quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22882: Manuscrito(s) (Luís Graça) (208): "Janeiro, gear; Fevereiro, chover; Março, encanar; Abril, espigar; Maio, engrandecer; Junho, aceifar; Julho, debulhar; Agosto, engravelar; Setembro, vindimar; Outubro, revolver; Novembro, semear; Dezembro, nasceu Deus para nos salvar".

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Lourinhã > Natal de 2021 > Um dos 60 presépios de rua > Hall da igreja paroquial da Lourinhã... A minha neta, Clarinha, também se quis associar à "festinha do menino Jesus", deixando, com a maior das inocências, junto às ovelhinhas,  a boneca de trapos, "Clara", e o "João Ratão"... O Natal, se ainda tem magia, é para as crianças...Nós, há muito que perdemos a "inocência", espero bem que não tenhamos perdido de todo a capacidade de "maravilhamento"... (por exemplo, quando "revisitamos" a nossa infância).


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O Natal de há 70 anos quando o Pai Natal 
ainda não tinha morto o Menino Jesus...


(...) 33. E no Natal ?!... Lembras-te do Natal, quando ainda o Pai Natal não tinha morto o Menino Jesus ?! E ainda não havia luzinhas, “made in China”, a não ser as das velas ou do candeeiro a petróleo ?!…

Não, não havia o stress de Natal que há hoje, na cidade grande... Não havia nada disso na aldeia onde tu nasceste há mais de 7 décadas. Ainda o Pai Natal não existia, pelo menos o Pai Natal da Televisão e dos centros comerciais. Não havia televisão, nem eletricidade nem centros comerciais. Muito menos corrida às compras, com medo que o mundo acabasse, o bacalhau desaparecesse, e as estantes do hipermercado ficassem vazias...

Ia-se à missa do Galo, à meia noite em ponto, na igreja do Castelo, tumular, tudo escuro como breu, e só depois, a tiritar de frio, de regresso a casa, logo ali, na Rua dos Valados ou do Castelo,  a 200 metros, é que se bebia o cacau quente e se comiam os coscorões, o arroz doce e as filhós de sangue de galinha!...

Só não gostavas era dessa parte do sacristão passar imagem do Menino Jesus ao longo dos bancos corridos e dar a beijar, aos fiéis, o seu pezinho, lambuzado… (Não dizias, mas já então achavas que era uma santa… porcaria!)

Mas nem por isso o Natal deixava de ter magia. Punha-se o sapatinho, limpo, engraxado, na chaminé, para no dia seguinte, de manhã cedo, ir recolher a(s) prenda(s) do Menino Jesus.

E só de manhã, cedo, é que te levantavas, em alvoroço, para saber a prenda que o Menino Jesus te deixara, no sapatinho, na chaminé, por detrás do fogão a petróleo, de marca Hipólito: um lenço, umas peúgas, um chupa-chupa, um brinquedo de chocolate, embrulhado em tosco papel de prata! ... 

O Menino Jesus “que era tão pobre como nós”, dizia a tua catequista, mas a verdade é que ele já tinha uma fábrica de chocolates e de chupa-chupas, além de outra de fazer meias, o que fazia confusão aos putos naquele tempo. Como é que ele podia distribuir tantas guloseimas e tantas outras prendinhas, por tantas chaminés e por tantas ruas da tua aldeia ?

Parca prenda para quem fora todo o ano um menino bem comportado, temente a Deus, cumpridor dos seus deveres, amigo dos seus pais e manas, diligente, obediente e inteligente!...

Os meninos ricos tinham sempre muito mais prendas, mesmo que dessem muitos erros de ortografia e muito menos soubessem, como devia ser, a tabuada e o catecismo.

(...) 20. Havia o ouro, o incenso e a mirra, os três reis magos, mais os seus camelos, e um deles era o “pretinho da Guiné” (. Sabias lá tu onde era a terra dele!...O teu pai dizia que era lá longe, para lá de Cabo Verde… Mas devia ser também longe, da Guiné até Belém. Ainda não havia, naquele tempo, o globo terrestre azul Frost, com luzinha lá dentro para o teu pai apontar com o dedo a minúscula ilha de São Vicente.)

