quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24726 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (10): I want you, dead or alive!



O célebre Tio Sam, desenho por J.M. Flagg... Cartaz norte-americano, de 1917, inspirado no original britânico, de 1914. Foi usado pelo exército norte-americano para recrutar soldados tanto para a Primeira como para a Segunda Guerra Mundial. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikipedia.


À memória:

do Umaru Baldé,, menino de sua mãe,  que morreu de sida e tuberculose, no terminal da morte que dava pelo nome de Hospital do Barro, em Torres Vedras; membro da nossa Tabanca Grande a título póstumo);

do Abibo Jau (o gigante do 1º Gr Comb da CCAÇ 12, fuzilado em Madina Colhido, logo a seguir à independència da Guiné.Bissau);

do Joaquim de Araújo Cunha (1948-1970), que o Abibo Jau trouxe às costas, da antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, até Madina Colhido, o primeiro de seis mortos e nove feridos graves da Op Abencerragem Candente, em 26/11/1970, trágica lista onde se incluem os nomes do Ribeiro, do Soares, do Monteiro, do Oliveira, todos da CART 2715, e ainda o nosso guia e picador Seco Camará;

do cap art Victor Manuel Amaro dos Santos (1944- 2014),  primeiro cmdt da CART 2715, que começou a morrer nesse fatídico dia de 26/11/1970;

do Abdulai Jamanca (cmdt da CCAÇ 21, fuzilado também em Madina Colhido que eu conheci em Fá Mandonga, por ocasião da formação da 1ª CCmds Africanos);

do Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015). membro da nossa Tabanca Grande, e o único comando africano, ao que se saiba, que escreveu e publicou em vida as suas memórias;

do Iero Jaló (o 1º morto em combate, da CCAÇ 12, em 8/9/1969);

do Manuel da Costa Soares (sold cond auto, da CCAÇ 12, morto em Nhabijões, em 13/1/1971, por uma mina A/C, sem nunca ter chegado a conhecer a sua filha);

do Luciano Severo de Almeida (furriel mil, da CCAÇ 12,  que "morreu de morte matada", já como paisano, após o regresso da guerra, em data que ninguém sabe precisar);

do José Carlos Suleimane Baldé (c. 1951-2022), que chegou a estar encostado ao poilão de Bambadinca para ser fuzilado. tendo sido salvo 'in extremis' pelos homens grandes de regulado Badora; membro da Tabanca Grande;

do António da Silva Baptista (1950-2016), o "morto-vivo" do Quirafo, membro da nossa Tabanca Grande;

 de todos os demais camaradas  de armas, brancos e pretos, mortos em combate no TO da Guiné, ou feitos prisioneiros, ou abandonados à sua sorte, depois do regresso a casa ou da independência da Guiné-Bissau;

de todos os soldados desconhecidos de todas as guerras;

enfim, dos mortos da minha terra que lutaram pela pátria na batalha do Vimeiro,  em 21 de agosto de 1808.
 

I want you, dead or alive!


F_d_r_m-te, meu irmão! Enganaram-te, meu irmãozinho! Traíram-te, amigo! Deixaram-te para trás, camarada!

Não, não era este país milenário que vinha no cartaz de promoção turística, com montes, vales,  montados, e charnecas, com rios, praias e enseadas, com fama de gente patriótica, clima ameno e aprazivel, riqueza gastronómica, brandos costumes e forte sentido identitário. 

Não, não era esta a terra prometida onde corria o leite e mel... 

“I want you”, disseram-te eles, e tu respondeste sem hesitar: “Pronto!”. 

Meu tonto, disseste "presente!", mesmo sem poderes avaliar todas as consequências presentes e futuras da tua decisão, em termos de custo/benefício.

Decidiste com o coração, não com a razão, deste um passo em frente, abnegado e generoso, mesmo sem saberes onde era o distrito de recrutamento, e sem sequer conheceres o teatro de operações, o estandarte, o fardamento, a ciência e a arte da guerra, o comandante-chefe ou até mesmo a cara do inimigo. Nem sequer o RDM, o regulamento de disciplina militar nas principais línguas do mundo.

Um homem não vai para a guerra sem fixar a cara do inimigo, sem reconhecer a voz do inimigo, pode ser que seja teu pai, mãe, irmão, irmã, vizinho, amigo, ou até mesmo um estrangeiro, um pobre e inofensivo estrangeiro, apanhado à hora errada no sítio errado, num dos setes caminhos de Santiago ou na peregrinação a Meca. 

