quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17782: Historiografia da presença portuguesa em África (91): 1ª Exposição Colonial Portuguesa, Porto, 1934: parte do seu sucesso foi devido à Rosinha Balanta, 'exposta ao vivo', e ao seu fotógrafo, o portuense Domingos Alvão (1872-1946)


Capa da "Civilização: grande magazine mensal", Porto, 1934. 
Coleção de Mário Beja Santos (2017) . 
[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Texto baseado em alguns comentários ao poste P17775 (*), da autoria do nosso editor Luís Graça e do nosso amigo Cherno Baldé (que vive em Bissau):

1. O nosso amigo, camarada e colaborador permanente do blogue, Mário Beja Santos, refere-se ao 'escândalo' da balanta Rosinha, de peito generoso à mostra na capa das revistas da época por ocasião da 1.ª Exposição Colonial Portugal, no Porto, em 1934... 

Estamos a falar de há mais de 70 anos, num época cheia de contradições e ameaças à paz mundial, com o triunfo do nazifascismo na Europa e da ideologia da superioridade da "raça ariana"... mas também do triunfo político e ideológico, entre nós, do Estado Novo que vai encetar um processo de 'recolonização' tardia dos nossos territórios de "além-mar" em África e na Ásia...

Curioso que há leitores nossos, na Guiné-Bissau, que ainda hoje se indignam de verem, no nosso blogue, as "suas mães" de peito ao léu... E não são leitores quaisquer, alguns são filhos de "pai tuga" e mãe guineense, vulgo "filhos do vento"... Já nos chegaram ecos, ao nosso blogue, dessas reações que não são só de pudor... E depois temos os/as cientistas sociais com o seu discurso do "cientificamente correto"...

A verdade é que não usávamos, nas paredes das nossas casernas ou abrigos, pósteres de mulheres africanas, nuas... As mulheres nuas, ou semi-vestidas, em poses eróticas, eram da "playboy", louras, de olhos azuis... Eram elas que nos ajudavam a climatizar os nossos pesadelos... E continuam a ser elas (e eles), mais louras ou morenas, mas sempre "sexies", que ajudam o capitalismo a vender as merdas que produzimos e consumimos, dos carros às "férias de sonhos" em "ilhas paradisíacas"... Será que alguma coisa mudou desde o "pecado original"?

Pode-se perguntar qual a fronteira entre o "nu etnográfico" e o "nu pornográfico"?... Também é verdade que fotos como a da Rosinha Balantas eram usadas, com alguma "ousadia", nas nossas revistas e sobretudo nas coleções de fotografia colonial...

Eram muito populares, entre os machos lusitanos, as fotos da coleção com raparigas guineenses em poses bastante ousadas para a época: nuas ou semi-nuas... Quem não comprou e não mandou, pelo correio, para a família e amigos alguns destes postais "ousados" dos anos 60?...

O "nu feminino" (mas não o "nu masculino"!)  era visto como um dos traços "exóticos" e "apetecíveis" da... Guiné Portuguesa... Ora,  eu nunca vi nenhum "nu minhoto” para ilustrar a grandeza e a diversidade do Portugal plurirracial e pluricontinental... Hoje esses "postais ilustrados" (muitos deles já aqui reproduzidos, dado o seu interesse, digamos, documental) seriam, no mínimo, "politicamente incorretos"...

Hoje reproduzir um capa como a de 1934, da revista "Civilização" (dirigida pelo escritor Ferreira de Castro, o autor de "A Selva", que chegou a ser nobilizável...) começa a ser objeto de desconforto e até de censura social... A fronteira entre o racismo, a xenofobia, a misoginia, a homofobia, o machismo começa a ser estreita... correndo o risco da nossa geração, a que fez a guerra colonial,  de ser acusada por outros "ismos" de... racista, xenófoba, misógina, homofóbica, machista...

2. Contrapõe o Cherno Baldé, o nosso perito em Bissau (em questões étnico-linguísticas, mas também éticas, religiosas, históricas, antropológicas...):

“Porque é que o ‘nu feminino era visto como um dos tracços exóticos ... da Guiné Portuguesa e não das outras colónias, Angola e Moçambique, por exemplo? Ou as "Bajudas" da Guiné teriam peitos mais salientes/atraentes que todos os outros países, incluindo Portugal, como tu bem observas?”

E acrescenta o dr. Cherno Baldé, nosso amigo e irmãozinho:

“Eu sou daquela época e confirmo que, na altura e para as comunidades da época, não constituía escândalo deixar as meninas andarem de peito livre sem qualquer preconceito. Os preconceitos vieram depois com a invenção do conceito de ´civilização’, ou seja a mania de querer mostrar ‘civilização’ da parte de quem pretendia deter alguma superioridade racial e social, como se andar vestido, já de per si, significava fazer parte da classe dos ‘civilizados’.

Hoje, porém, sabemos que o conceito é completamente falso, pois senão as mulheres talibãs e outras fundamentalistas da mesma religião, com as suas burcas, seriam as mais civilizadas de todas”.

3. Eu respondi nestes termos, ao sabor das teclas:

Querido amigo e irmãozinho Cherno Baldé (que eu não cheguei a conhecer em Contuboel, ainda “djubi’, em junho/julho de 1961):

Não podemos estar mais de acordo!... O que é a ‘civilização’? Não é (ou não devia ser) pelas diferenças ‘acidentais’ (minissaia ou burca, por exemplo, no que diz respeito ao vestuário feminino...) que os povos se distinguem, diferenciam, se separam, e até se combatem até à morte... Muito menos, pelo ‘fenótipo’...

A ‘Rosinha Balanta’ devia ser, espero, um jóia de miúda, que terá casado e terá sido mãe e avó, como muitas outras mulheres, as nossas mães e avós, em Portugal, na Guiné, em todo o mundo... Não era fácil para uma rapariga, balanta, animista (ou cristã, a avaliar pelo fio com crucifico que usa ao peito, a viver num país colonizado, nos anos 30 do século passado, sobreviver e sobretudo viver com um mínimo de dignidade, saúde, paz... Quero imaginar que teria sido feliz... Espero que tenha sido feliz... Para já "conheceu mundo": teve a sorte de conhecer Portugal e o Porto, em 1934!... E de fazer parte do "jardim zoológico humano" do palácio de Cristal, como alguém lhe chamou, com crueldade (***)...

A Rosinha teria hoje 100 anos e seria um pouco mais velha do que a minha saudosa mãe, Maria da Graça (1922-2014)!...  Sabemos quem foi o seu famoso fotógrafo, o Domingos Alvão... Pode discutir-se é um exemplo de nu 'etnográfico', 'artístico', 'colonialista', 'pornográfico' ...

É verdade que  em Portugal, na época, nem as camponesas do Minho nem as ceifeiras do Alentejo andavam de peito ao léu... Hoje também não andam, porque já não existem nem camponesas do Minho nem ceifeiras do Alentejo, a não ser nos museus do traje e nos ranchos folclóricos...

Em contrapartida, já vemos hoje as jovens mães, nos transportes públicos,  nas esplanadas, na rua... a puxar pela mama, discretamente, naturalmente, para amamentar os seus bebés... Mas a mama ao léu não dá jeito (e não é "socialmente tolerada"), a não ser em certas épocas do ano, em certos sítios (como a praia...). O uso da "mama ao léu" tem regras: por exemplo, na arte, no cinema, na indústria da noite, no lazer, e até nas manifestações políticas... contra o poder falocrático.

Cherno, tu, que és um observador de grande argúcia, pões uma questão, deveras desafiante, provocatoriamente desafiante, aos nossos leitores: por que é que o ‘nu feminino’ não era também (e tão bem...) ‘explorado’ pelos antropólogos, artistas, fotógrafos caçadores de ‘exotismo’, agências de viagens, administradores coloniais, angariadores de mão de obra para as colónias, militares, comerciantes e até ‘missionários católicos’ (que eram os melhores clientes das fábricas de ‘soutiens’)... das outras colónias, Angola, Moçambique, São Tomé e até Cabo Verde?...

Cabo Verde (mas também São Tomé e Príncipe) era um caso à parte dada a tradicional influência da igreja católica românica, e sobretudo a sua origem, como sociedade ‘escravocrata’...