Havia o presépio, havia a água benta. Como tu gostavas de fazer o sinal da cruz na tua testa com a água benta que estava à entrada da igreja, numa pia de pedra cheia de musgo ou verdete, aonde mal chegavas. Havia quem molhasse com ela a ponta da língua: sabia a água choca, e a limo, diziam-te os outros meninos da catequese. Nunca a provaste, como medo de apanhar uma doença. (Mas como é que te podia fazer mal se era água santa ?!, inquietava-te o “caixa d’óculos” que ajudava à missa, alternando contigo, só para pôr à prova a tua fé inabalável.)

Ah!, o incenso, ligeiramente enjoativo das missas, mas pior ainda era o cheiro das velas a arder. E pior ainda a pregação do pregador franciscano que nunca mais acabava, em dia de sermão e missa cantada, e o povo a bocejar de tédio, e a fazer as contas à vida, à décima a pagar nas finanças, e à côngrua para o senhor vigário, e ao sulfato para sulfatar a vinha do Senhor, ao medo que guardava a vinha, e à roupa na barrela que era preciso estender ao sol… Ou a pedir a graça do Santo Antonino para proteger o porquinho. Ou à Nossa Senhora de Fátima para livrar o rapaz que estava lá em casa de, depois das sortes e da tropa, ir parar à India e, mais tarde, a Angola, Guiné ou Moçambique.

E, se calhar, havia também quem tivesse maus pensamentos, como o Frasco do Veneno. Sim, tinha maus pensamentos, confessava-te ele, só não dizia asneiras, dentro da igreja, com medo de ser fulminado por um raio do Espírito Santo, em dia de trovoada, ou por uma língua de fogo ao pôr-do-sol, atravessando uma das janelas com vitrais.

Ah!, e a seca do terço mariano no mês de maio (que te perdoe a Nossa Senhora de Fátima, por invocares o seu nome em vão!, acrescentaria a tua mãe, se te ouvisse)…

Havia, enfim, o sagrado e o pagão, a lavoura, os lavores, masculinos e femininos, o solstício do inverno e o solstício do verão, e tudo a isto, ou só a isto, se resumia o acanhado palco do teatro da vida que te coubera em sorte. Sorte pequena, nunca te calhará a grande. A grande, essa, só poderia ser o céu, no fim da vida, se até então vivesses na graça de Deus, afiançava o padre vigário. E tu acreditavas, porque tinhas fé. E mal de ti quando a perderes, ameaçava-te o confessor. E tu estremecias de terror, só de ouvir as suas maldições.

E era a tua mãe quem, numa velha máquina de costura, Singer, te fazia os lençóis, os lenços, as camisas, os calções e as cuecas e o resto da roupa, incluindo a domingueira, a de ir à missa. A tua e a das tuas manas.

Eram poucos os prazeres da vida. E muitas as canseiras. O teu pai sabias-as de cor, mesmo não sendo lavrador como os seus fregueses ou o ti’Dolfo. Comprava todos os anos o “Borda d’Água” e lá ia soletrando contigo…"Janeiro, gear; Fevereiro, chover; Março, encanar; Abril, espigar; Maio, engrandecer; Junho, aceifar; Julho, debulhar; Agosto, engravelar; Setembro, vindimar; Outubro, revolver; Novembro, semear; Dezembro, nasceu Deus para nos salvar". (...)


Luís Graça 

(Excertos de um manuscrito com memórias poéticas da infância, que este ano pode dar livro...se arranjar editor!)
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8 comentários:

Mário Migueis disse...


Pelos vistos, no teu Natal, só faltavam as "Novenas ao Menino", que, por aqui, aconteciam durante o mês de Dezembro e juntavam a criançada toda da vila para cantar os hinos ao Menino-Jesus:
"Ó Infante, suavíssimo,
Não estejais encoberto,
Saí a remir o mundo,
Saí a remir o mundo,
Ponde-vos a descoberto. (?!)
Imagina a confusão antes, durante e depois de cada novena (era o padre a ralhar, o sacristão aos puxões de orelhas...)
Quanto aos editores, já os vejo perfilados...

Valdemar Silva disse...