Camarada, um homem não mata outro homem só porque é estrangeiro, ou é branco, ou é preto, ou tem os olhos em bico. Ou só porque não pensa ou não sente como tu. Ou não come carne de porco como tu. Um homem não puxa o gatilho ou saca da espada, sem perguntar quem vem lá!

Enfim, não se mata um homem, de ânimo leve, gratuitamente, só porque alguém o elegeu como teu inimigo. Malhado ou corcunda, tuga ou turra, rojo ou blanco, cristão ou mouro, comunista ou fascista, bárbaro ou romano.

Não, meu irmãozinho, não eram estes outdoors e muros grafitados, ao longo da picada, não, não era este trilho, que era pressuposto levar-te do cais do inferno do Xime às portas do paraíso em Bagdá..

Sim, porque no final, meu irmão, há sempre alguém a prometer-te o paraíso, o olimpo, o panteão nacional ou a cruz de guerra com palma, um coro de anjos e querubins, ou a prenda nupcial das 72 virgens  para os mártires.... em troca da dádiva suprema da tua vida, do teu corpo, da tua alma ou da tua liberdade (no caso de teres o azar de ser apanhado à unha pelo inimigo que te espreita por detrás do bagabaga).

Todos te querem, todos te queremos. "I want you”, sim, quero-te, mas por inteiro, quanto mais não seja para tirar uma fotografia contigo, beber um copo contigo, não vales nada cortado às postas, decepado, decapitado, dinamitado, ou, pior ainda, perdido, errático, com stress pós-traumático,  sem bússola nem mapa, levado para o campo de prisioneiros do Boé ou fuzilado no poilão de Bambadinca ou de Madina Colhido. Ou para forca de Ariz dos anos sombrios das nossas guerras fratricidas de 1828-1834.

Fuzilado, és um cadáver incómodo, apanhado, és um embaraço diplomático, pior do que tudo isso, doente psiquiátrico, apátrida, refugiado... Deixas de ter valor de troca, muito menos valor de uso, diz o comissário político da base central do Morés, de Kalashnikov em punho. 

Não, não foi este destino que compraste, com o patacão do teu sangue, suor e lágrimas, enganaram-te, os safados, os profetas, os iluminados, os gurus, os estrategas, os generais e os seus ajudantes de campo, os burocratas da secretaria, os recrutadores, a junta médica, os psicotécnicos, os instrutores e até os historiadores que escrevem direito  por linhas tortas.   Ou a corte que fugiu para o Brasil para que o Napoleão não pudesse apanhar a rainha louca e o seu filho primogénito, João.

“Guinea-Bissau, far from the Vietnam”, alguém escreveu no poilão de Brá ou na estrada de Bandim, a caminho do aeroporto, tanto faz, "Tuga, estás a 4 mil quilómetros de casa”. 

Ou então foi imaginação tua, pesadelo teu, deves ter sonhado com essa placa toponímica, algures, numa noite de delírio palúdico, deves tê-la visto a sul do deserto do Sará no avião da TAP de regresso a casa. Um pesadelo climatizado. Carregaste no botão errado. Ou então foi um erro de casting. Ou um sonho de menino esse de ires para os rangers, os páraa, oa comandos ou os fuzos.

Alguém sabia lá onde ficava a Guiné, longe do Vietname, alguém se importava lá com o teu prémio da lotaria da história, mesmo que em campanha te tenhas coberto de honra e glória!

Acabaram por te meter num avião “low cost” ou num barco de lata, ferrujento, deram-te um pontapé no cu ou cravaram-te a tampa do caixão de chumbo. "Bye, bye, my friend. Fuck you, man”. Nem sequer te desejaram "Oxalá, inshallah, enxalé, que a terra te seja leve!"

“País de merda!"... Tinha razão o polícia, racista, que te quis barrar a entrada no aeroporto de Saigão (ou era Lisboa ? ou era Amsterdão?). 

Quem disse que os polícias de todo o mundo são estúpidos ? Até o polícia racista entende o sofisma do país de merda: “Pensando bem, soletrando melhor, país de merda, país de merda, só pode ser o meu”.  Por que todos os outros fazem parte da rede turística do paraíso. 

Os gajos estavam fartos de ti, meu irmão, meu camarada, meu amigo. Os gajos pagavam-te, se preciso fosse, para se verem livres de ti, vivo ou morto, devolvido à procedência, usado e abusado.