De Moçambique sei pouco, nunca lá fui... De Angola, só lá comecei a lá ir a partir de 2003 e confesso que sou ignorante do seu passado, marcado pela liderança de mulheres fortes como a rainha Ana de Sousa, ou rainha Ginga (c. 1582-1663).

Da Guiné, teu país, meu irmãozinho e amigo, só posso dizer que tinha (e tem) mulheres lindas!... A beleza (feminina e masculina) não é monopólio de ninguém... Mas há ‘estereótipos de beleza’ de base racista... e a que o colonialismo (europeu) e o nazifascismo não são alheios.

Descobri (não sabia…) que a ‘Civilização: grande magazine mensal’ foi uma publicação periódica, editada no Porto entre 1928 e 1937. Foi fundada pelos escritores Ferreira de Castro (1898-1974) e Campos Monteiro (1876-1933). O editor era a Livraria Civilização. A Rosinha Balanta vem numa das capas da revista, em 1934, a propósito da 1.ª Exposição Colonial Portuguesa…

4. Há um artigo, interessante, escrito em português do Brasil sobre o ‘papel’ da Rosinha, a bajuda balanta, em carne e osso, que esteve ‘exposta’, na 1.ª Exposição Colonial Portuguesa, no Porto, em 1934... e que, sem querer, terá sido uma das causas do grande sucesso da exposição, ganhando claramente os favores do público, a par do menino Augusto... (A exposição terá sido vista por um milhão de pessoas; mais de 3 centenas de 'nativos', homens, mulheres e crianças,  vieram expressamente das colónias, a pedido do ministro Armindo Monteiro (1895-1955), para dar "corpo e alma" à exposição que, mais do que um mero divertimento popular, tinha um claro propósito propagandístico.)

(Vd, Mateus Silva Skolaude - Exotismo e Sensualidade Africana: Raça, Nação e Império na 1.ª Exposição Colonial Portuguesa de 1934. in: Nossa África: ensino e pesquisa / Organizadores Simoni Mendes de Paula e Sílvio Marcus de Souza Correa. São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil: Oikos, 2016, 228 p.; E-book, pp. 131/145. ISBN 978-85-7843-614-8. Disponível aqui em formato pdf.)

Eis aqui alguns excertos, com a devida vénia:

(...) Para tanto, foi no jardim do Palácio de Cristal [, no Porto,] a grande atração do evento, tendo em vista o objetivo de recriar os territórios ultramarinos em sua mais completa diversidade. Era indispensável traduzir o cotidiano dos povos o mais próximo da realidade, desde a floresta tropical, o deserto, a alimentação e as aldeias típicas, ou seja, o objetivo consistia em oferecer ao público, a sensação de viajar por todo o império português.

Neste passeio, as representações etnográficas acabaram por ser as mais populares, num total de 324 nativos expostos, entre mulheres, homens e também crianças. (...)

Diferentemente de um museu, a exposição incorporava um universo à parte, considerando as particularidades de cheiros, sons e imagens em movimento. Neste sentido, os 324 nativos, desde a chegada ao Porto, foram cuidadosamente observados por professores e estudantes universitários, sob a responsabilidade dos antropólogos da Universidade do Porto. A partir das experiências com os indígenas, os cientistas chegariam a conclusões com respeito a usos e costumes, a maior ou menor aptidão em trabalhos manuais, assim como, às suas capacidades intelectuais. (...)

Estes nativos eram evocados como sendo todos portugueses (...).

E continua o autor, Mateus Silva Skolaude:

(…) Não por acaso, a 1.ª ECP teve um fotografo oficial, o Sr. Domingos Alvão (1872-1946), proprietário da Casa Alvão na cidade do Porto e que publicou um “Álbum fotográfico da 1.ª Exposição Colonial Portuguesa” com 101 clichés fotográficos, editado no Porto pela Litografia Nacional. (…) 


 Os grupos étnicos da Guiné foram os que mais receberam atenção por parte da imprensa e do público de forma geral. Também foram os mais fotografados pela câmara oficial de Domingos Alvão que procurou realçar o caráter físico destas populações indígenas. (...)

(...) Para além da exotização imposta pelos organizadores e propagandistas da exposição, era necessário também criar laços de afetividade na população metropolitana com os povos oriundos das colônias. Para que isto efectivamente tivesse algum resultado prático, utilizou-se a estratégia de individualizar alguns nativos, como forma de torná-los verdadeiros ícones da exposição.

(...) Esse foi o caso do menino Augusto [, bijagó,] (***) e da jovem Rosinha, da etnia balanta, que foi exposta pelos organizadores da exposição, tendo em vista os anseios da política estado-novista que buscava despertar, na subjectividade masculina, o desafio de sujeitos dispostos a migrarem para os territórios ultramarinos do império. A estratégia foi bem-sucedida. Rosinha e as mulheres balantas não só atraíram um grande público, como também constituíam uma “sensualidade” capaz de mobilizar, na memória do passado, o futuro da política imperial.

Concluindo: parte do sucesso da exposição é mérito da Rosinha e do seu fotógrafo (**):

(...) Naquela altura, circulou um cartão postal cuja fotografia original se encontra no álbum fotográfico de Alvão. Sua legenda afirmava o papel atribuído a Rosinha: “O Sucesso da Exposição de 1934”. Este sentimento foi amplamente partilhado pelos visitantes. Rosinha tornou-se o “objeto” mais fotografado, analisado e discutido da exposição. (...) (****)
______________

(**) Último poste da série > 19 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17780: Historiografia da presença portuguesa em África (90): a nossa conhecida NOSOCO - Nouvelle Société Commerciale Africaine, uma das patrocinadoras da Exposição Colonial Internacional de Paris, em 1931

(***)   Vd. poste de 9 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10916: Postais ilustrados (19): O menino, Augusto,  que fumava cigarros "White Horse" (Beja Santos)

(...) Em 1934, o regime consagrado pela Constituição de 1933 queria dar provas de que o Império era muito mais do que o imaginário, era obra de missionação, havia para ali recursos a explorar para o engrandecimento da Nação. O capitão Henrique Galvão recebeu instruções para que a encenação ultrapassasse tudo o que até agora fora mostrando dos diferentes povos no vasto Império. E ele não se poupou a esforços. 

O problema foi a moral pública, a reclamar daquelas bajudas com maminhas ao léu, aqueles Bijagós despudorados com saias de ráfia, praticamente nus, e de olhar tão inocente. Faziam-se excursões, rezam as notícias publicadas nos jornais da época, para ver aqueles povos bárbaros, as crianças atiravam pedradas, a polícia tinha que agir, o ministro das Colónias, Armindo Monteiro, não gostou das críticas, ordenou ao capitão Henrique Galvão que acabasse com os desmandos, quem desrespeitasse os guinéus ia para a choça. 

O Augusto devia ser uma criança muito dócil, os pais até devem ter achado graça ver o menino a fumar, reproduzido em bilhete-postal. Não vale a pena fazer comentários, fica o registo de um tratamento primitivo. Em muitos domínios, a História não dorme. (...)


(****) Vd. também o artigo da investigadora do ICS-UL [Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa}, Filipa Lowndes Vicente: "Rosita" e o império como objecto de desejo. Público,. 25/8/2013

(...) "No contexto das discriminações raciais da Europa da década de 1930, como já no século XIX, o corpo da mulher negra podia ser exposto, legitimamente, de muitas formas, num claro contraste com o corpo nu da mulher branca, remetido para as fotografias transgressivas de uma pornografia para consumo privado masculino. O corpo nu da mulher negra estava disponível visualmente, porque imperava uma ideologia legitimada por um racismo científico que o inferiorizava, e que lhe retirava voz e poder. Os lugares desta exposição legítima do corpo eram inúmeros: nas exposições universais e coloniais, nos postais fotográficos que jogavam com a ambiguidade entre a legitimidade científica da antropologia e o erotismo; ou em imagens de jornal a ilustrar os costumes de povos "estranhos e distantes". (...)