'..N.Sra. de Fátima para livrar a rapaz..... ir parar à Índia...Angola, Guiné ou Moçambique'.
Coitadas das nossas mães, não sabiam que obrigavam a Nossa Senhora a não aceitar pedidos de acabar com a guerra, quanto muito podia aceitar pedidos de regressos sem grandes ferimentos.

E venha o Livro.

Valdemar Queiroz

José Teixeira disse...

Deixaste-me absorto a pensar: como foi possível mudar tanta coisa ?! O poder dos “média” é infernal. Tanta magia e encanto que se foi para sempre. Essa do menino Jesus ter uma fábrica de meias e outra de chocolate é de mestre. O meu tinha uma padaria, penso eu, pois tinha sempre uma rosca (regueira) para fazer sopas de café (mistura de cevada e chicória) e uma fábrica de tamancos.
Excelente texto. Venha o 📕.
Abraço fraterno e continuação de bom ano.
Zé Teixeira

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Zé, perguntas (e bem): como foi possível mudar tanta coisa ?!... Mudámos, numa geração, muita coisa para o bem e para o mal... Não vale a pena listar os horrores... Pensemos também nas coisas boas de que fomos autores ou coautores, a nossa geração...

Obrigado pelo teu incentivo. Acho que vou mesmo publicar um livrinho para oferecer aos amigos e familiares...LG

Fernando Ribeiro disse...

A questão não está tanto no tempo (antigamente versus agora), mas no lugar (campo versus cidade).

Eu esclareço: aqui no Porto, o Natal não mudou tanto assim. Desde a minha mais tenra idade, sempre ouvi falar no Pai Natal, simultaneamente com o Menino Jesus. Havia luzinhas, que não eram "made in China", mas eram elétricas e iluminavam profusamente as ruas e as montras das lojas (com bonecos do Pai Natal à mistura com os artigos à venda), além de música natalícia pelo ar.

O stress do Natal, no Porto, era tanto como há dois anos (sem pandemia, portanto). Não havia centros comerciais e, por causa disso, toda a gente ia às compras à Baixa da cidade, que ficava a abarrotar de gente e de trânsito, porque também não existia rede de metro. Posso mesmo afirmar, sem errar muito, que toda a gente que vivia dentro de um raio de 50 km à volta do Porto vinha à cidade fazer as suas compras de Natal. Poderemos perguntar: «Então em Penafiel, Famalicão ou S. João da Madeira não havia lojas? Não se vendia bacalhau nas mercearias dos arredores? Era preciso ir ao Porto?»

Era preciso ir ao Porto. "Ir ao Porto" era um acontecimento, porque o Porto tinha uma profusão de lojas a transbordarem de artigos, que as pessoas se apressavam a comprar, a começar pelo bacalhau. Até parecia que o bacalhau comprado numa mercearia afamada do Porto era melhor do que o que era comprado na mercearia da esquina, embora fosse igualzinho e viesse da mesmíssima "seca". As pessoas faziam bicha (naquele tempo ninguém fazia "fila"; faziam bicha mesmo) para comprarem bacalhau na Casa Oriental (a que tinha o bacalhau mais famoso da cidade), que ficava a poucos metros da Torre dos Clérigos, na Casa Chineza (com Z), na Rua de Sá da Bandeira, ou na mercearia do sr. Bismarck (um alemão de cabelo completamente branco à escovinha), que ficava mesmo em frente à estação de S. Bento.

O stress do Natal, no Porto, é agora o mesmo que o da minha infância, com a diferença de que agora ele mudou-se da Baixa para os centros comerciais. Mesmo assim, a Rua de Santa Catarina resiste à mudança e mantém o mesmo frenesim de outros tempos.

Valdemar Silva disse...

