Queridos amigos,
A narrativa de Senna Barcelos, neste período posterior à Restauração, dá-nos conta das tremendas dificuldades da presença portuguesa na Guiné. Franceses e ingleses vão-se assenhoreando de porções importantes da Senegâmbia. Há mercadores em Cacheu que ditam a lei, vexam e chegam mesmo a prender o capitão-mor; a hostilidade dos autóctones é permanente, exigem tributos e prendas. Os da ilha de Santiago repontam, querem direitos alfandegários, não os deixando a Cacheu. Em Lisboa, não se sabe muito bem o que fazer quanto à criação de um presídio em Bissau. As companhias criadas para potenciar o comércio não vão durar muito tempo. E Senna Barcelos não perde oportunidade em exibir decisões régias inapropriadas, mostrar a cáfila de incompetentes e corruptos nos lugares de governação e nos negócios. Esta memória que o oficial da Marinha enviou à Academia das Ciências é uma peça fundamental no pioneirismo da historiografia guineense e permite vislumbrar, quase a olho nu, a ligação comercial, mormente no tráfico negreiro, entre a Guiné e Cabo Verde.
Um abraço do
Mário
Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (2)
Mário Beja Santos
São três volumes, sempre intitulados Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense. Comenta factos com muita franqueza, não se escusa de dizer que o reinado de D. João V foi altamente prejudicial a Cabo Verde e à Guiné. É profundamente crítico também com a escolha de muitos governadores, fala com imenso à vontade de rapinas e corrupção. Inicia o seu trabalho no século XV, pouco nos detivemos aí, fomos diretamente para esse penoso período da Restauração que ele investigou com imenso cuidado, nunca escondendo que estávamos muito lentamente a sair de uma decadência profunda agravada pelo período filipino e que o cerco à Senegâmbia Portuguesa dava sinais inquietantes, franceses e ingleses infiltravam-se em territórios anteriormente ocupados por Portugueses. Comerciantes estrangeiros mercadejavam à socapa, impunha-se construir boas posições fixas, e falava-se na Fortaleza de Bissau. Igualmente este período vê aparecerem duas tentativas de criação de companhias de comércio, a de Cacheu e a de Grã Pará e Maranhão.
Enquanto nos confrontávamos em território europeu com a Guerra da Restauração, a presença francesa e inglesa é uma constante. O governador da Guiné e Cabo Verde, Veríssimo de Carvalho, alerta para o facto de os franceses quererem levantar uma feitoria da Real Companha de França em Bissau. É deste tempo que data a ideia de construir uma fortaleza em Bissau, o rei local, Bacampolco, concedia licença, em Bolor, igualmente se construía uma outra fortaleza.
Senna Barcelos é minucioso na denúncia de trafulhices, basta ler o que se segue:
“O capitão-mor era acusado de juntamente com Ambrósio Vaz, Bibiana Vaz de França e o feitor da fazenda Manuel de Sousa Mendonça prenderem à saída da missa o Capitão-Mor Oliveira, desterrando-o para Farim, onde esteve recluso num escuro corredor da casa de Bibiana durante 14 meses”. Fez-se uma sindicância, provou-se haver mais culpados, aplicaram-se punições e o autor comenta: “Cacheu estava num perfeito caos; a sua população constava de 12 pessoas, entre brancos e mulatos. Os capitães-mores que acumulavam o cargo de feitor da fazenda deixariam de o exercer quando se deu maior jurisdição a António de Barros Bezerra, porém este continuou a exercê-lo, deixando de escriturar os livros dos rendimentos reais; este mau exemplo seguiu o novo feitor, persuadido talvez que não encontraria oposição como Barros Bezerra, também partidário da ricaça Bibiana Vaz”.
A investigação de Senna Barcelos oscila em permanência na descrição de factos em Cabo Verde com os acontecimentos passados na Guiné. Em 1692 o rei decidiu que se construísse a Fortaleza de Bissau e o autor comenta: “Desde o século XV que os portugueses comerciavam em Bissau, alcançando do régulo, com engodo do negócio, o poderem levantar uma feitoria ou casa-forte para guardarem suas mercadorias. Muito antes de 1604 havia em Bissau algumas casas, porém nessa data, aparecendo ali os primeiros religiosos, catequizaram e converteram à nossa fé muitos pretos, que vieram reunir-se aos portugueses, tornando mais importante a povoação”.
Em 21 de dezembro de 1695 publicou-se legislação autorizando o Conselho Ultramarino a encarregar a Companhia de Cacheu e Cabo Verde da administração da fábrica da fortaleza de Nossa Senhora da Conceição de Bissau. A legislação estabelece os procedimentos: a Companhia de Cacheu e Cabo Verde pagaria a despesa, contribuindo igualmente os de Cabo Verde, tudo constaria dos livros de receita; da fortaleza haveria um capitão-mor e as embarcações que saírem da Ilha de Bissau poderão livremente vir por outro qualquer porto deste reino; a Companhia de Cacheu e Cabo Verde teria a incumbência do pagamento da folha dos oficiais da fazenda, guerra e presídio da dita ilha, etc. O rei confirma em 7 de março de 1696 este contrato.