“I want you, alive or dead”, porque na contabilidade nacional tudo tem de bater certo, diz o cabo RM, readmitido. Todo o que entra, sai, é o deve e o haver do escriturário, encartado, mesmo que seja merda: “Garbage in, garbage out”, se entra merda, sai merda, diz o gajo dos serviços mecanográficos do exército.

Procuraram-te por toda a parte, os fotocines, do Minho ao Algarve, do Cacheu ao Cacine, só te queriam fotogénico, bem comportado, escanhoado, ataviado, de botas engraxadas, se possível herói de capa e espada, medalhado, condecorado, de cruz de guerra ao peito, mesmo que viesses amortalhado, as persianas dos olhos fechadas,  as mãos sobre o peito em derradeira oração, o enorme buraco atrás das costas, feito por um bálizio de 12.7, cozido e recozido pelo cangalheiro da tropa.

E tu ? Sabias lá tu o que era a pátria, onde ficava a tabanca da pátria, onde começava e acabava o chão da pátria ?!...

 Muito menos sabias a geografia da guerra, as nossas geografias emocionais,  Aljubarrota, Alcácer Quibir, Vimeiro, Waterloo, Nambuangongo, lha do Como, Gandembel,  Guidaje, Guileje, Gadamael,  Madina do Boé, Ponta do Inglês, Madina/Belel, Morés, Caboiana, Fiofioli... Ah!, e La Lyz!... Ah, e  o desembarque da Normandia!... Ah!, e Dien-Bien-Phu onde combateste pela Legião Estrangeira!...

Conhecias lá tu, da pátria,  a anatomia e a fisiologia , o intestino grosso e delgado, o que é que a pátria comia, o que é que a pátria defecava, ou até mesmo o que é que a pátria sentia e pensava, se é que a pátria deveras sentia e pensava.

Queriam-te sedado, anestesiado, amnésico, de preferência, sobretudo amnésico, alienado, aculturado, desformatado, paisano, só assim eles te queriam de volta ao teu anódino quotidiano, à tua origem obscura, à tua Sintchã qualquer-coisa, ao teu Montijo, â tua Ventosa do Mar...

Meu irmão, meu pobre camarada, fizeste por eles o trabalho sujo que compete a qualquer bom soldado em qualquer guerra. Mas nem como soldado eles te trataram, nem sequer como mercenário te pagaram, em espécie ou em géneros.

Afinal a guerra acabou, como todas as guerras acabam, até mesmo a guerra dos cem anos teve um fim com o seu rol de mortos, feridos e desaparecidos, a sua nave de loucos, a sua vala comum dos esquecidos...

 “Para quê mexer agora na merda, ó nosso cabo ?!”, interpela o sorja da companhia. “Boa pergunta, meu primeiro, mas há muito já que eu não cheiro, a guerra embotou-me os sentidos”.

Luís Graça
Lourinhã, Vimeiro, 18/7/2015.

Reconstituição histórica da batalha do Vimeiro (21/8/1808).

Revisto em 1/9/2023, 84 anos depois do início da II Guerra Mundial.
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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de setembro de  2023 > Guiné 61/74 - P24626: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (9): Requiem para um paisano

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24725: O segredo de... (39): António Medina: O surpreendente reencontro, em Bissau, em junho de 1974, com o meu primo Agnelo Medina Dantas Pereira, comandante do PAIGC



Foto nº 1



Foto nº 2

Lisboa > Antiga sede do BNU,  na Rua Augusta, que hoje aloja o Museu do Design e da Moda (MUDE). Esculturas de Leopoldo de Almeida (1964), que representam a expansão do BNU como banco emissor pelos antigos territórios ultramarinos portugueses (Foto nº 2), e os respetivos escudos (Foto nº1), incluindo a Guiné (cujo escudo é o da direita, a contar de baixo para cima, inspirado no original, a seguir descrito

"Escudo composto tendo a dextra em campo de prata, cinco escudetes de azul, cada um com cinco besantes de prata em aspa e a ponta, de prata com cinco ondas de verde - pretendiam simbolizar a ligação à metrópole; a sinistra em campo de negro, um ceptro de ouro com uma cabeça de africano, alusão ao ceptro utilizado por D. Afonso V, rei de Portugal à época da exploração da região. Brasão de armas simplificado, de 8 de maio de 1935 a 24 de setembro de 1973."

