Foto: Banco Nacional Ultramarino, com a devida vénia
Vamos começar a publicar às sextas-feiras, integradas na série Notas de leitura, recensões da autoria do nosso camarada Mário Beja Santos, de parte dos relatórios que o Banco Nacional Ultramarino (BNU), da então Guiné Portuguesa, enviava periodicamente para Lisboa, e que o Mário descobriu por acaso na Caixa Geral de Depósitos, onde, além dos relatórios de contas e quejandos, se fazia menção a ocorrências de ordem social e política naquele território ultramarino.
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1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2017:
Queridos amigos,
Usando da elementar prudência, direi sem hesitar que a historiografia guineense não pode doravante descurar esta documentação que tem o seu quê de extravagante, atendendo ao quadro de funcionamento numa instituição bancária.
Estes gerentes, inadvertidamente, ficam na história da Guiné como cronistas de acontecimentos de subversões, tentativas de golpes de Estado, darão informações preciosas sobre a vida da colónia em tempo de guerra - e muito mais haverá a dizer. Por vezes, darão notícias que hoje chamaremos fofocas: o governador que levou a amante para fazer um aborto no hospital ou a cuidadosa informação da passagem de D. Duarte Nuno de Bragança que faz escala em Bolama, a caminho do Brasil, onde vai casar com uma Orleãs, dá-se pormenor sobre mobiliário, faqueiro e baixela e até dos passeios de D. Duarte Nuno pela ilha de Bolama.
A análise económica é incontornável.
Como iremos ver em próximos textos.
Um abraço do
Mário
Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (1)
Beja Santos
Tudo começou da seguinte maneira. Num leilão online, andei a licitar um livro intitulado “Guiné, Alvorada do Império”. Alguém apostou forte, ganhou o livro. Por pura curiosidade, fui consultar a obra. Tratava-se de um panegírico de Raimundo Serrão, o Governador da Guiné que sucedeu ao Comandante Sarmento Rodrigues. Se o texto era inclassificável pela autoglorificação, o mesmo não se podia dizer do acervo fotográfico. Começou a pesquisa, e na biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa recomendaram-me que batesse à porta do arquivo histórico do BNU, de que nunca ouvira falar, em nenhum livro referente à Guiné Portuguesa constava documentação provinda de tal arquivo.
Após uma deambulação pela Caixa Geral de Depósitos (proprietária do acervo do BNU) descobri a morada, uma rua em Sapadores, mesmo em frente a um buraco enorme onde foi a fábrica de chocolates A Favorita. Bem acolhido, foi-me facultada a obra para consulta e tive acesso à relação de obras da Guiné, encontrei algumas preciosidades ignoradas, caso do importante livro de Francisco Tavares Valdez. Estava bem repimpado a folhear as fotografias do panegírico de Raimundo Serrão quando um funcionário se aproximou e perguntou-me se eu estava interessado em consultar os relatórios da filial de Bolama a partir de 1916, e depois da filial de Bissau, de 1941 a 1975. Olhando-o com relativa descrença, que interesse iria eu encontrar em letras protestadas, cambiais, colocação de funcionários em Bolama ou Bissau e coisas assim, para o meu trabalho? O técnico informou-me que estes relatórios de exercício incluíam, em forma de anexo, análises de situação com pormenores que nada tinham a ver com os negócios bancários, os créditos e os débitos. Não resiste a pedir alguns desses documentos para consulta, cedo confirmei que havia para ali ouro e pedras preciosas, aqueles relatórios tinham uma redação excêntrica, a primeira parte era absolutamente formal e o anexo o seu contrário. O gerente da filial, logo num dos primeiros relatórios dava conta a Lisboa que chegara um governador manifestamente inapto… Agarrei a investigação, procurei apurar alguns factos, e já está quase tudo lido entre 1916 e 1941. É esse período que vou procurar analisar e dar-vos conta, estou seguro que ainda me aguarda mais uma tonelada de papel para folhear. Para além destes relatórios de exercício há documentação avulsa, copiadores, plantas de edifícios, sobrescritos com fotografias, não deixo nada de fora.