E regressamos à descrição de atropelos e sobressaltos:
“Em 24 de Março de 1697 dizia o Capitão-Mor de Cacheu, Vidigal Castanho, que em 17 de Agosto de 1696 intentara o rei dos Mandingas, de Canicó, circunvizinho à população de Farim, dar nesta um assalto para a destituir de moradores e forros cristãos, que eram muitos, e roubar-lhes ao mesmo tempo as suas fazendas. Para este intento entrou manhosamente na povoação, envolto numa certa capa de amizade, dizendo que vinha visitar os brancos, para que a empresa lhe fosse mais fácil, pois que contava que a sua gente cairia no dia seguinte repentinamente, e a tomada da povoação se realizaria sem grande custo.
Para que esta traição não ficasse sem ser explicada, conseguiu arranjar um conflito, tentando amarrar um negro forro e cristão, o que não levou a efeito por acudirem os brancos, que lho tiraram das mãos; e como o rei empregasse resistência, auxiliado por dois filhos seus e por um dos seus soldados, foram estes mortos e aquele preso.
Estava assim declarada a guerra à povoação. Poucos eram os elementos para a sua defesa contra uma invasão de milhares de gentios, que representados por diversas tribos, mais ou menos aparentadas, não tinham compromisso algum, nem com o governo de Cacheu, nem tão-pouco com os moradores de Farim para socorrerem os moradores”.
Seguem-se as peripécias, pede-se auxílio ao capitão-mor de Cacheu, este arma expedição, destrói-se a principal povoação dos Mandingas, os Balantas auxiliam os brancos, mas não se conseguiu chegar às aldeias Mandingas dada a quantidade de chuva. O autor comenta que a povoação de Farim era aberta, os moradores sofriam vexames sem conta e eram obrigados a pagar tributos ao rei de Canicó. O capitão-mor de Cacheu deixou Farim em estado de se defender, mandou construir baluartes e pôs artilharia.
Segue-se a descrição de um outro episódio, o autor prima pelos detalhes truculentos:
“Em 16 de Dezembro de 1715 fora nomeado governador Serafim Teixeira Sarmento, tomou posse a 6 de Abril do ano seguinte. E para Ouvidor nomeou-se Braz Brandão de Sousa em 11 de Novembro de 1717.
Estando o Senado da Câmara a governar pelo falecimento do Governador Calheiros, foi nomeado o Coronel António de Barros Bezerra. El-rei confirmou a nomeação em 2 de Agosto de 1716, ano em que se concedeu novamente aos navios que fossem a Cacheu não despacharem na alfândega de Santiago. Os resultados desta ordem inconveniente não se fizeram esperar. Como os rendimentos diminuíam, levantou-se o funcionalismo a protestar por falta de vencimentos, e neste sentido representou o governador que o atraso se devia à tal diminuição.
Em 19 de Outubro de 1717 recomendou-se em carta ao Capitão-Mor de Cacheu, António de Barros Bezerra, para evitar o comércio, que os moradores de Geba faziam em Bissau, de cera, marfim, escravos e coiros, com os estrangeiros, causando enormes prejuízos aos direitos reais, e fazer todo o possível para aqueles moradores derivarem o seu comércio para Cacheu, pagando ali os direitos. O capitão-mor respondeu não lhe ser possível obrigá-los a vir ali comerciar, e nem tão-pouco aos de Bissau, porque todos eram levantados, e quando algum manifestava desejos de vir a Cacheu mandava primeiro pedir seguro enquanto ali estivesse, para não o prenderem, e como se achavam todos seguros pelo rei de Bissau o qual não queria que fossem molestados, zombavam das ordens passadas pelos capitães-mores e nem respondiam a elas, por isso que se sentiam fortalecidos pelos gentios, bem conhecedores da pouca força de que dispúnhamos. O capitão-mor lembrava como melhor alvitre a reedificação da fortaleza de Bissau outra vez, porque com ela se evitaria o comércio que os franceses estavam fazendo. Concordou-se com a reedificação da fortaleza, mas o Conselho Ultramarino discordou com o fundamento de que Portugal não tinha meios para conservar e sustentar o presídio e também pela inconstância dos negros e reis de Bissau, motivos por que tinha el-rei mandado demoli-lo. O Conselho Ultramarino recomendava que todas as atenções deviam ser dadas a Cacheu que era a principal praça da Guiné e D. João V concordou com o parecer do Conselho Ultramarino".
É sem dúvida um período de franca decadência. Vamos agora dar atenção ao período de 1750 a 1777 correspondente ao reinado de D. José.
(continua)
Bibiana Vaz, grande negociante de Cacheu
Pormenor da Fortaleza de Cacheu
____________Nota do editor
Último poste da série de 29 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22853: Historiografia da presença portuguesa em África (296): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (1) (Mário Beja Santos)
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