A par da tragédia, a guerra da Guiné foi também um peça do Teatro do Absurdo... Jorge Cabral teve o grande talento e o especial mérito de nos mostrar, com um toque de genial humor, esse outro lado da guerra, que era o nosso quotidiano de gente com um grão de saudável loucura que nos ajudou a sobreviver ao "non-sense", o não-sentido de tudo aquilo que ali fomos obrigados a representar ou viver...
Fotos (e legendas): © Jorge Cabral (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].
1. Os restos mortais do Jorge Cabral (Lisboa, 1944 - Cascais, 2021) ficam doravante no cemitério do Lumiar. Mas o "alfero Cabral ca mori", o "Alfero Cabral" não morreu... Ficará connosco, na Tabanca Grande, e as suas "estórias cabralianas" estarão aqui, ao alcance de um clique, sempre que as quisermos (re)ler...
Temos 94 "estórias cabralianas" publicadas, numeradas de 1 a 94. A primeira foi publicada em 6/1/2006 e última em 16/1/2017. Só parte destas "estórias" foram publicadas em livro, em vida do autor (*). Por outro lado, lançado em plena pandemia o livro não chegou a muitos dos seus leitores e admiradores.
Perdõem-me a imodéstia, mas fui eu quem descobriu, acarinhou, alimentou ... esse filão de humor do mais fino quilate que são as "Estórias Cabralianas"... O título, se não erro, também foi sugestão minha, que o "alfero" logo agarrou.
Mês a mês, desde os princípios de 2006, com maior ou menor regularidade, como quem paga uma dívida a um amigo, o Jorge lá me foi mandando o seu material ... Sempre lacónica nos seus emails, dizia-me: Sai estória, aqui vai estória, para desanuviar, para desopilar...
Uma estória aqui, outra estória acolá (sem h, como fazia questão de sublinhar, que era para ninguém as confundir com a "realidade" e levar a sério o estoriador)... E, nesse ritmo de produção artesanal a que ele nos habituou, lá a chegou às 64 ao fim de cinco anos...(A nº 64 foi publicada em 9/11/2010)... A uma média, portanto, de doze por ano, 1 por mês...
2006 - 16 | 2007 - 15 | 2008 - 12 | 2009 - 14 | 2010 - 7 || Subtotal= 64.
Depois, a produção tornou-se mais espaçada, a partir de 2011 (, cicno por ano, em média):
2011 - 5 | 2012 - 6 | 2013 - 8 | 2014 - 2 | 2015 - 5 | 2016 - 2 | 2017 - 2 || Subtotal = 30.
Eram short stories (ou micro-contos) que lhe vinham à cabeça e que ele passava a papel e depois a computador, entre duas aulas na Universidade ou duas audiências em tribunal. Um género literário que ele cultivava como ninguém...
Enfim, eram sempre um belíssimo pretexto para falar da sua querida Guiné e das suas gentes com quem ele, de resto, continuava a privar de perto, na Universidade Lusófona: agora filhos de ministros, de combatentes da liberdade da Pátria, ou descendentes das mais puras estirpes das aristocracias fulas, mandingas ou manjacas...
E da Guiné ele só falava com (com)paixão e ternura, através dessa criação única, e que já entrou na galeria dos imortais da blogosfera, que é o nosso "Alfero Cabral", o seu "alter-ego", romântico, apaixonado, arrebatado, esotérico, excessivo, quixotesco, rocambolesco, pícaro, delicado, temerário, extravagante, poético, sensível, absurdo... Só não é brigão nem fanfarrão, mas tem uma vaga costela do pipi das Avenidas Novas e do Vavá, misturada com a máscara do furtivo irã do pensamento mágico que poisava nos poilões das tabancas balantas (Bissaque, Mero, Santa Helena, Nhabijões...).
Desconcertante, sempre, o nosso "Alfero"!... Recordo-me de, há uns anos atrás, ele ter-me perguntado, com o ar mais sério deste mundo, se não queria comprar, a meias com ele, a Tabanca de Finete:
- Estás a ver, a bolanha, o Rio Geba, a rede preguiceira, uma bajuda para te enxotar as moscas!... O que é que um homem quer mais quando chega a SEXA ?!
Noutra ocasião, confidenciou-me que tinha de voltar a Fá... Porquê ?
- Deixei lá uns escritos importantes, escondidos num buraco tapado por um tijolo, no alto do depósito de água, que ainda lá continua de pedra e cal!...