Fonte: BNU. (Reproduzido com a devida vénia...)




1. O António Medina (ex-fur mil op esp, CART 527, 1963/65) (foto acima)  não é homem para levar segredos para o outro mundo (*)... Desde que aderiu ao nosso blogue, em 15/2/2014, já partilhou aqui connosco alguns, a começar pelo seu "desenfianço" em Bissau, quando estava destacado no Cacheu, e que lhe poderia ter valido uma dura pena de prisão... por "deserção" (**).

Recorde-se que o nosso veteraníssimo António Medina, hoje com 84 anos feitos, já aqui nos contou como é que andou três dias "desenfiado" em Bissau, por causa de uns primos que tocavam no conjunto "Ritmos Caboverdianos"... (Ah! A saudade, quando dá num ilhéu! )

Estávamos em meados de 1964 e o que valeu ao Medina, que já não era "pira", mas já andava "apanhado do clima", foi um taxista, seu patrício, cabo-verdiano, que aceitou o risco de o levar de volta, de Bissau até Teixeira Pinto, por mil pesos, sem qualquer escolta (!)...

A única arma que o Medina levava debaixo do assento da viatura, e0ra a sua pistola-metralhadora FBP (de que pouco lhe valeria em caso de mina A/C ou de emboscada)...

Em João Landim, na travessia do Rio Mansoa, deu boleia a uma mulher que vendia ostras, e que ele já conhecia do Cacheu (onde estava destacado)... E lá seguiu a "coluna solitária" até ao Canchungo: o Medina, a mulher, o taxista... A história, completa, desta "pequena loucura" já foi reproduzida no poste P14945 (**)

Talvez o facto de viver nos EUA há mais de 40 anos, facilite a apetência do Medina para "ir ao confessionário" mais vezes do que outros camaradas, mais contidos.

Mas nem todos os seus segredos, já aqui contados, constam da competente série, "O segredo de...", que já tem 4 dezenas de postes.(*)

Alguns dos segredos aqui partilhados são "segredos de... Polichinelo", que poderiam também ser contados por qualquer um de nós... Todos tivemos, afinal, durante o serviço militar (de pelo menos 3 anos), alguns "pecados e pecadilhos", que nunca confessámos a ninguém, nem às paredes do nosso quarto... Às vezes apenas por falta de interlocutor ou "confessor", ou de ocasião ou de ambiente, e não tanto por autocensura ou receio da censura dos outros...

 Noutros casos nem se trata propriamente de "pecados ou pecadilhos", mas de situações que implicam alguma reserva, pudor, acanhamento,  constrangimento,  medo de ser julgado pelos antigos camaradas de armas, etc.

Mas já se ouviram aqui histórias espantosas que seria uma pena ficarem para sempre no "segredo dos deuses", o mesmo é dizer, perderem-se na voragem do tempo... São histórias que seguramente nunca chegaram (nem chegarão) ao Arquivo Histórico-Militar, ou outr0s arquivos públicos, mas que não sobreviverão ao "guardião da memória", que é cada um de nós, se não forem contadas...

Claro que nenhuma destas histórias vem "alterar" a visão final da História com H grande... Mas essa será sempre mais pobre, e mais descolorida, sem as nossas histórias com h pequeno...

É o caso desta, passada em Bissau, em junho de 1974, já com o PAIGC a preparar-se para se instalar nas cadeiras do poder, ainda dois meses antes da assinatura do acordo de Argel (25 de agosto de 1974) e três meses antes  da partida do "último soldado do império". 

Muitos dos nossos leitores não conhecem ainda este episódio, aqui contado no já  longínquo ano de  2014 (***).

Como está aceite, tacitamente, entre nós, não há críticas negativas ou depreciativas (por parte dos nossos comentadores) em relação a estes "segredos de confessionário". Tal como não há penitèncias...




Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > Jolmete > CART 527 (1963/65) > O António Medina à esquerda, de perfil.

Foto (e legenda): © António Medina (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradasas da Guiné]


O segredo de António Medina > O surpreendente reencontro, em Bissau, em junho de 1974, com o meu primo Agnelo Medina Dantas Pereira, comandante do PAIGC


Ano de 1974, da revolução de cravos em Portugal. A voz da liberdade e a derrota do fascismo soaram aos residentes civis em Bissau, Guiné, bastante cedo, na manhã do dia 26 de Abril.