Guiné 61/74 - P17781: Os nossos seres, saberes e lazeres (230): De Manchester (em luto) para Leeds, passando pelo Yorkshire profundo (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 19 de Junho de 2017:

Queridos amigos,
Foram 19 dias e peras. Aterrou-se e só se falava do ataque terrorista na arena de Manchester.
Os primeiros dias foram bem acalorados, seguiu-se para o Sul da Escócia e veio a chuva intermitente, felizmente que o viandante estava numa casa aprazível, bem ajardinada, deu vazão a dois livros de dimensão gigante que levara para fazer recensões no blogue. Divertiu-se à farta, às vezes metia-se no autocarro e, contrariando os pareceres dos agentes turísticos locais, foi parar a aldeolas ditas sem interesse, pura mentira, há sempre um chafariz, uma porta, um jardim encantado, até uma salsicharia onde se encontrou um espaço com vendas filantrópicas para angariar fundos para crianças muito doentes e com pais de modestos recursos.
Como verão, e espero que não haja ilusões nesse sentido, é o viandante que faz a viagem.

Um abraço do
Mário


De Manchester (em luto) para Leeds, passando pelo Yorkshire profundo (1)

Beja Santos

Nunca o viandante fizera férias tão prolongadas em país estrangeiro, tudo desenhado à régua, o rigorismo das despesas assim o recomenda, tanto por pernoita, tanto por transportes aéreos e terrestres, qual o montante para vitualhas e qual a porção de excedente para extravagâncias, sabe-se que é grande a curiosidade por visitar lojas de instituições de benemerência (vulgo charity shops), onde o viandante procura calçado e diferente vestuário e versátil quinquilharia. Acontece que há muitos museus com entrada gratuita, mas as casas senhoriais e qualquer tipo de espetáculo é de 10 libras para cima.
Começa-se por Manchester, logo no dia seguinte a uma grande tragédia que enlutou o Reino Unido, foram dias sem parar a exibir nos ecrãs inocentes que morreram num ataque terrorista enquanto ouviam a cantora pop Ariana Grande. Ora por coincidência o Manchester United foi vencer na final da Liga Europa o Ajax, e esta fotografia circulou por meio mundo, o ponta-de-lança Paul Pogba dedicou esta vitória a um familiar e às vítimas do ataque. Se uma imagem vale por mil palavras, o que pensar desta imagem?


O primeiro dia efetivo de cirandagem tem os céus plúmbeos, em Yorkshire, onde se encontra o viandante, está tudo em verdor florestal, num país onde chove que se farta não é enigma. Para tirar imagem nestes dias chochos o melhor é o viandante socorrer-se da autenticidade de uma imagem em bilhete-postal, aqui ficam as Dales de Yorkshire, vales formosos, tudo irrepreensivelmente tratado, milénios a retirar pedra para que os solos ficassem úberes, como são, há ali pastagens eternas, as Dales embrincam com as charnecas, o que aqui se descreve é conhecido por todos aqueles que leram Os Montes de Vendavais, a obra de consagração de Emily Brontё. É uma sensação voluptuosa viajar por estas estradas secundárias até desembarcar na afadigada Leeds, hoje o segundo centro financeiro do Reino Unido.


O viandante pretenda começar o dia a visitar o centro de arte de Leeds, enfim, cumprimentar pelo menos Paula Rego e Francis Bacon, deu com o nariz na porta, o museu está em obras até Outubro. Aqui se exibe de Paula Rego uma tela de 1993, The Artist in Her Studio, há para ali temáticas muito comuns e facilmente muito identificáveis, logo em primeiro plano as boas couves portuguesas e um burro, animal que a artista nunca esqueceu das férias passadas em família.


Devido a esta alteração, prossegue a viagem na City Square, vai dar-se uma espreitadela à gare ferroviária de Leeds, recentemente restaurada. Tiveram cuidado de manter elementos Arte Deco logo na entrada, que prazer para os olhos ver como há cerca de 75 anos havia um sentido apurado para uma entrada palaciana de caráter público com uma bem doseada iluminação, que continua na vanguarda do bom design.


Daqui parte-se para o City Square, a praça tem magnificência, a estátua do Príncipe Negro, um dos ícones da história da Inglaterra, ocupa lugar central. Há belas esculturas, reteve-se a de James Watt, um senhor para com quem temos uma dívida eterna por ter magicado a máquina a vapor.



Não se pode entrar no centro de arte, mas o instituto Henry Moore está disponível, tem sempre belas exposições à nossa espera. Saudou-se o genial escultor com esta imagem e tomou-se a decisão de visitar um esplêndido edifício vitoriano, ali ao lado, é ali que funciona a biblioteca. Convém recordar que naquelas décadas ascensionais da industrialização do país e do nascimento do império, desenvolveu-se por toda a parte um fenómeno conhecido por orgulho cívico: qualquer cidade, mesmo de menor dimensão, teria de ter uma casa de música, se possível uma ópera, biblioteca, amplos jardins, transportes ferroviários, bairros para gente humilde. Falando em bibliotecas, deviam apresentar-se como palácios, locais de veneração da cultura.


Sai-se da biblioteca para flanar na grande artéria comercial, ali se destaca a galeria Vitória, é uma artéria cheia de requinte onde os retalhistas se socorrem hoje das boas artes do embelezamento das vitrinas. Vejam lá se esta montra pejada de máquinas de costura de um estabelecimento de roupas não é um achado.




Este local dá pelo nome de The Corn Exchange, foi em tempos áureos um mercado de cereais, hoje é um centro comercial. Enquanto por aqui se cirandava, o viandante deu com uma placa de memória por todos aqueles que aqui trabalhavam e que tombaram na guerra. Os britânicos são assim, cuidam de recordar que houve um sacrifício imenso em vários continentes, nos mares e nos céus, e que cada local do país deu o seu sangue heroico. São valores assim que ajudam a compreender o transcendente das culturas e das civilizações.


Mais uma vagabundagem antes do viandante se despedir de Leeds. Ele veio aqui pela primeira vez, há alguns anos atrás, à procura de um fenómeno de reabilitação dos antigos armazéns hoje transformados em residências, arquitetos de muitas proveniências vêm aqui estudar como é possível reabilitar zonas de armazéns portuários e reconvertê-los em bairros aprazíveis. Também o viandante já viu em Bristol algo de semelhante, pensa sempre que aquelas regiões ali do Poço do Bispo e Xabregas bem podiam ganhar outra vida, tornar a Lisboa Oriental muitíssimo mais aprazível e vistosa, como merece. Foi um belo dia em Leeds, amanhã, em franca companhia, parte-se para o Sul da Escócia, Moffat.

(Continua)
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Nota do editor

Último posta da série de 13 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17762: Os nossos seres, saberes e lazeres (229): Aquele último dia em Bruxelas, já saudoso pelo regresso (9) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17780: Historiografia da presença portuguesa em África (90): a nossa conhecida NOSOCO - Nouvelle Société Commerciale Africaine, uma das patrocinadoras da Exposição Colonial Internacional de Paris, em 1931



Cartaz da Exposição Colonial Internacional de Paris, 1931, onde Portugal esteve representado (*).  Foi um retubambante sucesso, e uma manifestação da glória imperial gaulesa, cun espaço expositivo de  110 hectares / 220 campos de futebol, em Vincennes, Paris, Três anos depois, Portugal quis também reforçar, mais para consumo interno, a mensagem propagandística de que não éramos um país pequeno (Henrique Galvão dixit...).

O cartaz promocional da exposição de Paris foi uma oferta da nossa conhecida NOSOCO - Nouvelle Société Commerciale Africaine [NOva SOciedade COmercial africana], com delegações em Senegal, Casamance e Guiné Portuguesa.

Foto: © Mário Beja Santos (2017) . Todos os direitos reservado. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camarads da Guiné].


Guiné > Bissalanca > c. 1958/59 > Fotografia tirada na despedida do gerente da NOSOCO, Monsieur Boris, que nesse dia regressava a Paris (está ao centro de fato e gravata) [nº 1, a amarelo]. O avião era, naturalmente, da Air France [5].

O João Rosa [2], o guarda-livros, [e que foi um dos fundadores do MLG - Movimento de Libertação da Guiné e um dos primeiros contactos políticos de Amílcar Cabral, tendo feito reuniões clandestinas, na sua casa, com o próprio Amílcar Cabral e outros nacionalistas guineenses;  morreria no hospital,, e 1961, na sequência da sua prisão e tortura pela PIDE, em 1961, segundo informação do Leopoldo Amado], está na segunda fila à direita ; à sua frente, o 2º da direita é o Toi Cabral [António da Luz Cabral, irmão de Amílcar Cabral] [3]. Os restantes elementos da foto são alguns (quase todos) dos empregados do escritório da NOSOCO em Bissau, entre eles, supomos, o Mário Dias [que não conseguimos ainda identificar, e a quem já pedimos para "validar" esta legendagem...].

