sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22886: Notas de leitura (1406): CCAÇ 1550 - Quando a história de uma unidade militar ajuda a perceber a evolução da guerra da Guiné (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Relendo este terno memorial da CCAÇ 1550, surgiu a reflexão de que toda a descrição feita da chamada região Xime-Bambadinca entre 1967 e 1968, e a própria área de atuação desta unidade veio a conhecer bastantes alterações. Naquele período as tabancas em autodefesa conheciam o reforço pelas tropas do Xime, o destacamento do Enxalé fazia parte de uma outra unidade militar, Bambadinca vivia em paz, e temos por hábito esquecer que o PAIGC e as populações em que se apoiava tinham posições relativamente consolidadas desde o segundo semestre de 1963. A região Xime-Bambadinca em que vivi e combati, tornou-se mais agressiva, retirámo-nos de algumas posições, gerando vazios favoráveis à guerrilha. Em suma, o nosso dever de memória, temos que aceitar com humildade, está profundamente marcado por uma dinâmica que ultrapassa grandemente o tempo em que permanecemos neste ou naquele espaço, não se pode confundir a árvore com a floresta.

Um abraço do
Mário.



Quando a história de uma unidade militar ajuda a perceber a evolução da guerra da Guiné

Mário Beja Santos

Não é primeira vez que aqui se refere este singelo memorial referente à CCAÇ 1550, que esteve na Guiné entre 1966 e 1968, edição de José Marques de Valente e de DG Edições, 2018[1]. Para o coordenador, que nos recorda que este livro tem 170 autores, o essencial é que não se perca a memória destes combatentes, partiram de Santa Margarida em 20 de abril de 1966 e chegaram a Bissau cinco dias depois; no dia seguinte foram até Farim, escoltados por dois grupos de combate reforçados; dias depois seguiram para Binta e Guidage. Binta não lhes pareceu pior do que outros lugares como Jumbembem, Cuntima ou Bigene, toda esta área tinha quatro companhias do batalhão de Farim, a principal base do PAIGC nas proximidades situava-se no corredor da Sambuiá, numa região entre Binta e Bigene. A CCAÇ 1550 ficou em Binta com um pelotão de caçadores nativos, um grupo de combate reforçado foi para Guidage.
Curiosa é a descrição de Binta:
“Era um conjunto de quatro ou cinco grandes armazéns que serviram para recolha de mancarra, caju, madeiras e outras matérias-primas, três ou quatro casas coloniais de um só piso e uma tabanca com duas ou três dezenas de habitações da população civil e milícias. Os armazéns, ocupados pela tropa ficavam encostados à área de atracagem dos barcos, junto de um pequeno cais de madeira. As casas de alvenaria, uns trinta metros retiradas e a tabanca mais uns cinquenta metros para o interior, junto da pista de terra onde aterravam avionetas militares e civis”. Descreve a organização da defesa e lembra-nos que durante os oito meses que permaneceram em Binta não se verificaram ataques violentos ao aquartelamento. Procurou-se saber junto da população a razão de não serem atacados e a explicação encontrada era de que tratavam bem a população civil e havia armadilhas à volta do quartel. E o autor refere não só os cuidados sanitários pela população portuguesa como senegalesa, o funcionamento das escolas, a diversidade dos patrulhamentos. A CCAÇ 1550 pertencia organicamente ao BCAÇ 1888 e daí, passados oito meses, terem sido transferidos para a região do Xime, constituído pelo destacamento do mesmo nome, o de Ponta do Inglês, e o apoio a Taibatá e Demba Taco, havendo ainda um destacamento em Samba Silate e um outro destacamento em Galomaro. Na tabanca de Taibatá estava a sede do regulado de Bambadinca e o destacamento da Ponta do Inglês sofria inúmeras flagelações, o itinerário Xime-Ponta do Inglês era evitado por terra, o abastecimento da Ponta do Inglês fazia-se por via marítima. As emboscadas na estrada Xime-Bambadinca eram também frequentes. Descreve as instalações do Xime, a composição da população e como se processava a segurança do aquartelamento, desde o arame farpado aos abrigos, procuraram-se corrigir debilidades introduzindo paliçadas com três metros de altura. Presta-se homenagem aos picadores do Xime pela ajuda crucial que deram ao pessoal de minas e armadilhas para detetar e destruir minas antipessoal e anticarro, como igualmente o esforço do pessoal civil de Amedalai que picava o último troço da estrada até à ponte do rio de Undunduma – estes picadores do Xime era um grupo de militares da CCAÇ 1550, do Pel Caç Nat 53 e milícias do Xime, Taibatá e Amedalai".