A propósito do Natal da minha infância, recordo-me do primeiro passado em Lisboa.
Sair de Afife, do candeeiro a petróleo e do "lume" de pinhas e latos* secos, com meia dúzia de casas e candeeiros de rua com electricidade, e chegar a Lisboa da luz eléctrica e do fogão Hipólito foi deslumbrante. De ficar de boca aberta foi ir à Baixa ver as montras animadas com bonecada a mexer-se, as ruas cheias de gente e todas com grande e colorida iluminação.
Mas, o ter ido com amigo lá da rua e a sua mãe comprar um peru foi muito engraçado.
Nas traseiras do Mercado do Matadouro (Saldanha-Fontes P. Melo, hoje edifício da PT) que dava para a Pç. José Fontana (Liceu Camões) vendia-se perus que andavam à solta na rua, assim como noutros locais de Lisboa.
Havia vários vendedores de perus e a D. Maria, mãe do meu amigo, dizia-me 'vais ver como se compra mais barato'. Então, ela chegava-se a um vendedor perguntava quanto custava certo peru, que seria p.ex. 80$00 que ela dizia ser muito caro e ao mesmo tempo virava-se para outro vendedor mais afastado e gritava 'o quê, aí é mais barato?' e ia ter com o outro vendedor e começava a cena que eu achava engraçada. Sim senhor, vê-se logo que você é pessoa séria, dizia a D. Maria ao vendedor, e perguntava 'quanto custa o peru?'. É a 80$00 freguesa, respondia o homem vestido à saloio com barrete preto, comprido e caído para trás.
Ora essa, então você chamou-me e eu desisti de comprar acolá por 60$00 e agora leva-me a 80$00, dizia a D. Maria com a voz mais alterada. E andava nisto quase a tarde toda até conseguir um peru por 70$00, e eu sempre à espera no que ia dar cada regateio.
Tinha onze anos, que maravilha.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

*latos, galhos secos e grossos dos pinheiros.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Diz o Zé Teixeira:

"Essa do menino Jesus ter uma fábrica de meias e outra de chocolate é de mestre. O meu tinha uma padaria, penso eu, pois tinha sempre uma rosca (regueira) para fazer sopas de café (mistura de cevada e chicória) e uma fábrica de tamancos."

Zé, naturalmente querias dizer "regueifa"... a tal rosca de "pão branco" que a malta do Norte adora... A primeira vez que vi, foi no Norte, quando comecei a lá ir em 1975...Curiosamente, é uma palavra de origem árabe, não sabia...

No Norte, em Candoz, no pós-guerra em que nasceu a Alice, o "luxo", para a "canalha" no Natal era comer "moletes" (equivalente ao nosso "papo-seco" de hoje, ou "pão de plástico") e beber "café" (que devia uma mistura de cevada e chicória) em "púcaras" de barro... São os sabores natalícios que ela e os irmãos ainda hoje guardam na memória...


regueifa
regueifa | n. f.

re·guei·fa
(árabe andaluz ar-rgaifâ, do árabe rgafa)
nome feminino
1. Pão de trigo de forma geralmente entrançada.Ver imagem = ROSCA

2. Bolo feito de farinha muito fina.

3. Fogaça.

4. [Figurado] Prega ou dobra de gordura na cara ou no corpo.

5. [Portugal, Informal] Conjunto das nádegas.

6. [Portugal, Informal] Ânus.


"regueifa", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/regueifa [consultado em 08-01-2022].
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molete | n. m.

mo·le·te |ê|
(mole + -ete)
nome masculino
[Portugal: Norte] Pão pequeno e mole, de trigo.


"molete", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/molete [consultado em 08-01-2022].

José Teixeira disse...

Luís
Pretendia escrever regueifa e saiu regueira. As minhas desculpas aos estimados leitores e agradecimentos ao Luís Graça pela correção.

Quanto ao molete, também chamado trigo vem do tempo das invasões francesas. Diz a lenda que um batalhão de soldados de Napoleão comandados por um tal general Molet se instalou no vale de Valongo. Para alimentar os soldados fez um acordo com um padeiro em fabricar um tipo de pão com um formato e massa própria - O pão do Molet. Os franceses foram-se embora, mas o tipo de pão e o nome ficou para a história espalhando-se por todo o Norte de Portugal. Ainda hoje assim é conhecido - Trigo. molete ou simplesmente pão.

O Germano Silva dá-lhe outra origem.
Um Tal Reyman servia no seu restaurante um pão mole que ele mesmo confecionava a que chamava pão mollete.

Zé Teixeira