O quatro elemento conhecido do grupo [4] é, a contar da esquerda, o Armando Duarte Lopes, o pai do nosso amigo Nelson Herbert, e velha glória do futebol guineense... (Festeve em 1943 no Mindelo, sua terra natal, integrado numa força expedicionária, vinda do continente, que veio reforçar o sistema de defesa da Ilha de São Vicente durante a II Guerra Mundial; viveu depois, trabalhou e casou em Bissau. Conhecido como o Armando 'Bufallo Bill', seu nome de guerra, foi o melhor de futebolista da UDIB, e do Benfica de Bissau, tendo sido nternacional pela selecção da antiga Guiné Portuguesa..).

Recorde-se que o apelido Herbert, no caso do nosso amigo Nelson, antigo jornalista na VOA (Voz da América), vem do  avô materno francês, que foi o representante local, na Guiné, da CFAO - Compagnie Française de l'Afrique Occidentale, fundada em 1887, e  que, com a NOSOCO e  a SCOA,  foi um das peças importantes do do sistema colonial francês.

Foto (e legenda): © Mário Dias (2006) . Todos os direitos reservado. [Edião e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. A NOSOCO eram uma das empresas comerciais, estrangeiras, e nomeadamente de capital francês, que operavam na Guiné. A sua presença já era efetiva em Bissau, desde pelo menos 1915.  (A partir de 1930, passa a fazer parte da multinacional Unilever.)

Outras casas comerciais francesas poderosas era,: (i) a Companhia Francesa da África Ocidental (CFAO); e (ii) a Sociedade Comercial do Oeste Africano (SCOA). Nesta última onde trabalhou o Elisée Turpin, co-fundador do PAIGC, e o Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (membro da nossa Tabanca Grande). A SCOA foi fundada em 1907 e tinha sede em Paris, e sucursal em Manchester,  agências em Nova Iorque e Casablanca... Objeto da actividade económica: "toutes opérations commerciales, industrielles et financières en Afrique"...

Embora sendo um "filho da Guiné",  Cadogo Pai, nascido em 1929,  foi admitido como de auxiliar de escriturário, em agosto de 1946, na firma francesa, SCOA – Sociedade Comercial do Oeste Africano (proprietária do edifício onde está hoje a Pensão Berta), com várias lojas pela Guiné (Bissau, Bolama, Bissorã…). Foi transferido para Bolama no final do ano. Em 1949, nasceria aí o seu filho, Carlos Gomes Júnior, futuro empresário, dirigente do PAIGC e primeiro ministro. Em 1951 é encarregado, na mesma firma e sente a pressão da concorrência dos encarregados (europeus) das outras casas, e nomeadamente portuguesas: Gouveia, Ultramarina, Pinto Grande, Ernesto Gonçalves de Carvalho, etc.

Nas suas memórias, Cadogo Pai conta que é por essa altura, na 1ª metade da década de 1950, que a SCOA e as outras empresas francesas, NOSOCO e CFAO, começam a sentir restrições na sua atividade comercial, dada a posição monopolista da Casa Gouveia: tendo vocação exportadora, eram "obrigadas a vender os seus produtos à Gouveia" (sic)... Na realidade, a CUF (, através da Casa Gouveia, ) detinha o monopólio da exportação do amendoim da Guiné, até à independência da Guiné-Bissau. (**)

É nessa altura que o Cadogo Pai (que eu conheci pessoalmente em Bissau, em março de 2008)  começa a ponderar a hipótese da demissão e começar a trabalhar por conta própria. O seu chefe, francês, não apoiou logo a ideia; em contrapartida, ter-lhe-á proposto... "uma transferência para Paris, dada a confiança que ganh[ara] em toda a organização, a exemplo de muitos colegas que foram transferidos na altura para Ziguinchor, Dakar, etc." E mais: tê-lo-á avisado que "o vento da independência iniciada nos países vizinhos (Conakry, Senegal, etc.) chegaria à Guiné-Bissau", pelo que , se ficasse na Guiné, iria passar mal, como veio a acontecer... 

O Cadogo Pai irá estabelecer-se  por conta própria em 5 de setembro de 1955. Em contrapartida, não sabemos nem quando nem como os franceses cessaram a sua actividade económica na Guiné... Presumivelmente com a guerra e por causa da guerra, e a consequente quebra (brutal) da produção de oleaginosas, e nomeadamente da "mancarra" (**)


Anúncio comercial reproduzido, com a devida vénia, de Turismo - Revista de Arte, Paisagem e Costumes Portugueses, jan/fev 1956, ano XVIII, 2ª série, nº 2. Na foto, o moderno edifício da loja da NOSOCO, em Bissau.

Numa lista, de 18 pp.,  com  mais de 150 empresas coloniais da África Ocidental Francesa (AOF), em 1925, vem a seguinte informação  sobre a NOSOCO, sociedade anónima com um capital de 8 milhões de francos. Dedicava-se à importação e exportação. Na Guiné, tinha sucursais no Cacheu, Bissau e Bolama:

"NOUVELLE SOCIÉTÉ COMMERCIALE AFRICAINE [NOSOCO], 9, cours de Gourgue,
Bordeaux (Gironde). T. 852. Codes: A.B.C. 5e éd., Lieber. Soc. an. au cap. de 8.000.000
de fr. Conseil d'adm.: Prés.: M. Pascal Buhan; MM. Gaston Thubé fils, Amédée Thubé,
adm. Direction: 2, av. de Launay, Nantes (Loire-Inf.). T. 11-49. Ad. t. Nosoco-Nantes.
Comptoirs: Sénégal: Rufisque, Kaolack, Fondiougne; Casamance: Ziguinchor; Bissao
[Bissau]: Cacheo, Bissao, Boulam. Importation et exportation au Sénégal, en Casamance et en Guinée. (2-38657)." 

Vinte e seis anos depois, no anuário de 1951, das 441 empresas coloniais francesas da AOF  + Togo (78 pp.), a situação da NOSOCO já era outra: (i) faz  parte do grupo Unilever (tal como mais outras quatro); (ii) tem sede em Dacar; (iii) continua a ser uma "sociedade anónima"; (iv) o capital social é de 220 milhões de francos CFA; (v) na Guiné Portuguesa (sic), está em Bissau, Bolama, Farim e Bafatá: (v) exporta matérias-primas, importa produtos manufaturados, como qualquer boa empresa colonialista...

"244 — Nouvelle Société commerciale africaine (NOSOCO)[Unilever],
Siège social: 131 [ou 31 ?], boulevard Pinet-Laprade, DAKAR (Sénégal)[= 204] [a mesma sede da Cie du Niger français (C.N.F.)[Unilever]
Capital. — Société anon., 220 millions de fr. C. F. A.
Objet. — Import. et export. au Sénégal, en Casamance et en Guinée portugaise.
Exp. — Arachides, palmistes, caoutchouc, cire, cuirs, gommes, etc.
Imp. — Tissus, riz, huile, sucre, conserves, quincaillerie, épicerie et toutes
marchandises.
Comptoirs. Sénégal: Dakar, Thiés, Diourbel, Fatick, Kaolack;. Foundiougne. —
Casamance: Ziguinchor, Kolda. — Guinée portugaise: Bissao, Boulame, Farim, Bafata.
Conseil. — MM. Arnaud Faure, présid. dél. M. Gérard, G. Rouzaud, Wallerston, L.
Leibosis, admin."

(Fonte: Les Entreprises Coloniales Françaises)

Fotos: © Mário Vasconcelos (2015). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Segundo dados que recolhemos na Net, a NOSOCO foi criada em 1879, no Senegal, tendo-se tornado uma das maiores empresas na área da importação /  exportação. O seu negócio principal será a exportação de oleaginosas... Na Guiné portuguesa, estava em competição com a Casa Gouveia (Grupo CUF) (como vimos, socorrendo-nos das memórias de Cadogo Pai).

A NOCOSO, sociedade anónima,  acabou por se tornar uma filial da ainda mais poderosa UAC - United Africa Company, de origem britânica que, antes da II Guerra Mundial, detinha 40% do total do comércio da África Ocidental, mas já como subsidiária da transnacional Unilever, de capital britânico e holandês. (A UAC, com a crise do capitalismo de 1929, estava à beira da banca rota, sendo então comprada pela Unilever;  seria totalmente absorvida em 1987 pela empresa-mãe, a Unilever,  deixando portanto de ter existência, de facto e de direito).