Nunca o ouviu queixar-se da triste sina, à boa maneira dos tugas, nem esconjurar Deus, Alá ou os irãs, sempre sabendo pelo contrário tirar o melhor prazer e sábios ensinamentos de cada momento:
"(...) Aqui estou novamente a falar dos meus tempos da Guiné. Tempos que não foram nem os melhores, nem os piores da minha existência. Foram sim, diferentes. Como se naquele período, eu tivesse vivido numa galáxia distante, onde fui outro Jorge, se calhar mais real, se calhar mais autêntico… Claro que essa experiência me marcou e muitas vezes aquele Alfero regre ssa e faz das suas… como aliás o prova a história de hoje. (...)
Por outro lado, sempre discreto mas atento, paisano de corpo e alma, filho degenerado, desconjuntado na farda de "Alfero do Mato" que lhe enfiaram pela cabeça abaixo:
(...) "Caros Amigos, hesitei muito em mandar mais uma estória. Ainda por cima sobre esquentamentos... Mas que raio de ex-combatente sou eu, que não falo da guerra? Pergunto-me, às vezes, se lá estive? Parece que sim. Um ano em Fá, outro em Missirá (acreditem, o mesmo do Beja Santos...), doze dias em Bambadinca, e dezoito na Ponte do Rio Undunduma. Conheci muito pouco e sempre de passagem. Enxalé, Xime, Mansambo e Xitole, de partida para operações. De Bafatá, o Teófilo e as Libanesas, mais umas damas simpáticas que trabalhavam na horizontal... à entrada da cidade. Não transitei por Bolama. Nem tive IAO. De rendição individual passei em quinze dias dos cafés da Av de Roma para a Ponte do Rio Undunduma...
"Confesso que nunca percebi muito da guerra... Fui apenas um simples Alferes de Mato, que comandou Destacamentos e alinhou em todas as operações para as quais o Pel Caç Nat 63 foi escalado. Mas se não percebi então, hoje ainda percebo menos... Estou porém agora a tentar aprender no Blogue!" (...)
Logo a seguir ao seu 77º aniversário (, em 6/11/2021), falando ao telemóvel e sentindo-se um pouco mais animado (depois do "grande ronco" que foi a ida à porta da sua casa, no Monte Estoril, de um numerosa representação das suas antigas alunas, as suas queridas "almas"), ele ainda me prometeu uma derradeira "estória", a propósito de um contacto de alguém da Guiné-Bissau... Já não teve, infelizmente forças para a escrever e ma mandar...
Está na altura de as ler, quem as não conhece. Ou de as reler, quem as já leu no devido tempo mas mas precisa de refrescar a memória... Curiosamente, só a partir de 2008 é que os nossos leitores começaram a deixar comentários nos postes desta série... Por exemplo, a "estória nº 29" (poste P2334, de 16/12/2007) (**), uma das mais conhecidas e populares (, tendo batido o recorde, com um total até agora de 1738 vizualizações), não tem um único comentário...
Vamos reparar essa injustiça. É a melhor forma de homenagearmos o seu autor e nosso já saudoso camarada Jorge Cabral.
2. Lista das estórias cabralianas, por ordem numérica e cronológica - Parte I: De 1 a 19:
20 de Abril de 2007 > Guiné 63/7 4- P1682: Estórias cabralianas (1): A mulher do Major e o castigo do Alferes (Jorge Cabral)
(...) Quando de Missirá me deslocava a Bambadinca, seguia sempre a mesma rotina. Primeiro visitava o Bar do Soldado, até porque aí tinha que liquidar as despesas alcoólicas efectuadas pelo meu Soldado Ocamari Nanque, que se encontrava preso. (...)
23 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1688: Estórias cabralianas (2): O rally turra (Jorge Cabral)
(...) Numa tarde de tédio convenci o motorista da viatura existente em Missirá, um humilde Unimog, a dar um passeio. Pretendia visitar o Enxalé, seguindo pela estrada de Mato Cão, pela qual não passava qualquer veículo há muito tempo. (...)
23 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1689: Estórias cabralianas (3): O básico apaixonado (Jorge Cabral)
(...) O Pel Caç Nat 63 esteve quase sempre em Destacamentos. Comigo em Fá e Missirá. Antes no Saltinho, e depois no Mato Cão. Para os Destacamentos eram mandados os especialistas que a CCS [do Batalhão sediado em Bambadinca] não queria. Assim, tive maqueiros que não podiam ver sangue, motoristas epilépticos e até um apontador de morteiros cego de um olho. Tudo boa rapaziada, aliás! (...)
