Outras memórias da minha guerra
22 - Religiosos de primeira e pobres (crentes) de segunda
(Recordações de infância)
Corria mais uma manhã daqueles primeiros dias de Maio de 1950. O céu completamente limpo iria proporcionar, por certo, mais um belo dia, com temperaturas já elevadas para a época primaveril. A rua que atravessa a povoação é conhecida por Estrada Real. Foi a via principal que nos ligava a Roma: a sul, por Conimbriga ou Scallabis a Emerita Augusta e, pelo norte, através de Calem, Portucale, Bracara Augusta e Astúrica Augusta.
Por ela passaram militares, de soldados a generais, eremitas e peregrinos, padres e bispos, noviças e freiras, criados e fidalgos, reis e rainhas. Enfim, digamos que por ali passou todo o mundo. Tudo, nos outros tempos, porque no meu tempo, só passávamos nós, a pé e descalços, passavam outros de socos ou chancas e alguns em carros de bois. Também passava o gado para a Feira dos 10 e 28 e, em rebanhos, por altura do S. João do Porto.
Mais tarde, em 1970, conheci um empreiteiro em Angola que havia ido para lá há cerca de 40 anos e que nunca mais voltara à Metrópole, alegando que “não o fez porque lá não se esquecera de nada”. Este senhor, de nome Claudino, era muito crítico em relação à miséria que conhecia bem de a ter vivido no norte, lá para os lados da Beira Alta. Então, falava sempre com sarcasmo nos êxitos do Salazar. E dizia:
- É um dos homens mais inteligentes do mundo. O exemplo mais flagrante que conhecemos é o da criação e desenvolvimento da máquina “carro de bois”. Imaginem só, o emprego que dá a tantas pessoas.
E explicava:
- Na frente, vai a filha do empresário, de vara ao ombro, agarrada aos arreios que ligam os bois;
- Logo atrás, do lado direito, vai o empresário sentado junto ao cu do boi. Leva também uma vara para orientar a marcha da viatura;
- Do lado esquerdo vai o moço, para ajudar nas cargas e descargas e vigiar o garrafão e o cesto do apoio logístico;
- Atrás, de lata pendurada numa mão e pincel de trapos na outra, segue o aprendiz de moço, que vai untando o eixo das rodas;
- Mais atrás, segue uma mulher de giga à cabeça, acompanhada pela filha que, de pá na mão, vai aguardando que caia a bosta dos bois.
Pois eu também me recordava bem de ver essa “máquina”. E vi outras coisas nessa rua de Imperador Romano onde, como criança, vivi com as pessoas mais humildes que então conheci.
Apesar daquelas pedras enormes, solidamente assentes e agarradas entre si, não sei porquê, existiam clareiras de terra batida, onde jogávamos à bola de trapos, ao pião, à bogalhinha, ao pica-pau, à tocha do ar, à malha, ao eixo e à macaca. O pior era a conjugação da utilização desse parque de jogos. É que, quando as mães regressavam do monte, onde iam ao moliço (caruma de pinheiro) e à carqueja, precisavam de espaço para a seca desses combustíveis biológicos, a fim de os entregar bem secos nas padarias.
De viaturas, lembro-me de as ver passar por ocasião de dois casamentos: um, o da filha da Senhora Micas, que casou com um “venezuelano” e o outro, o do filho do Senhor Quintana, negociante de sucesso, com a fama de vender bem o gado doente, para os talhos da Malveira. Num e noutro caso, parávamos o jogo de futebol e, como os carros tinham que andar devagar, aproveitávamos para saltar para cima deles em andamento.
Também me lembro de um dia ter ficado aterrado de medo, quando passaram uns carros de combate, com o primo Neca, filho da tia Amélia Tabareda, dentro de um deles. Ele chorava ao ouvir a mãe desesperada, a gritar:
- Ai, o meu rico filho que vai para a guerra!
- Ai, o meu querido filho que vai morrer!
Eu ainda não tinha 5 anos, seguramente. Porém, dado o choque que senti, ainda hoje tenho fixadas na mente essas imagens. Penso que terá sido no Verão de 1947 e se tratava de manobras militares, ainda muito influenciadas pela II Grande Guerra.
