War is over, baby
[ A guerra acabou, querida]
por Luís Graça
A guerra acabou…
E depois ?
Depois, os avós
contarão aos netos,
tintim por tintim,
como foi a última batalha de bagdade
que não chegou a haver
mas que rimava com liberdade,
e com bombas de mil
sois
(Ou foi hiroshima,
meu amor ?)
Ou talvez não contem a história assim,
talvez prefiram antes
arrumar as botas,
e até calar-se para
sempre
e poupar os netos,
que esses, afinal, são
muito mais espertos,
e têm jogos de guerra
bem mais divertidos
no último modelo da sua playstation.
E sobretudo já não têm mais pachorra
para aturar os cotas,
infoexcluídos,
e com a rede neuronal
avariada
(Como é triste ser velho,
infoexcluído
e com sinais de alzheimer!)
De qualquer modo,
disse o repórter português,
o carlos fino,
foi a primeira das batalhas da história
transmitida em direto.
(O fino, o carlos, estava lá,
foi politicamente
correto,
e isso é um motivo de
orgulho nacional,
disse alguém,
assessor de belém).
Uma batalha
anunciada,
uma cruzada de cruzados,
logo com princípio, meio e fim,
como no jogo do xadrez,
com cheque-mate ao rei e às suas odaliscas.
Uma história das arábias
onde sobraram as espadas de deus
e dos homens faltaram as palavras sábias.
(Ó carlos fino,
tal como em
quinhentos,
somos tão poucos,
para cobrir a imensão
do globo
e calcorrear todas as picadas e os sete mares!).
Mas tu, baby, lembras-te,
tínhamos comprado pipocas,
no cinema do nosso
bairro
de classe média arruinada.
Sentámo-nos no chão
entre camelos e beduínos
à espera da queda do saddam.
(Ou de satã?,
já não me lembro;
lembro-me, isso sim, como se fosse hoje,
que já estavas meio pedrada,
do pó marado do casal
ventoso;
e campo de ourique ali tão perto!).
Éramos colecionadores de quedas e de quebras,
do PIB,
do moral da nação,
da moral de todos
nós,
da bolsa da valores,
dos valores da bolsa,
de meteoritos,
de aeronaves,
de cabeças coroadas;
e a última queda,
essa, fora a do muro de berlim
em mil nove oitenta e nove.
Regámos com vodka e coca-cola
o anúncio do recomeço do reich dos mil anos.
(Ou era licor beirão
?!,
ai, a minha cabeça!)
Depois os soldados regressarão
a casa.
E casarão.
E terão filhos que
vão à escola,
pública, privada ou
social,
conforme os escalões
do irs.
Ou talvez não.
Os soldados proletários,
mercenários,
voluntários,
patriotas,
partirão para outra guerra.
Que a guerra sempre foi uma profissão.
(Disseste procissão ?
Ah, sim, a da vida e
da morte!).
Os bisnetos dos escravos
das plantações de algodão do sul,
os afros,
os chinas,
os hispânicos,
os filhos dos imigras
de várias raças, credos e nações,
do grande melting pot americano,
os ex-colarinhos
azuis
das linhas de montagem
do taylorismo-fordismo,
no museu industrial de michigan.
Na fotografia amalareda tinham um ar de idiotas,
usavam grandes jeans
e chapéus à texano.
(Mas podia ter sido na região de tombali,
meu amor,
muito mais perto de
ti,
em linha reta,
no carreiro do povo,
no corredor da
morte!).
Enfim, só sei que eles guardarão a espingarda,
a baioneta,
o capacete,
o cantil
e a marmita,
no bengaleiro
ou, talvez melhor,
no sótão,
no baú, herança dos tretavós,
arrebanhados do
cacheu ao cunene.
E o canhão sem recuo,
esse, guardá-lo-ão
no jardim, em miami.
E o clarim, em nova orleães.
E, na casa branca, o cartão do tio sam que dizia:
I wanto you for u.s. army!
Em abono da verdade,
não escondo
que alguns morrerão.
Talvez de solidão.
Ou de tédio.
Ou de falta de fé em deus.
Ou na humanidade.
Ou em deus e na humanidade ao mesmo tempo.
No criador e na sua criatura.
Ou de stresse pós-traumático de guerra,
como dizem hoje os psis
que vivem dos despojos
de todas as guerras.
(Apanhado do clima, dirias tu,
meu tuga,
meu nharro,
que no tempo da guerra colonial da guiné
estava por inventar a palavra stresse.)
Morrerão simplesmente de solidão
como as carcassas dos tanques
nos jardins suspensos da babilónia.
(Ou na estrada de
madina do boé;
não importa, ou que importa ?!,
sentados ou de pé!,
nas berliets,
gê-ème-cês, unimogues,
à sombra dos bissilões).
Afinal, que importam os detalhes
se um dia todos temos
de morrer,
presas e predadores,
caçadores e leões,
escravos e senhores,
soldados e generais,
de uma merda qualquer,
de peste, sida, ébola,
gripe das aves,
radiações ionisantes,
insolação, raiva, insónia,
desidratação,
febre hemorrágica,
bê-esse-é,
tiro da bófia,
pneumonia atípica,
cancro,
gás mostarda,
sari,
trombose,
avêcê,
tsunami,
ou aperto da aorta.
O repórter de serviço diz,
na têvê do berlusconi,
que esta foi a última campanha de caça
ao leão da mesopotâmia.
Ou da abissínia, tanto faz,
que o berlusconi tem gê-pê-esse
e borrifa-se na geografia,
agora com as autoestradas da globalização,
dando largas ao delírio
e à livre circulação
do capital.