18 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - P437: Estórias cabralianas (4): o Jagudi de Barcelos.
(...) Dos quatro Comandantes de Bambadinca que conheci, apenas o Polidoro Monteiro me mereceu consideração. Dos outros nem vou dizer o nome, e de dois a imagem que guardo é patética . Assim, no rescaldo do ataque ao Batalhão, lembro o primeiro, à noite, de G-3 em bandoleira, pedir-nos:- Se houver ataque, acordem-me (...).
23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - P454: Estórias cabralianas (5): Numa mão a espingarda, na outra...
(...) Penso que, já em 1971, apareceu no Batalhão [de Bambadinca], um Alferes de secretariado, corrido de Bissau, por via de uns dinheiros. Chegou acompanhado de uma dama, sobre a qual corriam os mais variados boatos. Dizia-se, calculem, que ela tinha sido uma prenda de aniversário ao Alferes, enviada pelo pai, milionário do Porto. (...)
13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - P605: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá
(...) Poucos dias faltavam para o Natal, e a tarde estava quente. Todo nu no meu abrigo, fazia a sesta, quando sou despertado por enorme algazarra misturada com os ruídos do helicóptero.-Alfero, Alfero, é Spínola! - gritam os meus soldados (...).
17 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - P620: Estórias cabralianas (7): Alfero poi catota noba
(...) Finda a comissão, calculem (!), fui louvado. O Despacho do Exmo. Comandante do CAOP Dois referia, entre outros elogios, a minha “habilidade para lidar com a tropa africana e populações”, a qual me havia “granjeado grande prestígio”. Esquecido, porém, foi o essencial – evitei a dezenas de Bajudas o repúdio matrimonial e a consequente devolução do preço. Essa tão meritória actividade, sim, teria merecido, não um simples louvor, mas uma medalha (...).
13 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - P690: Estórias cabralianas (8): Fá Mandinga no Conde Redondo ou o meu Amigo Travesti
(...) Na década de 80, dava aulas nocturnas numa Escola na Duque de Loulé e costumava descer a Avenida para tomar o Metro. Eis que uma noite, me vejo perseguido por um Travesti que me grita:- Meu Alferes! Meu Alferes! Alferes Cabral!... Tomado de terror homofóbico parei, negando conhecer a criatura, de longas pernas e fartíssimos seios. (...)
20 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - P707: Estórias cabralianas (9): Má chegada, pior partida
(...) Com destino à Guerra, viajei no Alfredo da Silva, quase um cacilheiro, durante doze dias. Em primeira classe, sete oficiais e uma dona puta em pré-reforma habitavam um ambiente de opereta, jantando de gravata, com a estafada dama na mesa do comando. Depois havia a valsa… Cheirava a mofo, a decadência, ao fim do Império (...).
3 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P836: Estórias cabralianas (10): O soldado Nanque, meu assessor feiticeiro
(...) Desde que cheguei, e durante o primeiro ano, o Pel Caç Nat 63, foi pluriétnico. Mandingas, Fulas, Balantas, Manjacos, Bigajós, estavam representados. Pluriétnico e plurirreligioso, com um Manjaco, Pastor Evangélico, um Marabú Mandinga Senegalês, vários adoradores de muitos Irãs, e até alguns crentes na Senhora de Fátima, vivendo todos em Paz ecuménica, sob a batuta do Alferes agnóstico com tendências panteístas, que pensava que nada o podia surpreender (...).
4 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P936: Estórias cabralianas (11): a atribulada iniciação sexual do Soldado Casto
(...) À noite, após o jantar, nós os nove brancos do Destacamento, continuávamos à mesa, conversando. Falávamos de tudo, mas principalmente de sexo, mascarando a nossa inexperiência, com o relato de extraordinárias aventuras que assegurávamos ter vivido. O nosso motorista havia até desenhado num caderno as várias posições, indagando de cada um:- E esta, já experimentaram? (...)
