1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Junho de 2014:
Queridos amigos,
“Mistida” é uma obra soberba, versa um mundo em derrisão, os valores do passado estão em derrocada, aparecem D. Quixotes, feiticeiros, a barbárie das prisões sem culpa formada; há sempre a exaltação do professor, há viagens do passado para o presente, a esperança flutua como partículas de cinza. Há sons ameaçadores, convocações de desgraça, há carrascos que sentem remorsos e que imprecam essas execuções que sangraram a nação.
Aguardam-se mensagens, sinais do sol, a chegada do amor, o desaparecimento do lixo.
Um livro enigmático e muito belo. Mas que confirma Abdulai Silá como a grande promessa das letras guineenses.
Um abraço do
Mário
Abdulai Silá, o grande prosador guineense (3)
Beja Santos
“Mistida” (1997) é o terceiro romance de Adbulai Silá e dá o título à trilogia composta também por
“A Última Tragédia” e
“Eterna Paixão” (Centro Cultural Português Praia – Mindelo 2002). Teresa Montenegro presta alguns esclarecimentos no prefácio à segunda edição:
“Mistida é uma história feita de várias histórias que se se juntarem numa mesma história podem fazer desta outra história. Possível? Na Guiné tudo é possível”. E discreteia sobre o sentido de mistida:
“Como palavra em si, mistida é foneticamente saborosa de ouvir e de pronunciar, mas normalmente o prazer suspende-se aí. Uma mistida é uma coisa vulgar e extremamente terrena. Pode até ser percebida como ordinária, segundo o caso. As pessoas que não precisam não falam safar mistida. No quotidiano urbano, a mistida é hoje sobretudo escrava da sobrevivência, da procura limitada da caneca de arroz, das duas colheres de óleo ou o minúsculo invólucro da margarina a retalho que reunidos a um bocado de peixe permitam fazer ao menos um tiro, uma refeição por dia”.
No prefácio à primeira edição, Teresa Montenegro observou a estrutura da obra: não há capítulos de romance, há dez episódios que irão convergir para um retumbante final de esperança, nesse final as vozes vindas de cada episódio reúnem-se em apoteose. Episódios perpassados por todas de sobrevivência, acasos de guerra, delírios megalómanos. É uma escrita revolucionária, uma ficção confecionada com um uso maleável da língua portuguesa enxertando-lhe crioulo guineense, são episódios caleidoscópicos que refletem estratégias individuais, gente à procura de saídas, gente que quer um sentido para a sua Pátria esfrangalhada.
Numa atmosfera de ruína, no que resta de um abrigo de guerra, aquela que findou em 1974, vive um comandante e num jovem que o acompanha, Matchudho. A atmosfera é delirante, o comandante sonha com guias de marcha, pensa que está a defender um posição militar, é possuidor de uma grande medalha, a proveniência é um mistério. O comandante manda o jovem ir ver o sol, e depois quer saber o que o jovem viu, os diálogos são enigmáticos, atravessados por sopro poético:
- Não viste a cor do sol.
- Ele está muito forte…
- Não me faças rir, Madjudho.
- Juro que está tudo igual aos outros dias, Comandante.
- Mas que ignorância! Não disseste que estavas a querer conhecer a vida? E depois de tanto tempo ainda não és capaz de entender que este sol está quase a cair?
- A cair a esta hora?
- E para sempre!
- Não estou a entender…
- Tena… a ver se descobre o outro sol, aquele brilhará para nós. Para todos nós….
O jovem vai ver
a pedido do comandante qual o aroma do vento. Mas não há vento nenhum. O comandante comunica que daqui a pouco irá nascer o sol e a partir daí não haverá mais ladrões naquela terra. Vai chegar um tempo de fé, de esperança e de solidariedade.
Noutro episódio, um conjunto de prisioneiros políticos jazem numa masmorra. Por ali passou o embaixador que fora espancado até à morte, acusado de tentativa de golpe de Estado. Agora, estes prisioneiros de diferentes idades questionam o absurdo das acusações, a ninguém foi dito porque foram incriminados como traidores. Silá condimenta estes diferentes episódios de uma atmosfera mágica, pesa a ancestralidade africana temperada por um certo delírio surrealista da nova classe política que exibe despudoradamente os seus carros, as suas habitações, móveis e roupa cara. São episódios dominados pela espera. Sente-se que há um mundo em desmantelamento, os melhores da luta de libertação estão enclausurados. Há mulheres heroínas como Mama Sabel, são porta-vozes da dignidade perdida, denunciam a sociedade de expedientes em que se tornou a vida na capital.