O autor lembra a vida difícil do destacamento da Ponta do Inglês, referencia Taibatá, Samba Silate e Galomaro. É minucioso a descrever o armamento, as melhorias introduzidas em abrigos, ninhos de morteiro, postes de vigia, manutenção do arame farpado, o Memorial é profundamente ilustrado, ficamos a conhecer a capela, o interior da messe de oficiais, esta composta de quatro caravanas que terão vindo da equipa técnica agronómica que trabalhara em Fá Mandiga. Há dados curiosos neste relato, veja-se um deles: “Na zona mais alta, para além do arame farpado, onde se situava o nosso posto de vigia norte, havia uma zona que fora cemitério, pois ainda havia restos de lápides funerárias e de campas de um pequeno cemitério, com lápides ainda visíveis cuja inscrições se liam nomes e referências de alemães, flamengos e holandeses. Pelas datas deduzia-se ocupação dos séculos XVIII/XIX”. Nesta época o Corubal já não era navegável, uma das lanchas que se aventurou até às imediações do Saltinho regressou com umas dezenas de impactos de projéteis.

Comenta a natureza dos abastecimentos, fala de prémios, louvores e condecorações; e segue-se um repositório muito terno de fotografias de todos os militares, fotografias do tempo da campanha e atuais, não faltam mesmo fotografias das tabancas em autodefesa como Taibatá ou Demba Taco, havia no Xime padrões da CCAÇ 1550 e do Pel Caç Nat 53, e dá-se a lista de todos os falecidos, contam-se histórias, seguem-se os encontros posteriormente realizados.

A que título se retoma a leitura deste Memorial? Circunscrevendo as observações à região do Xime-Bambadinca, e como se vê estamos num período entre 1967 e 1968, e tendo eu chegado à região de Bambadinca em agosto de 1968, que aconteceu, entretanto? Indo um pouco atrás, o combatente do PAIGC, Domingos Ramos, em meados de 1963, atravessou o Corubal e sublevou toda a região norte do Xime, populações, milícias e depois bi-grupos irão ficar instalados na Ponta Luís Dias, Tabacutá, Mina, Galo Corubal, com pleno acesso a bolanhas no Poidom, fertilíssimo, um pouco mais abaixo, também se instalaram em dois locais, Baio e Burontoni. Todas as operações feitas pelas tropas portuguesas não conseguiram desalojar as populações e os grupos armados destes locais, ao longo de toda a guerra. O Coronel Hélio Felgas concebeu uma operação de envergadura, Lança Afiada, cerca de 12 dias, um fortíssimo contingente, resultados praticamente nulos, os guerrilheiros e populações limitaram-se atravessar o Corubal e aguardar a retirada das nossas tropas. Samba Silate perdeu população, tornou-se terra de ninguém, faziam-se patrulhamentos, era inequívoca a passagem de guerrilheiros de um lado para o outro do rio Geba, ou mesmo das bases no interior do regulado do Xime; Bambadinca viveu na paz do Senhor até 28 de maio de 1969, nesta data sofreu a primeira flagelação, montaram-se novos dispositivos de defesa, um deles a segurança em torno da ponte do rio de Undunduma; a presença da guerrilha em Ponta Varela, a escassos quilómetros do Xime, era reconhecida, tentavam impedir a circulação das embarcações civis, nalguns casos tiveram êxito; e a partir de 1970 tornaram-se cada vez mais agressivas as flagelações e as práticas terroristas nas populações de Demba Taco, Taibatá e Moricanhe. Decidiu-se abandonar a Ponta do Inglês, em 1968, Moricanhe foi abandonada em 1970, as infiltrações do PAIGC cresceram para a região do Xitole. Galomaro mudou de sector. Quando cheguei à Guiné ia-se calmamente de jipe de Bambadinca a Galomaro, em finais de 1969 houve necessidade de fazer colunas, com a retirada de Madina de Boé a presença subversiva acentuou-se. Muito mais aqui se podia dizer para lembrar a todos que o vimos numa comissão podia alterar-se substancialmente nos anos longo a seguir, como aqui se mostra na região de Xime-Bambadinca. É uma simples chamada de atenção que qualquer uma das nossas comissões não passou de uma minúscula parte (mesmo que muito dolorosa) de um todo (que nos obriga à sequência cronológica e a descrever factos e feitos, em que o mais relevante terá sido o desequilíbrio do nosso armamento comparativamente ao do PAIGC, que veio permitir, já bastante perto do final da guerra que este se tivesse preparado para um quadro ofensivo onde era maleável a utilização da guerrilha com métodos de guerra convencional).
Para que conste, e não tenhamos a ilusão do que a nossa árvore é mais do que a floresta.


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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 8 DE MARÇO DE 2021 > Guiné 61/74 - P21983: Notas de leitura (1345): "Memorial, O livro dos 172 autores", da CCAÇ 1550 (Binta e Xime, 1966/68), DG Edições, 2018 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 3 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22872: Notas de leitura (1405): "Descobrimento Primeiro da Guiné", por Diogo Gomes; Edições Colibri, Junho de 2002 (Mário Beja Santos)

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