Será interessante saber que a Unilever  nasce justamente em 1930 através da fusão da Margarine Unie (fabricante holandês de margarina) e da Lever Brothers (fabricante inglês de sopas). É hoje um dos gigantes mundiais do agroalimentar, das bebidas, dos produtos de limpeza e cuidados pessoais... Os "factos" falam por si:  c. 400 marcas, c. 170 mil empregados, c. 52,7 mil milhões de euros de faturação, c. 2,5 mil milhões de clientes... (Como termo de comparação, refira-se o montante das exportações portuguesas em 2016: c. 26,3 mil milhôes de euros, segundo dados da PORDATA).

E tudo (ou quase tudo ou uma grande parte ) começou em África... com o colonialismo europeu. Em África,  que continua pobre e subdesenvolvida...(***) (LG)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de setembro de  2017 > Guiné 61/74 - P17772: Historiografia da presença portuguesa em África (88): Exposição Colonial Internacional de Paris, 1931 (1) (Mário Beja Santos)

(**) Vd. poste de 31 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15309: Historiografia da presença portuguesa em África (64): Cem pesos era "manga de patacão" para o camponês guineense, produtor de mancarra... Era por quanto venderia um saco de 100kg ao comerciante intermediário... Em finais de 1965 o governo de Lisboa garante a compra pela metrópole da totalidade da produção exportável da mancarra guineense e fixa o preço por quilo em 3$60 FOB (Free On Board)

Vd. também poste de 7 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14126: (Ex)citações (258): A prosperidade de Bafatá não se deveu tanto ao "patacão da guerra" como ao negócio da mancarra (Cherno Baldé)

(***) Último poste da série > 17 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17775: Historiografia da presença portuguesa em África (89): Exposição Colonial Portuguesa, Porto, 1934 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P17779: As memórias revividas com a visita à Guiné-Bissau, que efectuei entre os dias 30 de Março e 7 de Abril de 2017 (1): Preparação e viagem de ida (António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil)

Aeroporto Francisco Sá Carneiro (Pedras Rubras): Na hora da partida. Alguns elementos do grupo, com a bandeira da Guiné-Bissau, à nossa frente e aguardando embarque para Bissau, via Lisboa. Da esquerda para a direita: Vitorino, Cancela, Isidro, Monteiro, eu próprio e o impagável Rodrigo.

1. Começamos hoje a publicar as "Memórias Revividas" com a recente visita do nosso camarada António Acílio Azevedo[1] (ex-Cap Mil, CMDT da 1.ª CCAV/BCAV 8320/72, Bula e da CCAÇ 17, Binar, 1973/74) à Guiné-Bissau, trabalho que relata os momentos mais importantes dessa jornada de saudade àquele país irmão.


AS MINHAS MEMÓRIAS, REVIVIDAS COM A VISITA QUE EFECTUEI À GUINÉ-BISSAU ENTRE OS DIAS 30 DE MARÇO E 7 DE ABRIL DE 2017 

PORMENORES SOBRE A IDA, A ESTADIA E O REGRESSO (1)

A PREPARAÇÃO DA VIAGEM: 

Concretizando uma já antiga vontade de realizar uma visita de saudade ao território da Guiné-Bissau, onde, nos anos já longínquos de 1973 e 1974, prestei serviço militar, como Capitão Miliciano, nos destacamentos de Binar, Bula, Pete e Nhamate, localizados cerca de 50 quilómetros a norte de Bissau, numa linha quase horizontal, entre as localidades de Teixeira Pinto (actualmente Canchungo) e Bissorã, decidi, finalmente, aceitar um convite de alguns antigos colegas de armas que, comigo, fazem parte dum razoável número de antigos combatentes daquela antiga Província Ultramarina Portuguesa, da África Ocidental e habituais frequentadores dos almoços/convívios semanais de todas as quartas-feiras, que se realizam no Restaurante “Milho Rei”, sito na Rua Heróis de África, em Matosinhos, para lá ir.
Bem liderados pelo colega Dr. Eduardo Moutinho, que já se deslocou à Guiné-Bissau, pelo menos três vezes, constituímos um unido e solidário grupo de 13 elementos, que englobava os colegas Moutinho, Vitorino, Rebola, Ferreira, Marques Barbosa, Leite Rodrigues, Isidro, Monteiro, Cancela, Rodrigo, Angelino, Samouco (que embarcou em Lisboa) e eu próprio, eis-nos prontos a iniciar esta viagem, recheada de algum saudosismo e com alguma expectativa sobre aquilo que lá iríamos encontrar.

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UM POUCO DA HISTÓRIA DA ACTUAL GUINÉ-BISSAU

Bissau, é a cidade-capital do território da Guiné-Bissau, situado na costa ocidental do Continente Africano, na margem direita do estuário do Rio Geba e a uma latitude de cerca do 12º norte.

A Guiné-Bissau, com uma população que ronda os 1.600.000 habitantes, ocupa uma superfície relativamente pequena, já que com os seus 36.125 quilómetros quadrados, é apenas um pouco maior que o território da Bélgica e/ou do nosso Alentejo.

O seu território, faz fronteira com o Senegal, a norte, com a Guiné-Conakry, a leste e a sul, sendo banhada a oeste pelo Oceano Atlântico. A língua oficial é o português, embora muita gente fale crioulo, mas que não é reconhecida como língua oficial, existindo populações de muitas das povoações do interior, onde ainda se falam línguas africanas nativas.

Fazendo inicialmente parte do antigo Reino de Gabú, que persistiu até ao século XVIII, sendo no século XIX colonizada pelos portugueses, que a passaram a considerar como Colónia Portuguesa do Ultramar, sob a designação de Guiné Portuguesa.
Foi a primeira antiga colónia portuguesa, no continente africano, a ter a independência, reconhecida por Portugal, no dia 10 de Setembro de 1974.

O território da Guiné-Bissau, encontra-se actualmente dividido em nove divisões administrativas, assim constituídas:
a) Sector Autónomo de Bissau, cuja capital é Bissau:
b) Região de Bafatá, com capital em Bafatá;
c) Região de Biombo, com capital em Quinhamel;
d) Região de Bolama, com capital em Bolama;
e) Região do Cacheu, com capital no Cacheu;
f) Região de Gabú (ex-Nova Lamego), com capital em Gabú;
g) Região do Oio, com capital em Farim;
h) Região de Quinara, com capital em Buba;
i) Região de Tombali, com capital em Catió.

Em termos orográficos, o território da Guiné-Bissau, estende-se por uma área de baixa altitude, já que o seu ponto mais alto só atinge cerca de 300 metros acima do nível do mar, sendo o seu interior constituído, maioritariamente, por savanas e o litoral por planícies pantanosas.
A economia do País depende fundamentalmente do exercício da agricultura e da pesca, principalmente em áreas como a do cultivo do arroz, do recurso à pesca e à criação de gado, todas elas muito importantes para a alimentação das suas populações.
Por outro lado e na importante vertente virada para a exportação, destacam-se as áreas da produção da castanha de caju, da manga e da mancarra (amendoim) e um pouco da apanha de marisco já que o recurso à exploração de matérias-primas do seu subsolo, é praticamente inexistente.

Uma das grandes preocupações actuais das autoridades guineenses, é o controlo dos narcotraficantes que aqui encontram um ponto de transbordo de cocaína para a Europa.
A Guiné-Bissau, um dos países com o Produto Interno Bruto (PIB) mais baixos do mundo, é actualmente membro das seguintes instituições mundiais:
a) Unidade Africana;
b) Comunidade Económica de Estados da África Ocidental;
c) Da Organização para a Cooperação Islâmica;
d) Da União Latina;
e) Da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa;
f) Da Francofonia;
g) Da Zona de Paz e de Cooperação do Atlântico Sul.

