quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17781: Os nossos seres, saberes e lazeres (230): De Manchester (em luto) para Leeds, passando pelo Yorkshire profundo (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 19 de Junho de 2017:

Queridos amigos,
Foram 19 dias e peras. Aterrou-se e só se falava do ataque terrorista na arena de Manchester.
Os primeiros dias foram bem acalorados, seguiu-se para o Sul da Escócia e veio a chuva intermitente, felizmente que o viandante estava numa casa aprazível, bem ajardinada, deu vazão a dois livros de dimensão gigante que levara para fazer recensões no blogue. Divertiu-se à farta, às vezes metia-se no autocarro e, contrariando os pareceres dos agentes turísticos locais, foi parar a aldeolas ditas sem interesse, pura mentira, há sempre um chafariz, uma porta, um jardim encantado, até uma salsicharia onde se encontrou um espaço com vendas filantrópicas para angariar fundos para crianças muito doentes e com pais de modestos recursos.
Como verão, e espero que não haja ilusões nesse sentido, é o viandante que faz a viagem.

Um abraço do
Mário


De Manchester (em luto) para Leeds, passando pelo Yorkshire profundo (1)

Beja Santos

Nunca o viandante fizera férias tão prolongadas em país estrangeiro, tudo desenhado à régua, o rigorismo das despesas assim o recomenda, tanto por pernoita, tanto por transportes aéreos e terrestres, qual o montante para vitualhas e qual a porção de excedente para extravagâncias, sabe-se que é grande a curiosidade por visitar lojas de instituições de benemerência (vulgo charity shops), onde o viandante procura calçado e diferente vestuário e versátil quinquilharia. Acontece que há muitos museus com entrada gratuita, mas as casas senhoriais e qualquer tipo de espetáculo é de 10 libras para cima.
Começa-se por Manchester, logo no dia seguinte a uma grande tragédia que enlutou o Reino Unido, foram dias sem parar a exibir nos ecrãs inocentes que morreram num ataque terrorista enquanto ouviam a cantora pop Ariana Grande. Ora por coincidência o Manchester United foi vencer na final da Liga Europa o Ajax, e esta fotografia circulou por meio mundo, o ponta-de-lança Paul Pogba dedicou esta vitória a um familiar e às vítimas do ataque. Se uma imagem vale por mil palavras, o que pensar desta imagem?


O primeiro dia efetivo de cirandagem tem os céus plúmbeos, em Yorkshire, onde se encontra o viandante, está tudo em verdor florestal, num país onde chove que se farta não é enigma. Para tirar imagem nestes dias chochos o melhor é o viandante socorrer-se da autenticidade de uma imagem em bilhete-postal, aqui ficam as Dales de Yorkshire, vales formosos, tudo irrepreensivelmente tratado, milénios a retirar pedra para que os solos ficassem úberes, como são, há ali pastagens eternas, as Dales embrincam com as charnecas, o que aqui se descreve é conhecido por todos aqueles que leram Os Montes de Vendavais, a obra de consagração de Emily Brontё. É uma sensação voluptuosa viajar por estas estradas secundárias até desembarcar na afadigada Leeds, hoje o segundo centro financeiro do Reino Unido.


O viandante pretenda começar o dia a visitar o centro de arte de Leeds, enfim, cumprimentar pelo menos Paula Rego e Francis Bacon, deu com o nariz na porta, o museu está em obras até Outubro. Aqui se exibe de Paula Rego uma tela de 1993, The Artist in Her Studio, há para ali temáticas muito comuns e facilmente muito identificáveis, logo em primeiro plano as boas couves portuguesas e um burro, animal que a artista nunca esqueceu das férias passadas em família.


Devido a esta alteração, prossegue a viagem na City Square, vai dar-se uma espreitadela à gare ferroviária de Leeds, recentemente restaurada. Tiveram cuidado de manter elementos Arte Deco logo na entrada, que prazer para os olhos ver como há cerca de 75 anos havia um sentido apurado para uma entrada palaciana de caráter público com uma bem doseada iluminação, que continua na vanguarda do bom design.


Daqui parte-se para o City Square, a praça tem magnificência, a estátua do Príncipe Negro, um dos ícones da história da Inglaterra, ocupa lugar central. Há belas esculturas, reteve-se a de James Watt, um senhor para com quem temos uma dívida eterna por ter magicado a máquina a vapor.



Não se pode entrar no centro de arte, mas o instituto Henry Moore está disponível, tem sempre belas exposições à nossa espera. Saudou-se o genial escultor com esta imagem e tomou-se a decisão de visitar um esplêndido edifício vitoriano, ali ao lado, é ali que funciona a biblioteca. Convém recordar que naquelas décadas ascensionais da industrialização do país e do nascimento do império, desenvolveu-se por toda a parte um fenómeno conhecido por orgulho cívico: qualquer cidade, mesmo de menor dimensão, teria de ter uma casa de música, se possível uma ópera, biblioteca, amplos jardins, transportes ferroviários, bairros para gente humilde. Falando em bibliotecas, deviam apresentar-se como palácios, locais de veneração da cultura.


Sai-se da biblioteca para flanar na grande artéria comercial, ali se destaca a galeria Vitória, é uma artéria cheia de requinte onde os retalhistas se socorrem hoje das boas artes do embelezamento das vitrinas. Vejam lá se esta montra pejada de máquinas de costura de um estabelecimento de roupas não é um achado.




Este local dá pelo nome de The Corn Exchange, foi em tempos áureos um mercado de cereais, hoje é um centro comercial. Enquanto por aqui se cirandava, o viandante deu com uma placa de memória por todos aqueles que aqui trabalhavam e que tombaram na guerra. Os britânicos são assim, cuidam de recordar que houve um sacrifício imenso em vários continentes, nos mares e nos céus, e que cada local do país deu o seu sangue heroico. São valores assim que ajudam a compreender o transcendente das culturas e das civilizações.


Mais uma vagabundagem antes do viandante se despedir de Leeds. Ele veio aqui pela primeira vez, há alguns anos atrás, à procura de um fenómeno de reabilitação dos antigos armazéns hoje transformados em residências, arquitetos de muitas proveniências vêm aqui estudar como é possível reabilitar zonas de armazéns portuários e reconvertê-los em bairros aprazíveis. Também o viandante já viu em Bristol algo de semelhante, pensa sempre que aquelas regiões ali do Poço do Bispo e Xabregas bem podiam ganhar outra vida, tornar a Lisboa Oriental muitíssimo mais aprazível e vistosa, como merece. Foi um belo dia em Leeds, amanhã, em franca companhia, parte-se para o Sul da Escócia, Moffat.

(Continua)
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Nota do editor

Último posta da série de 13 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17762: Os nossos seres, saberes e lazeres (229): Aquele último dia em Bruxelas, já saudoso pelo regresso (9) (Mário Beja Santos)

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