20 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P974: Estórias cabralianas (12): A lavadeira, o sobretudo e uma carta de amor
(...) No dia seguinte a ter ocupado Fá Mandinga, apresentaram-se no quartel as lavadeiras, cinco ou seis bajudas, todas alegres e simpáticas. Uma, Modji Daaba, chamou-me logo a atenção pelo seu porte e beleza. Bonita de cara e perfeita de corpo, possuía um ar nobre e altivo que me cativou. Imediatamente a contratei como minha lavadeira exclusiva, tendo acordado uma remuneração superior na esperança de algumas tarefas suplementares… (Periquito, ainda não sabia, que com as bajudas mandingas era praticamente impossível ir além de algumas carícias peitorais…). (...)
28 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1128: Estórias cabralianas (13): A Micá ou o stresse aviário (Jorge Cabral)
(...) Terminada a especialidade de Atirador de Artilharia, permaneci como aspirante, em Vendas Novas, na respectiva Escola Prática. Aí me atribuíram variadas funções, Justiça, Acção Psicológica e Cultural, Revista Literária, etc, etc, pelo que quase nunca fiz nada. Quando me procuravam num lado, estava sempre no outro…Na Justiça, creio que apenas dei andamento a um processo, enviando uma deprecada para Angola, a perguntar se o Furriel Patacas possuía três mãos. (...).
24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1313: Estórias cabralianas (14): Missirá: o apanhado do alferes que deitou fogo ao quartel (Jorge Cabral)
(...) Julgo que aconteceu em Março [de 1971]. O dia decorrera em Alegria. Chegara a Missirá uma arca frigorífica a petróleo, oferta do Movimento Nacional Feminino, e cedo começaram as libações.Seriam três ou quatro da manhã, sou abruptamente despertado. Tiros (?). Rebentamentos (?). Fogo! Saio do abrigo nu, e deparo com meio quartel a arder.Ataque nunca podia ser! O Tigre [Beja Santos] já estava na Metrópole, Missirá era agora um oásis de paz, vigorando um tácito pacto de não-agressão (...).
14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1344: Estórias cabralianas (15): Hortelão e talhante: a frustração do Amaral (Jorge Cabral)
(...) Chamavam-lhe, os africanos, o furriel Barril, não sei se pela sua compleição física, se por via da fama e do proveito que ganhara como bebedor quotidiano e calmo. Estou a vê-lo ao serão, bebendo à colher, com paciência e estilo, enquanto o alferes declamava, e o maqueiro Alpiarça escrevia a uma das dezenas das madrinhas de guerra. (...)
14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1369: Estórias cabralianas (16): As bagas afrodisíacas do Sambaro e o estoicismo do Sousa
(...) Aos Domingos vestíamo-nos à paisana e dávamos longos passeios à volta da parada, imaginando praças, avenidas, ruas, adros de igreja e até estações de comboio. Depois entrávamos na Cantina e invariavelmente pedíamos 'Um fino e tremoços' (...).
10 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1419: Estórias cabralianas (17): Tirem-me daqui, quero andar de comboio (Jorge Cabral)
(...) Creio que foi em Fevereiro de 1971, que em Missirá, recebi a ordem de Bissau – um dos furriéis passava a ser Professor, com dispensa de toda e qualquer actividade operacional. Ponderada a situação, optei pelo Amaral , cujo porte rechonchudo e as maçãs do rosto vermelhuscas, lhe davam um ar prazenteiro e bonacheirão, nada condizente com as funções de comandante de secção combatente (...).
26 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1463: Estórias cabralianas (18): O Dia de São Mamadu (Jorge Cabral)
(...) Entre os dez militares metropolitanos do Destacamento de Missirá, apenas o Alferes era do Sul e de Lisboa – um rapaz de Alvalade, passeante da Praça de Londres e frequentador do Vává. Todos os outros, furriéis, cabos, e adidos especialistas, vinham do Norte ou das Beiras. (...).
18 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1534: Estórias cabralianas (19): O Zé Maria, o Filho, Madina/Belel e um tal Alferes Fanfarrão (Jorge Cabral)
(...) Bambadinca era então para o Alferes, feito nharro de Tabanca, a Cidade. Para lá ir, fazia a barba, aprumava o seu único camuflado apresentável, munia-se de alguns pesos e, acima de tudo, preparava o relim verbal sobre ficcionadas aventuras operacionais, que iriam impressionar o Comandante. Antes de entrar no Quartel, habituara-se a abancar no Gambrinus local, o tasco do Zé Maria, bebendo, petiscando e conversando. Um dia encontrou o Senhor Zé Maria, muito preocupado. O filho adolescente que estudava em Lisboa, ia chumbar. (...)
(Continua)______________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de