segunda-feira, 13 de março de 2006

Guiné 63/74 - P605: Estórias cabralianas (6): Sexa o Caco (Baldé) em Missirá...

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Regulado do Cuor > Missirá > Março de 1970> O Humberto Reis, em reforço, com o 2º Gr Comb da CCAÇ 12, do destacamento de Missirá, posa para a fotografia com um troféu de caça a seus pés: na ocasião um antílope, apanhado pelos homens do Pel Caç Nat 54 ou algum caçador local. O destacamento de Missirá ficava a norte do Sector L1, já em terra de ninguém. A sul ficava o destacamento de mílicia e a tabanca em autodefesa de Finete, na margem direita do Rio Geba, frente a Bambadinca (LG).

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Regulado do Cuor > Missirá > Março de 1970 > Esquartejamento de uma peça de caça grossa (um antílope, segundo me parece) caçado na zona de acção do Pel Caç Nat 54 (que em Novembro de 1969 tinha vindo render o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos). 

Na foto vê-se o comandante do Pel CaÇ Nat 54, o Alf Mil Correia. Meses mais tarde, o Pel Caç Nat 54 será substituído pelo Pel Caç Nat 63, do Alf Mil Cabral. Como se pode avaliar pelas duas fotos, Missirá era uma terra aonde dificilmente chegava o Regulamento de Disciplina Militar, o famoso RDM, ou seja, o poder de Bissau, o que aliás é testemunhado por mais esta bem-humorada estória cabraliana, que a seguir se publica... (LG).

Fotos do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto; © Humberto Reis (2006): Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Quando SEXA o CACO, em Missirá, ia perdendo o dito (1)

por Jorge Cabral

(Jorge Canral: ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71; hoje, advogado e professor universitário.

A mensagem que o Jorge me mandou: "Luis Amigo e Companheiro, aí vai o relato da visita do Caco. Infelizmente não foi filmada... Um grande abraço, Jorge".... O episódio passa-se em Dezembro de 1970...)


Poucos dias faltavam para o Natal, e a tarde estava quente. Todo nu no meu abrigo, fazia a sesta, quando sou despertado por enorme algazarra misturada com os ruídos do helicóptero.
— Alfero, Alfero, é Spínola! 
— gritam os meus soldados (2).

(Estou tramado, o quartel está uma merda. Que visto? Apresento-me em estado de nudez? Não há tempo a perder. O pássaro já poisou e o General avança. Enfio uns calções antigamente verdes, umas chinelas, e claro uma boina, para poder fazer a devida continência).

Eis-me assim, garboso Comandante, apresentando a tropa, e os milícias, todos eles mal fardados, como era habitual.

Sua Excelência, pede um intérprete, pois vai botar discurso. E começa:
— Debaixo desta bandeira…  e aponta o braço na direcção onde pensava que a mesma existia.

Fica-lhe o braço no ar, mas continua:
 ... A Pátria…   e notando a atrapalhação do tradutor, pergunta-lhe:
—  Sabes o que é a Pátria?
 
— Não  responde aquele.

(Lixei-me! Vou ser despromovido, talvez preso. Dentro de mim um turbilhão de maus presságios começa a fervilhar. Mentalmente preparo réplicas. Não é necessária bandeira, pois a Pátria está dentro de nós, e por isso, meu General, é indefinível, responderei).

Mas o Caco nada me pergunta. Vem acompanhado de três majores e um capitão. Querem ver tudo. Primeiro a Escola. Onde funciona?

(Escola? Qual Escola? Pensa rápido, Jorge! Inventa!)

 Sabe, meu Major, estas crianças também frequentam o ensino corânico, que decorre ao ar livre. Por isso considerei que a nossa escola não devia ser enclausurada, pois tal podia traumatizá-las.
 Ainda assim…  — começoi o Major, impedido de continuar por um olhar do Com-Chefe.
— E o Heliporto?  indagou um outro Major.  — Parece  muito atrasado.
 —É  que, meu Major, faltam os materiais e também operários especializados.
 
— Operários especializados? Então e os seus soldados?!
 — Todos homens de Fé, meu Major. Tirando a actividade operacional, dedicam-se à reflexão.

Nem respondeu este Major. Logo outro se adiantou, interrogando o Amaral, sobre as povoações mais próximas. Em sentido, sério, calmo, respondeu o Amaral:
- Mato a Norte, mato a sul, mato a leste, mato a oeste, meu Major.

(Ah! Grande Amaral, vais fazer-me companhia na porrada!)
Mas o pior estava para vir! Sua Excelência queria testar o plano de defesa:
- Qual o sinal, nosso Alferes?
- Uma granada - improvisei eu.

Tendo-me dirigido à arrecadação não encontrei nenhuma granada ofensiva. Peguei então numa defensiva, e zás, lancei-a. Tudo tremeu! Manteve-se de pé o General, mas o caco caiu.

Entretanto os meus soldados, querendo mostrar heroicidade, encostaram-se ao arame, de peito descoberto, alguns mesmo sem arma.

(Agora sim, está tudo perdido! Que vergonha! E logo eu, neto de um herói de Chaimite).

Recomposto o Caco, olhou-me uma última vez e disse:
 
— Já vi tudo!.

Ao encaminhar-se para o helicóptero, ainda lhe ouvi comentar para a comitiva:
Porra, que não é só o Alferes! Estão todos apanhados!

Deve porém ter ficado impressionado, pois três dias depois voltou. Eu não estava. Tinha ido a Fá, buscar uma garrafa de whisky, prenda mensal do Capitão João Bacar Djaló (3). Contou-me o Branquinho (4) que quando o informaram da minha ausência, Sua Excelência exclamou:
 
— Ainda bem!

© Jorge Cabral (2006)
_____________

Notas de L.G.

(1) Caco (ou Caco Baldé) era a a alcunha por que era mais conhecido o General Spínola entre os seus soldados. O termo, Caco,  queria referir-se ao vidrinho ou monóculo que ele usava... Baldé era um dos apelidos mais vulgares entre os fulas, aliados de Spínola... Vd postes de:

29 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXIV: Recordações do 'Caco Baldé' no Xitole

24 de SDetembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCX: Oficial do Estado Maior do 'Caco'... por duas horas

(2) Este tipo de visita-surpresa, na quadra festiva (Natal e Ano Novo), por parte do Com-Chefe, António de Spínola, era frequente: vd. post de 3 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXVI: Herr Spínola na ponte do Rio Undunduma

Trata-se de um excerto do meu diário (Diário de um tuga):

(...) "Ponte do Rio Undunduma, 3 de Fevereiro de 1971: De visita aos trabalhos da estrada Bambadinca-Xime, esteve aqui de passagem, com uma matilha de cães grandes atrás, Sexa General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe (vulgo, o Homem Grande). Eu gosto mais de chamar-lhe Herr Spínola, tout court. De monóculo, luvas pretas e pingalim, dá-me sempre a impressão de ser um fantasma da II Guerra Mundial, um sobrevivente da Wermacht nazi"(...).

(3) Capitão da 1º Companhia de Comandos Africanos, na altura sediado em Fá Mandinga: vd post de 11 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

(4) Furriel Miliciano do Pel Caç Nat 63: vd post de 7 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXIX: O básico apaixonado (estórias cabralianas)

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