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Pois quando a manhã desse dia de Maio não ia além das 8h30, já toda a gente andava ocupada. Os homens tinham ido para as fábricas, os filhos para as escolas e as mulheres para o monte. Toda a rua estava deserta. A excepção surgiu, vinda do outro extremo da vila. Entraram pelo lado do caminho do Souto. Uma senhora, de chapéu de palha e de vestes claras, bem apresentável para os seus cinquenta e tal anos, de sombrinha fechada, que servia de bengala, bem ornada pela sua pega de prata, onde sobressaia uma pequena escultura de um crucifixo em forma estilizada. Também se lhe destacavam um vistoso terço ao pescoço com um medalhão da Senhora de Lourdes e uma concha de Santiago de Compostela e, ainda, um enorme broche ao peito, com a imagem da Virgem Maria. Logo atrás, seguia uma senhora de aspecto humilde, descalça, de giga à cabeça, aparentando cerca de sessenta e cinco anos. Naquela carga volumosa, apertada por uma escassa toalha, é bem visível um saco de batatas, panela, tacho, fogareiro a petróleo e ainda a asa de um garrafão. Com ela, a Felismina Estaca, vinha também um miúdo descalço, de cerca de 7 anos, com um saco de pano às costas. Era o seu neto Jeremias que vinha, para ficar em casa da sobrinha Conceição, durante esta sua deslocação a Fátima.
Bateu na porta dos Margaridos, com o referido cristo de prata, surgiu a Dona Juliana, que logo manifestou a sua relação afectiva com a visitante:
- Então, prima Joaquina, que andas por aqui a fazer? Bem dizias que ias a Fátima, outra vez.
- Sim, já te tinha dito que ia. Olha, com esta, é a vigésima sexta vez que lá vou. Já lá fui mais vezes do que tu. Enquanto Jesus Cristo quiser e a sua mãe Virgem Santíssima me ajudar, lá irei.
A Juliana interrompeu-a:
- Sabes lá o que custou ter criado um filho padre e aturar um marido fidalgo. Bem gostaria de te fazer companhia. Espero que Deus Nosso Senhor não se esqueça da minha penitência, quando chegada a hora de partir.
Voltou a Joaquina:
- É por isso que eu, apesar de não ter um filho padre, também espero que todas as minhas rezas e peregrinações contem para um bom lugar na vida eterna, à direita de Deus Nosso Senhor. Eu sei que me falta ir à Terra Santa, mas devo ir lá brevemente, custe o que custar. Mas, já disse, quando eu morrer, não quero que ponham nada na lápide no cemitério a lembrar as minhas peregrinações, como fizeram no jazigo da Baptistinha.
- Não queres entrar? A minha mãe já se levantou. Hoje quer ir à missa do meu Sebastião, que a vai celebrar na Capela da Senhora das Dores. Ela tem muito orgulho neste neto.
- Só a vou cumprimentar. Não posso demorar porque quero juntar-me ao primo da Mala-Posta que já deve estar à minha espera.
Então o Sebastião sempre vai para Roma?
- Nem me fales nisso. Se soubesses o que temos passado, a mexer os cordelinhos. Olha que não é por falta de devoção à Virgem Maria nem por falta de ódio ao comunismo. Sabes bem que além da devoção ao Santo Padre Pio XII e ao nosso Cardeal Cerejeira, temos muito respeito pelo nosso Salazar. O meu homem, que é da União Nacional, vai conseguir.
De volta, a Joaquina, vinha acompanhada da Juliana, que lhe pedia:
- Não te esqueças de vir cá pelas festas do Corpo de Cristo, para acertarmos a ida aos banhos.
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Logo ali, mais acima, havia um pequeno largo, onde se agrupavam habitações, algumas delas adaptadas de celeiros e de outros barracões. Numa delas vivia o Serafim do Canto, viúvo de Lurdes do Estaca, com sua filha única, a Conceição. Ele era serrador e havia ficado bastante ferido de uma perna num acidente. Enviuvou cedo e ficou com esta filha a cuidar dele. Viviam praticamente de esmolas. A rapariga era bastante frágil e tinha dificuldade em fazer trabalhos remunerados. O pouco que ganhava era a fazer bilros. No entanto, dada a sua dedicação religiosa, acabou por se destacar a ensinar a doutrina para a Comunhão Solene. Por isso, era tratada por “Soramestra”. Era analfabeta mas os seus alunos apareciam nos exames como autênticos papagaios. Eram sempre os melhores. Todavia, dos seus alunos nunca algum foi escolhido para fazer discurso no dia da Comunhão Solene. Possivelmente porque essa vaidade estava mais reservada para os descendentes de famílias mais importantes.