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1.º DIA: DIA 30 DE MARÇO DE 2017 - A VIAGEM DE IDA

Decidida e marcada a viagem para o dia 30 de Março de 2017, iniciámo-la saindo do Aeroporto Francisco de Sá Carneiro, pelas 16,40 horas, num avião bimotor da “White Airwais”, que nos deixaria em Lisboa cerca de uma hora depois, fazendo o voo ATR 20 600.
Desembarcados deste avião, dirigimo-nos pelas instalações internas do Aeroporto General Humberto Delgado, em Lisboa, para as proximidades da porta 26, onde pelas 19,30 horas embarcarmos num avião Airbus 320-200, da Tap Air Portugal que, fazendo o voo 1496, acabaria por aterrar no Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira, em Bissau, pelas 22,50 horas locais (menos uma hora que em Portugal), sentindo nós logo depois do desembarque uma baforada quente e húmida, própria desta época do ano naquele território guineense, realidade para nós já conhecida, ainda que vivida há já cerca de 43/44 anos (1973/1974).

Após uma viagem sem qualquer turbulência, de cerca de quatro horas e dez minutos, efectuada quase toda de noite, entre Lisboa e Bissau, aterrámos no Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira, em Bissau, cerca das vinte e duas horas e cinquenta minutos (horas locais, menos uma hora que em Lisboa), com uma temperatura bastante alta, em relação àquela de onde tínhamos partido.

Foto 2 - Aeroporto de Bissau: Foto obtida da sala de recolha da bagagem do Aeroporto de Bissau, onde os colegas Leite Rodrigues, Cancela, Ferreira e eu próprio, aguardávamos os outros colegas que ainda estavam a fazer o controlo de passaportes

Foto 3 - Bissau: Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira: Sala de saída do Aeroporto onde, bem dispostos, aparecem, já com a bagagem, os colegas: Leite Rodrigues, Angelino, Azevedo, Isidro e Moutinho

Foto 4 - Bissau: Vista panorâmica da Avenida dos Combatentes da Liberdade da Pátria, com o edifício do Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira, em fundo, obtida da frente do restaurante do Aparthotel Machado

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O NOSSO ALOJAMENTO EM BISSAU

Esperavam-nos, à saída do aeroporto, quatro jeeps que nos conduziram ao Aparthotel Machado, localizado a menos de mil metros, na nova e longa avenida, agora designada como Avenida dos Combatentes da Liberdade da Pátria que, com duas vias e três faixas de rodagem cada, termina na antiga Praça do Império, local onde se ergue o antigo Palácio do Governador Português da Província da Guiné, já felizmente reconstruido, depois de ter sido bombardeado durante as guerras internas, ocorridas nos finais do anos noventa do século passado, entre os apoiantes de Nino Vieira e de Ansume Mané, ambos falecidos durante essas guerras algo fratricidas.

Este Palácio, é actualmente a residência oficial de Sua Exa. o Senhor Presidente da República da Guiné-Bissau e que localizado nessa zona central da cidade de Bissau, é um área onde se erguem outros edifícios como, a Sede do PAIGC, a delegação da TAP AIR Portugal e ainda o Hotel Império.

Chegados no Aparthotel Machado, cujas instalações nos pareceram muito razoáveis e localizadas em zona muito sossegada, como mais tarde pudemos confirmar, foram de imediato distribuídos os quartos, sendo-me atribuído o quarto número nove, que durante a nossa permanência de sete noites por aquelas terras guineenses, reparti com o companheiro de viagem Isidro.

Este empreendimento turístico, de dois pisos, que desde logo nos pareceu acolhedor, comportava 17 quartos, dos quais 7 nos foram atribuídos, estando os outros ocupados por outros hóspedes, alguns deles estrangeiros e a trabalhar em empresas ou obras da Guiné-Bissau.

No decorrer dos dias verificámos que estavam a decorrer obras num terceiro piso que, segundo posteriormente nos informou o proprietário Sr. Manuel Machado, se destinavam a aumentar de 17 para 27 o número de quartos a disponibilizar aos potenciais futuros clientes.

Deixada a bagagem nos quartos e tomado um refrescante duche, ainda tivemos tempo, antes de dormir, de petiscarmos alguma coisa que a D. Teresa, esposa do proprietário do Aparthotel, Senhor Manuel Machado, preparou, para os novos treze hóspedes.
Aproveitando o tempo dessa pequena refeição e até um pouco para além dela, começamos a delinear, ouvindo a opinião mais conhecedora do nosso anfitrião, Sr. Manuel Machado, que nos ajudou a elaborar um programa de visitas para o primeiro dia da nossa permanência nestas terras africanas da Guiné-Bissau, fornecendo-nos umas ideias sobre as zonas a visitar, bem como sobre a quilometragem que iríamos percorrer, até atingirmos os nossos objectivos.

Tal como o viríamos a fazer todos os dias depois do jantar e atendendo ao calor que ainda se fazia sentir, ficávamos na sala de jantar para uns longos minutos de conversa, descrevendo uns aos outros as peripécias do nosso dia-a-dia e as visitas que fazíamos em cada uma das jornadas.
Íamos depois descansar, já que também nos começávamos a sentir um pouco fatigados, não só pelas deslocações e visitas feitas diariamente, mas também pela temperatura elevada, que procurámos anular, ligando o ar condicionado que existia de cada um dos quartos onde dormíamos, permitindo-nos dessa forma melhor passarmos uma tranquila noite de sono, já que no dia seguinte, nova etapa nos esperava.

Embora longos anos se tenham já passado desde a nossa forçada estadia por estas paragens, mesmo assim sentimos alguma emoção ao pisar terras africanas da Guiné, mais acentuada ao verificarmos a existência de um arruamento moderno que liga o Aeroporto ao centro de Bissau, conforme no dia seguinte pudemos confirmar.
Constatámos, não só, a existência desta nova avenida, mas também que a partir da rotunda do Aeroporto, existiam novos eixos rodoviários, onde se construíram novas e modernas edificações, a maioria delas ligadas aos sectores turísticos e da restauração, bem como outras onde se sediam instalações estatais e embaixadas estrangeiras.

Não só nesta noite, mas também nas seguintes e depois de jantar e devido ao calor que ainda se fazia sentir, ficávamos na sala de jantar uns longos minutos de conversa, descrevendo aos outros as visitas que fizemos em cada uma das jornadas, indo só depois descansar, já que também nos começávamos a sentir um pouco fatigados, não só pelas deslocações e visitas feitas diariamente, mas também pela temperatura elevada que se fazia sentir durante o dia.
Desse cansaço e do calor que sentíamos, “vingávamo-nos” à noite, ligando o ar condicionado que existia em cada um dos quartos onde dormíamos, para melhor passarmos uma tranquila noite de sono, já que no dia seguinte, nova etapa nos esperava.

E foi desta forma simples e despreocupada, que os treze voluntários desta visita histórica a terras da Guiné, se prepararam para passar a primeira das sete noites, numa terra, onde tinham estado, numa missão bem mais difícil, há cerca de uns 40/44 anos atrás.

Mostram-se duas fotos onde aparecem retratadas duas imagens do exterior do Aparthotel Machado, na cidade de Bissau

Foto 5 - Bissau (Guiné-Bissau): Aparthotel Machado, local onde ficamos bem alojados e onde pernoitávamos, tomávamos o pequeno almoço e jantávamos

Foto 6 - Bissau: Eu a descer as escadas do Aparthotel Machado, para iniciar umas das saídas matinais

Fotos: © A. Acílio Azevedo

(Continua)
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Nota do editor

[1] - Vd. poste de 14 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17766: Tabanca Grande (446): António Acílio Quelhas Antunes Azevedo, ex-Cap Mil, CMDT da 1.ª CCAV/BCAV 8320/72 (Bula) e da CCAÇ 17 (Binar), 1973/74, que passa a ocupar o lugar n.º 754 da tertúlia

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17778: Notas de leitura (996): “a sorte de ter medo”, por Gustavo Pimenta, Palimage, 2017 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2017:

Queridos amigos,
Nestas coisas da escrita entre guerreiros, não vale a pena ter ilusões sobre a densidade autobiográfica. Gustavo Pimenta volta à Guiné e desvela o que foi a vida da sua companhia naquele período em que ali viveram entre 1968 e 1969.
Admito que haja outros relatos tão circunstanciados, só conheço este, e impressiona-me muito. Dirá talvez coisas que serão alvo de polémica, quanto às razões pelas quais aquela jangada tremeu, e quem deu ordens. Não quero estar na pele de quem perdeu 16 homens.
Recomendo sem qualquer hesitação a leitura urgente desta narrativa que ressuscita os fantasmas de Béli e Madina de Boé.