E há parábolas como a do lixo, sempre a crescer. E há a observação que Abdulai Silá faz do meio que o envolve, consegue a intensidade plástica entre o vigor da natureza e o meio arruinado, veja-se esse este exemplo:
“O sol ardia com força e o vento fresco vindo do mar há muito que deixara de soprar. No ar dançava a poeira, muita poeira. Vinda de todo o lado, até dos tubos de escape rotos dos carros a pedir reforma, que insistiam em varrer a sujeira que enchia os buracos e os bocados de estrada que entre eles ainda se via. Quanto mais aumentavam a poeira e o calor mais frenético e desordenado se tornava o movimento da avenida. Pessoas, carros e animais cruzavam-se sem a mínima consideração pelas normas e regras de trânsito. Toda a gente estava apressada, parecia que o mundo ia acabar. Só faltava mais um bocado do calor do sol para se chegar ao caos”.
Há personagens que estão em perfeita felicidade, outras vivem dilaceradas pelo país sem sentido, aquela indignidade, como Silá escreve:
“A vida era aquilo mesmo que tinham, uma vergonha diária, permanente. Por isso é que havia tanto fingimento, tanta sacanice, tanta vigarice… Era para esconder a vergonha que havia em todo o lado: homens ou mulheres, adultos ou crianças, governantes ou governados. Cada um se desenrascava como podia, conforme calhava, mas sempre sem vergonha”.
Caminhamos para o reencontro, impensável se atendermos a que cada um dos fascículos de Mistida é como um quarto fechado, são histórias aparentemente concentracionárias. Em dado momento, entra em cena Yem-Yem, o Carrasco, ele é no fundo um pedaço da consciência da nação que se afundou. Bebe desalmadamente cachaça. Está embrutecido.
“Para chegar onde estava não tinha sido fácil. Teve que vencer muitas guerras. Guerras com armas e guerras sem armas. Em todas elas tinha-se desenrascado como devia ser, não fazia perguntas, executava". A literatura de Mistida é uma confluência de sonho e realidade, de literatura onírica e de exaltação tropical, parece que a todo o momento, perante o abatimento da Nação, os protagonistas questionam indignados: como é que é possível, como é que foi possível. As narrativas tornam-se desnorteantes, codificadas, como se aguardassem a revelação dos segredos dos deuses. Os vivos caminham ao encontro dos defuntos, recuperam-se discursos de protagonistas de
“A Última Tragédia” e
“Eterna Paixão”, fala-se no resgate da esperança, há mesmo previsões temíveis para o futuro, quando alguém diz:
“Você quer apostar, por estes andares, ainda há de aparecer, mais dia, menos dia, um ditadorzinho reconvertido ou camuflado, que vai montar um esquema para meter todos os djidius de caneta na gaiola, senão num sítio ainda pior". É uma obra estranha, aquele que se chama um romance aberto. Premonitoriamente, no arranque da obra, Silá, num texto muito belo, fala da alvorada em que a verdadeira vida nasceu, como se quisesse dizer que a Guiné-Bissau não está definitivamente condenada ao infortúnio:
“Não foram anunciados nem tão-pouco desejados, mas os camaradas chegaram. E chegaram todos de uma vez. Apressados. Poderosos e violentos. Ah, muito violentos. Semearam frustração e cedo transformaram a realidade num sonho. Sonho turbulento, de pesadelos sem fim.
Roubaram. Roubaram. Roubaram e partiram. Sem glória. Sem vergonha… E levaram a memória, quase toda a memória. Contra a razão.
E quando das cinzas se resgatou a esperança surgiu na madrugada um outro ser. Um outro ser e uma outra vida. Uma vida que exigia ser vivida. Em plena fraternidade. Com todo o orgulho.
Os cidadãos que disse deram conta, ignorando as sequelas da pilhagem, afirmaram vários anos mais tarde que foi nessa madrugada que a verdadeira vida nasceu. Será?”.
Uma obra de talento, um cruzamento de géneros literários que um grande artífice pode cinzelar como um romance que vai ter grande futuro.
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Nota do editor
Vd. postes anteriores da triologia de:
20 de abril de 2015 >
Guiné 63/74 - P14492: Notas de leitura (705): Abdulai Silá, o grande prosador guineense (1): "A Última Tragédia" (Mário Beja Santos)
e
24 de abril de 2015 >
Guiné 63/74 - P14513: Notas de leitura (706): Abdulai Silá, o grande prosador guineense (2): "Eterna Paixão" (Mário Beja Santos)