Nunca se ouviu dizer que a Conceição teve qualquer namorico. Esquelética, escanzelada e pouco atraente, não parecia entusiasmar quem quer que fosse. Por outro lado, a obrigação de ajudar o pai, aliada à sua religiosidade, anularia, por certo, qualquer tentativa amorosa.
O Senhor Serafim também ajudava, através dos serviços que prestava como curandeiro. Para mim, que em criança vivia por perto, ele era um homem ponderado, muito experiente e muito respeitado. Dava gosto, ouvi-lo contar as suas histórias incríveis, mesmo quando nos faziam perder o sono. Com ele, ficávamos crentes em benzeduras, rezas, espíritos, maleitas e bruxedos.
Recordo, mais tarde, já moço, ter levado à letra uma regra sagrada:
- Quando aparecer uma “coisa ruim”, não se pode recuar e mudar de caminho, porque a “coisa ruim” volta a aparecer.
E sempre que eu passava a altas horas, por um dos dois caminhos que ligavam ao centro da vila, ambos interrompidos por locais escuros e medonhos, vinha-me à memória aquela história que ele contava, do caixão iluminado por velas, a atrancar o caminho de tal forma, que ele teve que passar por cima das silvas e que ficara todo arranhado.
Pois eu, um dia, ou melhor, numa noite, já depois de ter passado as Alminhas dos Três Caminhos, sempre iluminada por uma lamparina de azeite, quando entrei na zona escura, entre o pinhal do Monte de Souto, comecei a ouvir uma voz cavernosa que pausadamente repetia:
- Se veeennns porrrr beeemm,….aaannnda!!!
Instintivamente, quase fiquei estático. De repente, não sabia que fazer. Apetecia-me ir para trás e fugir pelo caminho da Carreira Funda mas, logo me veio à cabeça a profecia do velho Serafim. Não podia fugir.
As pernas pareciam andar por si e nem as sentia poisar o chão, os olhos arregalados sem verem nada, o couro cabeludo parecia encortiçado, o cabelo ficou encrespado e no cu não cabia um feijão fradinho. Parecia um autómato em direcção ao abismo. E a voz voltava:
- Se veeennns porrrr beeemm,…. aaannnda!!!
Já perto, esperava o pior. Ao passar de lado, noto os contornos de um indivíduo encostado a uma pequena ribanceira. Foi então que ouvi, agora em voz baixa e em jeito de resmungão:
- Pelo meeennos, a salvaçããoo,dááá-se!
Sem parar, e já uns passos à frente, respondi:
- Então, boa noite.
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Pobres entre os mais pobres, beneficiavam da entreajuda dos vizinhos e também da caridade do senhorio.
Ao aproximar-se do pequeno largo, a Felismina disse:
- D. Joaquina, por favor, vá andando que eu vou levar o Jeremias à minha sobrinha e já sigo.
Momentos depois, ouvia-se a Conceição:
- Fique descansada, o Jeremias fica bem. Sabe que não precisava de me dar nada. Que Deus lhe pague, tia, porque você também bem precisa. Olhe que tem de se poupar porque isso de ir de carrego a Fátima tantas vezes no ano, não pode aguentar sempre.
- Eu sei, rapariga – respondeu a tia – logo que o Jeremias vá trabalhar, nunca mais faço isto. Que Deus me perdoe, mas já estou farta de Fátima até aos cabelos.
Poucos metros ao lado, entre umas divisórias de madeira, ouvia-se o martelar do sapateiro Neca da Fonte, ao mesmo tempo que esticava com a turquês o cabedal sobre a forma (molde) de madeira e o ia pregando progressivamente. Ele, vizinho de porta com porta, sabia tudo que se passava naquela “ilha”. Compreendia a devoção da Conceição, mas não deixava de exprimir a sua opinião de descrença nos exageros da religião ou nas suas acentuadas contradições. Apesar de analfabeto, dizia coisas que me pareciam sábias. Foi dele que ouvi dizer que Deus, para ser entendido por todos, somente precisava de nos ensinar a diferenciar a prática do bem ou do mal. E que isso era muito simples. Caso contrário, a prática do bem não pode estar condicionada a muitos estudos ou a opulências materiais. Também dizia que os simples ou pobres, sabiam bem distinguir o bem do mal e que os outros, os do poder e do saber, de tudo eram capazes para se valorizarem e inocentarem.