Um abraço do
Mário


Um impressionante relato sobre a retirada de Béli e Madina de Boé (3)

Beja Santos

Em “a sorte de ter medo”, uma poderosa narrativa que Gustavo Pimenta transmuta em romance, Palimage, 2017, temos uma descrição dos acontecimentos trágicos que ocorreram em 6 de Fevereiro, frente a Ché-Ché. Na véspera, o grosso das tropas, das viaturas, equipamentos e armamento, já atravessou o Corubal. São nove horas da manhã, entram na jangada de uma só vez as viaturas e os militares, quase todos de Madina de Boé e de uma das companhias que fazia segurança à alteração. Segue-se a descrição:
“O peso é enorme, há algumas horas que as barcaças não são esvaziadas, a jangada move-se lentamente.
O pessoal faz manguitos na direção da margem abandonada e grita impropérios dirigidos a inimigos imaginários.
Percorrido cerca do primeiro terço da travessia, o tenente-coronel comandante da operação ordena, sem qualquer prévio aviso ao pessoal, que os morteiros façam fogo para as imediações do local de embarque acabado de abandonar.
Na jangada é o sobressalto: nela vêm militares que, de há longos meses, estão habituados a correr para os abrigos ou fugir para a vala mais próxima quando se escuta o som de uma granada a sair à boca do morteiro.
A jangada oscila perigosamente, não se volta, mas fica meio submersa. Alguns militares atiram-se ao caudaloso rio, muitos outros caem à água.
O pessoal está subalimentado, sem dormir há longuíssimas horas, estafado, na água as armas e cartucheiras repletas de munições pesam insuportavelmente.
Largado tudo que os empece, a começar pela arma e as cartucheiras, uns poucos retrocedem a nado para a margem de origem, que está mais perto. Outros conseguem nadar para a margem do destino. A maioria, até porque há quem não saiba nadar ou nade mal, consegue equilibrar-se e manter-se na jangada com água pelo meio do peito.
Deita-se mão da jangada antiga para onde os militares sobem. A que fazia a travessia é puxada, a muito custo, para a margem. Imenso material cai ao rio, mas as viaturas, milagrosamente, não. Há a sensação de que nem todos os homens conseguiram salvar-se.
Todos já no quartel do Ché-Ché, mandam-se formar as forças envolvidas, confere-se o efetivo: 47 militares não respondem à chamada.
É o espanto, o desalento, o choro convulsivo, a raiva a custo controlado pelos comandantes: ninguém entende a razão de se ter feito o fogo de morteiro que precipitou o desastre”.

O narrador estava de férias quando se desenrola esta tragédia, quer prontamente regressar à Guiné, onde só chega a 15 de Fevereiro. “Na pista, o capitão espera-me. Abraça-me e chora. Convulsivamente, sem palavras, choramos”. O narrador perdera 16 homens do seu grupo de combate.

Duas semanas depois do desastre, um grupo de fuzileiros foi destacado pera recuperar corpos. Dos 47 desaparecidos apenas foram detetados 7. “Em adiantado estado de decomposição, irreconhecíveis e sem quaisquer elementos que os possam identificar, são enterrados numa elevação da margem direita do rio”.

Vai começar a via-sacra dos últimos meses: Nova Lamego, Cabuca, S. Domingos, já levam 19 meses de comissão. Neste último quartel, compete a esta companhia o controlo das povoações ao longo da estrada num raio de 25 quilómetros para Oeste e outros tantos para Leste. Por ali andam a fazer inventário das armas, a ver minas e armadilhas. Em Maio, o inimigo tenta bombardear o quartel com fogo de morteiro, não passou de um susto, retalia-se como bombardeamento a povoação senegalesa de MPack, encostada à fronteira. É nessa operação que um furriel fica com o pé direito destroçado por ter pisado uma mina antipessoal, segue-se um confronto com um grupo inimigo.

A exaustão vai tomando conta daquele contingente tão afetado por Madina do Boé. Segue-se uma operação para verificar se a povoação de Barraca Batata, junto à fronteira, está habitada. Desta vez, numa linha de água, é o enfermeiro que pisou uma mina antipessoal, chegará ao hospital já cadáver. Para além do desgaste, chegou a maldita hora da debilidade psicológica. Um cabo que tinha no pénis protuberâncias esponjosas entra em depressão, escreve uma carta à mulher e suicida-se, deixara a mala aberta e sobre a roupa meticulosamente dobrada uma carta fechada endereçada à mulher. Tenta-se animar a tropa, desdobram-se as iniciativas para preencher os tempos de repouso dos soldados, há muitas cantorias. No fim de Julho, caía a noite quando meia dúzia de morteiradas desassossegaram o quartel. É nisto que irá processar-se a rendição da companhia, o regresso é no Uíge. E ouve-se, no final deste poderoso relato, a última confissão:
“Havia jurado a mim mesmo que só mataria para não morrer, não disparei um tiro contra qualquer adversário, mas não sei os efeitos das armadilhas que montei e das minas que implantei. Na hora do embarque em Lisboa, prometi à irmã de um dos meus putos que lho devolveria inteiro e a mexer: morreu-me nas águas do Corubal (…) Este território não acolhe uma nação, há tantas etnias e tão distintas entre si como entre cada uma delas e os portugueses aqui despejados para fazer a guerra. Com culturas tão diversas e sem, ao menos, uma língua comum, poderá algum dia construir-se aqui um país confortável? Levo comigo África, o que de África me foi dado conhecer e me dizem ser dos piores bocados. Mas não esquecerei a hospitalidade das suas gentes, o sabor das suas comidas, o fascínio das suas inclemências. E o seu cheiro, a sua cor. Que me de mim aqui terei deixado?”.

E curioso, o neto pergunta-lhe:  
“Avô, como sobreviveste à guerra?”.

Gustavo Pimenta fez bem em voltar, é um grande acontecimento nesta literatura de retornos, e cumpre agradecer-lhe o belo título escolhido para este labirinto de memórias a que ele chama romance: “a sorte de ter medo”.
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Nota do editor

Postes anteriores de:

11 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17756: Notas de leitura (994): “a sorte de ter medo”, por Gustavo Pimenta, Palimage, 2017 (1) (Mário Beja Santos)
e
15 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17768: Notas de leitura (995): “a sorte de ter medo”, por Gustavo Pimenta, Palimage, 2017 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P17777: O que é feito de ti, camarada (7): Coelho, meu colega de escola (até à 3ª classe, nos Casais da Vestiaria, Alcobaça), e que fez comigo a recruta, em 1971, no CICA 4 (Centro de Instrução de Condução Auto), Coimbra... Depois perdi-lhe completamente o rasto (Juvenal Amado)


Foto nº 1 A


Foto nº 1 B


Foto nº 1 - Coimbra > CICA  (Centro de Instrução de Condução Auto) 4  > 1971 > Camaradas da recruta.  Ao meu lado (foto nº 1 A), o Coelho, meu colega de escola (até à 3ª classe), nos Casais da Vestiaria, Alcobaça.

Foto (e legenda) © Juvenal Amado (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Em mensagem de 17 de julho de 2017, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74),  enviou-nos um poema de sua autoria, "Tempo" (*), e a seguinte nota:.

"Carlos e Luís,  nesta foto tínhamos dias de recruta no CICA4 em Coimbra.

Só me lembro do nome do camarada mesmo ao meu lado direito. Chamava-se Coelho, andamos os dois na escola primária até à 3ª classe,  nos Casais da Vestiaria, deixei de o ver quando vim morar para Alcobaça onde fiz a 4ª a classe e me empreguei.

Reencontrei-o na recruta em 1971, depois voltámo-nos a perder de vista nas voltas que a vida dá."


2. Comentário do editor:

Juvenal,  está tudo dito no belo poema que escreveste sobre o "Tempo" (*)... Muita da poesia que os poetas escrevem é sobre esta "matéria", o tempo que nos escapa das mãos, como areia do deserto, e as nossas memórias esburacadas e doridas...  

O que é será feito do Coelho, teu colega de escola  (**) ?  Tu foste parar à Guiné, e o Coelho (e outros "filhos  dos monges cistercenses de Alcobaça") ?  Foi mobilizado, para Angola, Guiné ou Moçambique ? Foi para a peluda ?  Regressou  "são e salvo" do ultramar ? Emigrou ? Casou, teve filhos ? É vivo ? Se sim, por onde pára ?... É muito pouco provável que conheça o nosso blogue e te/nos descubra... A tua foto tem 46 anos... Mas, mesmo assim, "o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca.. é Grande!",,, 

(...) Na neblina julgo ver vultos,
fugazmente vislumbro algo indefinido,
vejo jovens enlaçados que flutuam,
não sabem ainda que a juventude
é um momento fugaz,
é uma pétala que se solta,
que se esmaga entre os dedos
e solta a fragância.
Esse é o aroma do tempo que passa,
e os cemitérios são os nossos fieis depositários (...)