A delegação em Bolama do BNU aparece referenciada no relatório do banco em 1902, entrou em funções em 1903, é o interlocutor para Lisboa até 1941, com a mudança da capital para Bissau a filial estará doravante na nova capital. Penso que terá utilidade apresentar esta documentação inédita enquadrando-a historicamente. Aqui e acolá irei à procura de contexto em autores como Armando Tavares da Silva que fez um levantamento da presença portuguesa na Guiné até 1926.
BNU de Bolama
O primeiro documento que me chamou à atenção tem a data de 1 de Janeiro de 1916, é feito no Consulado da Bélgica em Bissau, papel selado da época em que as casas comerciais internacionais mais importantes declaram não fazer negócios ou intermediação com as potências inimigas e prontificam-se a comunicar às autoridades competentes eventuais infrações de que venham a tomar conhecimento. Importa explicar ao leitor qual é a grande singularidade que me parece que este levantamento documental suscita: encontram-se com frequência mensagens de Bolama ou de Bissau para Lisboa a comunicar à sede do banco chegadas e partidas de notabilidades ou factos merecedores de atenção – o governador acaba de chegar ou partir, foi nomeado novo Chefe de Estado Maior do Exército, grassa uma epidemia, faltam medicamentos, este ano a cultura da mancarra será má…; os gerentes deviam receber ordens para pôr o banco em Lisboa ao corrente de insurreições ou levantamentos, greves, tinham luz verde para expender opiniões sobre a evolução da colónia, com uma franqueza e desassombro que não deixa de surpreender, dada a grande abertura e por vezes a dureza de juízos emitidos.
Os primeiros documentos que encontrei com presumível utilidade para os historiadores aparece em Junho de 1915, é classificado como reservado e fala da guerra em Bissau. Que informa? Em 3 de Junho os Papéis e os Grumetes de Bissau tinham atacado a vila com intenção de massacrar os habitantes, saquear os estabelecimentos e depois oferecer a ilha ao governo inglês ou francês. “Felizmente que quando atacaram a vila já lá estava o Capitão João Teixeira Pinto com uma pequena força e tropa regular e cerca de 1500 auxiliares, foi principalmente devido à valentia deste oficial que hoje não há a lamentar um enormíssimo desastre. O inimigo, munido com armas boas e muito modernas, sustentou um combate violento durante cerca de duas horas junto do mercado de Bissau, acabando por retirar perseguido pelos nossos. As nossas forças avançaram para o interior da ilha onde têm tido rijas pelejas, mas hoje não há dúvida que desaparecerá de vez a lenda de que os Papéis são invencíveis. O Chefe de Estado Maior foi ferido, mas sem gravidade porque em seis dias já queria voltar novamente para a guerra, e deve ter seguido hoje, sendo convicção de toda a gente que muito em breve ele completará a sua grande obra de submeter os Papéis; depois do que, se pode, enfim, considerar a Guiné pacificada, o que é de uma grande importância para o futuro desta rica colónia”.
Haverá uma resposta de Lisboa em 13 de Julho: “Excelentes são as notícias que Vossa Senhoria nos dá sobre a sujeição dos Papéis, da qual resultará a pacificação da Guiné, factos que, certamente, vão ter decisiva influência no progresso desta colónia”.
Questionará o leitor o que se passou na delegação de Bolama entre 1903 e 1916. Obviamente que pus a questão aos técnicos do arquivo. Não há nenhum papel anterior, ter-se-ão extraviado todos os documentos anteriores a 1916. Encontrei fotografias dos primeiros anos, mas tenho que me cingir às pastas que me põem à frente, não se pode ficcionar com a história.
Vejamos a seguir alguns elementos da parte anexa do relatório de 1917, ano em que houve guerra nos Bijagós, mas há um interessante documento reservado, datado de 9 de Junho de 1916 sobre o Governador de Província José Andrade Sequeira. É o que iremos ver a seguir.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 18 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17778: Notas de leitura (996): “a sorte de ter medo”, por Gustavo Pimenta, Palimage, 2017 (3) (Mário Beja Santos)
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