Ele gostava muito de se afirmar através dessas suas certezas. Quase todos os dias, erguia a voz para que se ouvisse dizer este poema, de autor desconhecido:
Levando uma criança pela mão
Entrava uma senhora na igreja
Onde foi rezar com devoção
Só o reino de Deus, ela deseja.
Sentado à porta estava
Um pobre cego que lhe pediu esmola p’ra comer.
E ela respondeu com desprezo:
- Perdoai-me Senhor, não pode ser.
Depois de rezar se confessou
E numa caixinha foi deitar
Dinheiro que da bolsinha tirou.
Ao ver o gesto dela, seu filhinho
Dizia para a mãe em voz baixa:
- Porque não deste esmola ao ceguinho,
E foste deitá-la naquela caixa?
É para azeite, filho, aqueles cobres
Para iluminar nosso Senhor
Antes dar a Deus, do que dar aos pobres
Foi o que disse há pouco o bom prior.
- Mãezinha, no prior não acredito,
Dizia o garotinho com desdém
- Dar esmola ao ceguinho é mais bonito
Porque o ceguinho tem fome, e Deus não tem.
Sempre mantive algum relacionamento com o Jeremias. Convivemos em criança quando vinha para casa da tia, a Soramestra e, mais tarde, através do grupo da JOC. Posteriormente, pouco tempo depois da chegada da Guiné, encontrei-o num velório. Falámos de várias coisas, especialmente da Guiné e dos tempos de criança. Da Guiné, salientava as Operações efectuadas na zona norte, onde sofrera várias emboscadas. Quase nos encontrámos naquela zona, porque veio pouco tempo antes de eu lá chegar.
Sobre os tempos de criança, passados comigo, lá na Estrada Real, ele valorizava imenso aqueles dias de brincadeira. Lembrou-me daquela história da D. Guidinha, mãe da D. Juliana e avó do Padre Sebastião, quando trouxe para junto do seu portão, uma giga de maçãs podres e nos chamou:
- Canalhada, vinde aqui às maçãs!
Corremos para ela, cheios de entusiasmo e quando estávamos ao seu redor, ela atirou as maças para o chão e desatou a rir às gargalhadas.
Os miúdos atropelavam-se a apanhar as maças. Algumas delas ficavam enfiadas nos dedos, todas esborrachadas.
E como me recusei àquele espectáculo, o Jeremias lembrou que, a partir dali, passámos a ir directa e perigosamente às árvores, “roubar” a melhor fruta dos Margaridos.
O Jeremias quase não se relacionava com a mãe. Nem sabia quem era o pai. Ele era fruto de um descuido profissional da mãe, prostituta. Ela perdera cedo a virgindade e cedo se dedicara a essa actividade. Fugiu para o Porto, onde era vista amiúde na zona do Cimo de Vila, precisamente onde chegavam os autocarros da aldeia. Aliás, ela fazia questão de ter muita “clientela” da sua terra natal.
Contrariamente ao que seria espectável, o Jeremias era rapaz humilde, cordato, crente e simpático. Logo que fez a 4.ª classe foi trabalhar para uma fábrica de calçado, onde se manteve fielmente até à reforma. Ajudou, exemplarmente, a avó que o criou, enquanto foi viva. Ela faleceu quando ele estava na Guiné.
Logo que chegou, casou com a namorada que o esperou durante esse tempo de guerra. Ambos, são fervorosos católicos praticantes. Todos os anos vão a Fátima, a pé, no cumprimento da promessa que fizeram juntos, antes de ele partir para a Guiné. Têm dois filhos e três netos a quem têm dedicado toda a sua vida.
Silva da Cart 1689
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Nota do editor
Último poste da série de 9 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15836: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (22): O “Galã de Nhacra” e “Conquistador de Guimarães”