_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17604: Blogpoesia (520): Não é possível conservar o tempo (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto)

domingo, 17 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17776: Consultório militar do José Martins (25): Lista das companhias que estiveram em Empada depois da CCAÇ 616 (1964/66), a pedido do Joaquim Jorge, régulo da tabanca de Ferrel, Peniche



Lista das companhias e pelotões que passaram por Empada, na região de Quínara, entre abril de 1963 e junho de 1974. Infogravura: José Martins (2017).


1.  Mensagem de Joaquim da Silva Jorge [ex-al mil, CCAÇ 616, Empada, 1964/66], régulo da tabanca de Ferrel, concelho de Peniche_

Data: 7 de setembro de 2017 às 14:45

Assunto: companhias que estiveram em Empada depois da CCAÇ  616


Caro Luís Graça: Boa tarde!

Há hipótese de descobrir as companhias que estiveram em Empada depois da minha 616?

A minha companhia saiu de lá em 24 ou 25 de janeiro de 1966. Tenho a relação completa de  1964 a 1974, mas não informatizei e não sei onde guardei essa relação que tenho em papel.

Estou a solicitar-te este favor para poder ajudar uma guineense a descobrir o pai da filha.

Desde já grato.

Um abraço, Joaquim Jorge


2. A pedido dos nossos editores, o nosso colaborador permanente José Martins mandou-nos, logo no próprio dia, a lista que publicamos acima, e que foi igualmente reencaminhada para o Joaquim Jorge. 


[Foto à direita: José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70)]


Camaradas como o José Teixeira e o José Belo (CCAÇ 2381) bem como o Xico Allen (CCAÇ 3566) também passaram por Empada em épocas diferentes.

Temos mais de 140 referências a Empada. O Francisco Monteiro Calveia também pertenceu à CCAÇ 616.

O nosso "Zé Sherlock Holmes" chama-nos a atenção para o facto de as duas primeiras companhias da lista, a CCAÇ 83 e a CCÇ 153,  não terem ido completas para a Empada, mas sim apenas com  1 ou 2 Grupos de Combate.  

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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17559: Consultório militar do José Martins (24): D. Cecília de Freitas, Dama Enfermeira, equiparada a Alferes

Guiné 61/74 - P17775: Historiografia da presença portuguesa em África (89): Exposição Colonial Portuguesa, Porto, 1934 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Agosto de 2017:

Queridos amigos,
Para bom entendimento do que foi o incontestável sucesso da Exposição Colonial Portuguesa, que se realizou no Porto em 1934, há que atender ao ressurgimento dos valores imperiais do Estado Novo, às expetativas de industriais e agricultores que pretendiam a complementaridade de mercados, cientes das tremendas dificuldades da economia mundial e até com a vizinha Espanha a entrar em roda livre, não esquecendo o apetite alemão por colónias.
Tudo somado, investiu-se a sério, organizou-se muito bem, e não faltou o escândalo da Balanta Rosinha de peito ao léu na capa das revistas.
Pretendia-se uma lição de colonialismo e de envaidecimento por um Portugal que não era um país pequeno.

Um abraço do
Mário


Exposição Colonial Portuguesa, Porto, 1934 (2)

Beja Santos

Capitão Henrique Galvão, Diretor Técnico da Exposição
Desenho de Eduardo Malta

A exposição do Porto foi inegavelmente um grande evento na lógica imperial do Estado Novo, veiculando uma importante mensagem para dentro do país e uma outra para novos concorrentes imperiais que até pretendiam ter acesso às colónias portuguesas em África, como Hitler. Internamente, toda a encenação exaltava a dimensão civilizador do projeto colonia; externamente, dava-se como demonstrado que tínhamos um projeto colonial antigo e que o Império Colonial Português era inquestionável. Num artigo alusivo a esta exposição, a investigadora Luísa Marroni escreveu um curioso artigo na revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto que iremos acompanhar de perto. A direção técnica da exposição esteve a cargo de Henrique Galvão, contou-se com o empenho e apoio financeiro do Grupo Pró-Colónia do Porto. Na divulgação o evento contou com o apoio do bispo do Porto e de grande parte do clero do Norte e muitos outros intervenientes, todos apostavam e se empenharam na política colonial ressurgida com o Estado Novo.


A exposição estava estabelecida no Palácio de Cristal e jardim envolvente, durou três meses e meio e culminou com a realização de um cortejo alegórico que percorreu as ruas da cidade do Porto, desde a foz do rio Douro até aos jardins do Palácio de Cristal. Era constituída por secção oficial e secção particular. A secção oficial organizava-se por 15 temas (história da obra colonial portuguesa, representação etnográfica, representação militar, monumentos, parque zoológico, teatro oficial, cinema oficial, informações, correios e telégrafos, livraria colonial, socorro e assistência aos indígenas, sala de exposição de arte, conferências e congressos, posto de provas de produtos coloniais e cantina) e diferenciados produtos e produtores completavam a secção particular. Almada Negreiros desenhou selos, Eduardo Malta pintou e desenhou, a Vista Alegre produziu peças para a exposição, o príncipe de Gales, o futuro rei Eduardo VIII, foi talvez o seu visitante estrangeiro mais ilustre. No Porto dava-se visibilidade ao projeto imperial em marcha.

Registe-se que não era a primeira vez que se trazia a Portugal réplicas de aldeias indígenas. Recorde-se que na Grande Exposição Industrial Portuguesa, realizada em Lisboa, em 1932, veio uma tabanca Fula e foram mesmo exibidos Fulas na exposição, houve mesmo uma descrição de um escritor guineense, Fausto Duarte, que no ano anterior ganhara o primeiro prémio de literatura colonial.


Havia a ambição política e económica, os industriais portugueses insistiam na complementaridade dos mercados, havia um verdadeiro interesse pelas questões e mercados coloniais. A economia europeia estava em profunda crise que se irá agravar com o crash da bolsa de Nova Iorque, em 1929, acrescia o agravamento da situação política em Espanha, industriais e financeiros insistiam nos novos mercados, por isso a aposta no evento do Porto foi esforçada e sincera.

O regime apostava na lição do colonialismo, respirava-se o sucesso na questão do equilíbrio financeiro e na ideia da estabilidade social conseguida pelo Estado Novo. Falava-se abertamente numa ofensiva patriótica e pacificadora nas colónias, isto a despeito de se manterem graves tensões, por exemplo na Guiné, envolvendo Felupes e Bijagós.

 A exposição era encarada como uma lição viva, era para sentir o pitoresco, o exótico, a ingenuidade dos colonizados, pretendia-se substituir preconceitos com esta catequese sentimental de que Portugal não era um país pequeno, estendia-se entre o Minho e Timor. Lição viva porque se recriou a ambiência das colónias envolvida por modernismos da metrópole, encenaram-se povoados, modos de vida e de organização familiar, usos e costumes, trajes e rotinas, engendraram-se representações estereotipadas.

Como escreve a investigadora Luísa Marroni na conclusão do seu artigo, “O estudo da Exposição Colonial realizada no Porto, em 1934, admite sinais da transformação pretendida na sociedade portuguesa: de rutura com os valores o passado próximo para adoção de outros conformes com a ordem estabelecida.

A mudança é conseguida com recurso a um conjunto de instrumentos eminentemente sensoriais nos aspetos socioculturais e ao nível político, a representação unificada da nação. A simbologia empregue fundamenta a nova ordem sociopolítica, reforço da ideia e políticas imperiais, compreendida pela associação feita aos princípios do domínio e da ressurreição capaz de influir na sociedade, individual e coletivamente. A monopolização do espaço público com um conjunto de símbolos visuais remetem para outros tempos, encenando, reinterpretando, ou substituindo figuras, regras e valores anteriores ao golpe militar de 28 de Maio de 1926”.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de Setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17772: Historiografia da presença portuguesa em África (88): Exposição Colonial Internacional de Paris, 1931 (1) (Mário Beja Santos)