito terno beijinho e pede desculpa por não estar, nesse dia, na melhor forma... Mesmo adoentada, quis comparecer, como estava programado... (L.G.)

2. Excerto, com a devida vénia, do relato dos acontecimentos feita pelo anfitrião, o Joaquim Mexia Alves, e disponível no seu blogue, a Tabanca do Centro.

 No dia 26 deste mês realizou-se o 2º Encontro da Tabanca do Centro, à volta de um primoroso “Bacalhau assado na brasa, com umas migas e batatas a murro”, de se lhes tirar o chapéu. Mais uma vez a Preciosa, proprietária do restaurante, não deixou os seus créditos por mãos alheias e decidiu presentear-nos com umas entradas de morcela, chouriço e entremeada, tudo assado na brasa, como mandam os figurinos, e tudo isto pelo enorme preço, já habitual!

E se começa assim a descrição do 2º Encontro, é apenas para abrir o apetite ao pessoal que ainda não experimentou a comida da Preciosa e o convívio da Tabanca do Centro. (...) O Luís Graça e a Alice, (que infelizmente teve uma indisposição, mas já recuperada), deram-nos o prazer da sua companhia, o que foi importante, não só pelo convívio que sempre proporcionam, mas também porque se avançou alguma coisa na definição dos propósitos da Tabanca do Centro.

Assim, ficou definitivamente decidido que o objectivo principal da Tabanca do Centro será dinamizar a ajuda aos combatentes que passam dificuldades, sejam elas quais forem, e sem distinção do teatro de guerra, ou seja, Guiné, Angola e Moçambique. Foi nomeada uma comissão que irá preparar um documento para ser discutido por todos os camarigos, tendo em vista a concretização dessa ajuda e tudo o que lhe diga respeito.

A comissão nomeada foi assim constituída: Vasco da Gama [Figueira da Foz],  Carlos Marques dos Santos [Coimbra],  Manuel Reis [Aveiro],  Luís Graça [Lisboa],  Joaquim Mexia Alves [Monte Real, Leiria](Espero não me ter esquecido de nenhum, pois não houve acta.)

Logo se decidiu também convidar o José Martins [Odivelas] para se juntar à comissão, visto os seus conhecimentos, não só de contabilidade, mas também tendo em vista o seu poste sobre o Lar dos Veteranos Militares. (Já lhe enviei mail a propósito.) Assim o Joaquim Mexia Alves, (este vosso criado que aqui escreve), ficou incumbido de elaborar a espinha dorsal do documento, para depois ser analisado pela comissão e se elaborar o documento final a apresentar à discussão de todos os camarigos.

Neste 2º Encontro já foram recolhidos cerca de 200,00€, fruto da generosidade dos presentes. Aproveito para pedir aos camarigos presentes no 2º Encontro que nos façam chegar textos e fotografias sobre o Encontro, ou o que quiserem, para publicarmos no blogue Tabanca do Centro. Podem servir-se para o efeito do email: tabanca.centro@gmail.com

terça-feira, 2 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5921: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (10): Os patos pagos pelo pato

1. Mais uma história do nosso camarada Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), enviada em mensagem do dia 28 de Fevereiro de 2010. Nesta, o feitiço virou-se contra o feiticeiro.


OS PATOS PAGO PELO PATO

As instalações dos sargentos da Cart 643 em Bissorã que mais tarde foi bar da Companhia seguinte, edifício geminado de um lado com uma casa, mas do outro afastado talvez uns 5 metros da propriedade vizinha, havia um portão de madeira, que dava acesso ao logradouro tardoz.

Certo dia, estando eu a escrever um "bate-estradas", debaixo da cobertura junto à porta principal, reparei que diversos animais como galinhas tradicionais, galinhas do mato, as chamadas fracas, cabritos, patos normais e gansos, andavam errantes esgravatando uns, comendo erva outros, ali pela frente dos alojamentos. No momento tive uma ideia luminosa, chamei o impedido, o Ventoinha, mandei-o ao Cabo do Rancho o Adérito, para que lhe desse uma pequena quantidade de arroz. A minha ideia foi levada à prática, era fazer um carreiro de arroz até dentro do quintal, para que os animais entrassem, fechar o portão e proceder à matança, com a consequente ocultação das provas, como penas, peles, etc., que seriam enterradas.

Se assim o pensei e ordenei, melhor o Ventoinha o fazia, todas as semanas havia petisco para alguns Sargentos, assim depois do produto limpo era levado à D. Maria do senhor Maximiano, para que durante a tarde houvesse lanche ajantarado.

Durante muito tempo assim aconteceu, mas como em tudo há sempre um dia que as coisas não correm como nós queremos.
Certo dia, fui mais uma vez voluntário numa coluna Bissorã/Olossato, a chamada carreira de tiro, como tantas vezes fazia, era a ajuda que eu podia dar aqueles camaradas tão sacrificados, pois a minha Especialidade era de Manutenção Auto que me dava pouco que fazer, então lá ia eu, até que um dia fui ferido com certa gravidade, mas não me arrependo, fiz aquilo que todos deviam fazer, ajudar a equilibrar o sacrificio. Mas voltando à história, antes da saida atrás descrita e depois de três gansos darem entrada no quintal, dei ordem ao Ventoinha para os levar depenados e arranjados como de costume à D. Maria.

Entretanto ele foi chamado ao Capitão para desempenhar uma tarefa e como viu que não tinha tempo para fazer o nosso serviço foi entregar por depenar, mas já mortos, os gansos à senhora, que por sua vez e por não ter oportunidade os levou a uma vizinha, que claro que como se está mesmo a ver era a dona dos animais.

Quando cheguei já no fim do dia, tinha uma senhora à minha espera junto aos alojamentos, era a mulher de um cabo-verdiano de nome Pedrinho, que me disse de rompante:

- Senhor Furriel tenho a receber já 60 pesos, 20 de cada pato ganso.

Eu ainda hesitei, ela percebendo ameaçou-me logo que ia ao Capitão Silveira, que não era para brincadeiras. Claro que paguei de imediato, tomei o meu banho, e lá fui para o petisco onde me esperavam os meus amigos.

No fim do repasto contei o que tinha sucedido, pedindo a divisão da despesa e obtive como resposta:

- Oh Rogério, estes Gansos souberam-nos a "PATO", e claro com esta resposta não vi o patacão.

Bissorã > Casa do senhor Maximiano, onde a maior parte da sargentada "matava a fome"

Bissorã > Estação dos Correios
Fotos: © Ex-Fur Mil Geraldo da CART 643. Direitos reservados


Mansoa > 1970 > Edifício dos CTT de Mansoa. Seria assim o de Bissorã, à época.
Foto: © César Dias. Direitos reservados

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5900: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (9): Memórias da viagem no Uíge, de 4 a 10 de Março de 1964