(Estranho: eu
imaginava-o extinto,
ao leão da abissínia,
na época dos últimos glaciares.)
Ah! se eu não fosse um sem-abrigo,
Ah! se eu não fosse um desertor da guerra colonial,
Ah! se eu fosse poeta proactivo,
um repórter reformado da guerra fria,
com pensão, cama e roupa lavada,
um gajo decente
com sensibilidade
social
e uns restos de testosterona
na ponta mais ocidental da G3…
Ah!, se eu fosse tudo
isso,
eu escreveria um grafito
no meu epitáfio,
nas paredes do meu
bunker:
- Deus é grande,
e maomé o seu profeta!
Estive em badgade,
mas não vi nada, meu
irmão.
Não rezei na tua mesquita azul.
Não rezei por ti nem por mim nem por nós.
Apenas tive pena do teu povo,
curdos, xiitas, sunitas, árabes
e todos os outros filhos bastardos de abraão
e das tábuas e tabus de moisés.
Fulas, mandingas,
tugas, felupes, balantas, nalus,
filhos pródigos da
humanidade achada e perdida.
Mais te direi por e-mail
que morri com um estilhaço de granada.
A meu lado, um capitão dos marines
afogou-se num poço de petróleo,
coberto com a bandeira dos states,
como na batalha de
iwo jima.
Verde e vermelha,
como a imaginava o poeta, jorge de sena,
a cor da liberdade,
em 1961.
(Angola… é nossa!,
que importa a cor da liberdade,
quando a joia da
coroa está em perigo?!).
Era um caixa de óculos como o o’neil,
poeta, obscuro,
que nem para contínuo serviu
do ministério dos negócios estrangeiros.
Mas hão-de morrer mais.
Conta, baby, conta até mil
e lê o jornal.
É a astróloga do ano que tudo viu
na sua bola de cristal.
Italianos dos carabineiros,
espanhóis da secreta,
espiões do efbiai,
judeus errantes da diáspora,
goeses de damão e diu,
mexicanos do pancho villa,
lusitanos da
diáspora,
talvez do luxemburgo,
onde nem sequer há
poilões
nem acácias
nem jagudis.
Hão de morrer, todos, de puro terror,
estampado nos olhos.
Tudo por causa de um
homem-bomba
que foi visto visto a sobrevoar
a estátua da liberdade agrilhoada.
Mas agora és
tu, private jessica lynch,
baby-doll em camuflado
a nova namoradinha
dos tele-espectadores globais.
Ou por breves instantes foste
a heroína,
a heroinazinha.
Que a fama e a glória são
deusas vãs, avaras e cruéis.
Quiçá na próxima guerra te verei
ao serviço da bandeira da cnn,
ou doutro xogum qualquer dos mass media,
embeded com os bravos da mítica 7ª cavalaria,
mobilizada pelo ral
7,
ali à calçada da ajuda.
No país do show business,
das fábricas de sonhos e de fadas de carne e osso,
e em que o sucesso é um pudim instâneo
e a medida de todas
as coisas,
está tudo a condizer.
Tu estás a condizer, minha joia,
o carlos fino está a condizer,
mais o pobre ministro da propaganda,
de seu nome mohamed saeed al-sahaf
que que queria resistir ao apocalipse now
com um microfone na
mão.
A gnr dos portugas em nassíria está a condizer
com a batalha de nassíria.
Tu e eu estamos a condizer
no tempo em que éramos todos telegénicos,
e até o bush, my friend george, caraças!,
por deus e pelo diabo protegido e ladeado,
segurava um perú de plástico
no dia de ação de graças.
(Poupem o perú, seus
cabrões,
mas deem-me cabo do
império do mal!)
Tu, my darling, minha querida,
ouvi dizer que eras filha
de um condutor de camião,
daqueles que
atravessam a américa,
de lés a lés.
Uma heroína do povo sem pedigree,
escriturária,
amanuense,
anjo da guarda,
carinha larocas, teenager,
de uma qualquer terra saloia da américa profunda,
da américa larga,
comprida e funda.
Ferida em combate por engano,
sorry que numa lady americana,
não se bate,
diz o puro sangue árabe,
com sotaque português.
Baleada mas logo resgatada,
que um camarada morto ou ferido
nunca se deixa para trás,
muito menos acima do
paralelo 38
das linhas do fogo inimigo.
Muito menos, já se vê,
num hospital de retaguarda do eixo do mal,
diz o pentágono.
Li nos jornais velhos que acumulo no wc
que já te ofereceram um milhão
(de dólares, entenda-se).
Queriam fazer um filme
com a história da tua curta vida,
de heroína por equívoco.
Tu que só tens 19 anos.
Não mais.
E já tanto (ou, afinal, tão pouco) para contar
aos netos que hão de
vir.
Perdi-te o rasto, meu amor,
minha bajuda,
my baby,
nas voltas que o
mundo dá.
A guerra acabou, dizem,
war is over.
O problema agora é de polícia
e do homem-bomba
ou da mulher do tchador
Adeus, querida,
adeus às armas,
adeus, iraque,
adeus, guiné…
E depois ?
Bem, depois é amanhã,
não há azar,
que não é sexta nem
treze.
E amanhã há mais,
cantemos o hino.
A vida pode parar,
a vida pode esperar,
a vida pode até perder-se.
O espetáculo é que não, my god!
O espetáculo, esse, continua,
tem de continuar...
Só vou ter saudades é do carlos fino!
11/1/2004. Revisto em 10/6/2013
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Nota do editor:
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