Era eu empregado do BNU desde 1967 e vivia como é obvio em Bissau com a minha mulher e três filhos pequenos, os dois primeiros já quase em idade escolar.

Não me vou alongar nesta estória mas julgo ser um facto bastante interessante que merece ser mencionado, até porque os protagonistas são relacionados com a guerra e tem laços de família.

Depressa reinou uma grande euforia em toda a cidade de Bissau. A caça ao homem e o saneamento começaram, alguns que por qualquer divisionismo familiar eram falsamente acusados, outros por terem sido informadores da PIDE, perseguição e prisão para aqueles que exerciam cargos de chefia nas repartições públicas ou privadas e que não mais mereciam confiança, aqueles que supostamente apoiaram o regime fascista, etc. Arruaças, espancamentos, ofensas, fuzilamentos (o mais notório foi do respeitado Régulo Batican Ferreira, de Teixeira Pinto, que foi do meu conhecimento pessoal quando estive no chão manjaco em 1963/65).

Tempos difíceis vividos sob a pressão constante de ser perseguido, espancado ou aprisionado, aliado à falta de géneros alimentícios que se fazia sentir em todos os aspectos.

Entretanto, chegam as forças do PAIGC a Bissau depois de parte das tropas Portuguesas começarem já a regressar a Lisboa, instalando-se em quartéis e ocupando outras instalações. O Banco Nacional Ultramarino (BNU), esse, lá continuava fazendo as suas operações diárias sem qualquer inconveniente.

Num daqueles dias de calor e humidade, já típico da época das chuvas, depois das 10:00 da manhã, fui chamado para atender um cliente que me procurava - era um militar natural da Guiné, das forças do PAIGC, armado com uma Kalashnikov.

Senti um calafrio pela espinha abaixo quando me aproximei dele que, sem qualquer preâmbulo, apenas me comunicou que eu teria de estar ao meio dia na sede do Partido, ao lado do Palácio. Esperando o pior, prontifiquei-me a estar presente, não perguntando de quem ou de onde vinha tal ordem, o militar mais não disse, retirando-se apressadamente.

Comuniquei imediatamente à minha mulher o assunto, pedindo-lhe que se mantivesse calma, que se me pusessem sob custódia ela deveria seguir quanto antes para Cabo Verde, Ilha do Fogo, onde tinha familiares. Aliás, ia sendo este o procedimento com quantos prontos para embarcarem foram proibidos de seguir viagem, sem justa causa.

Imaginem o meu sofrimento durante aquele tempo de espera, contando os minutos e segundos no meu relógio Cortebert. Foram os piores momentos da minha vida, os nervos e o medo não me deixaram mais trabalhar. Irrequieto e preocupado, sem qualquer concentração, andava de um lado para outro sem saber o que se me adivinhava. Na hora certa, saí correndo em direcção à sede do PAIGC para me apresentar a quem (?), no edifício da antiga messe dos Oficiais da Força Aérea Portuguesa.

Quando chego ao pé do sentinela, deparo-me com um sujeito, a uma curta distância, de meia estatura, barba cerrada, com a farda dos revolucionários mas desarmado, sorrindo para mim. Era o meu primo Agnelo Dantas, filho de uma tia, irmã do meu pai. Fiquei deveras surpreendido quando vi a realidade à minha frente, meu primo, um dos combatentes do PAIGC (#)

Ponderei surpreso por alguns momentos, me aproximei sem qualquer relutância e demo-nos então um caloroso e prolongado abraço fraterno. A convite dele entrámos no edifício e depois de um trago de whisky John Walker Black que me ofereceu, senti-me mais relaxado para se conversar.

O ambiente era confuso e barulhento, alguns deles sentados cavaqueando com outros das mesas ao lado, à espera que o almoço lhes fosse servido, outros de pé, encostados ao balcão do Bar conversando em alta voz, pessoas entrando e saindo, mostrando falta de preconceitos e princípios pela maneira como se sentavam e se comportavam à mesa, fruto de terem andado longe da civilização na floresta da Guiné, durante aqueles anos todos.

Sentamo-nos os dois numa mesa mesmo no canto da sala, foi ele pessoalmente ao balcão, pediu duas cervejas fresquinhas. Falamos da nossa infância e dos familiares que se queixavam da falta de notícias dele desde que seguiu para estudar em França. Atentamente ia eu ouvindo o tecer da sua experiência no mato, satisfazendo a minha curiosidade com as perguntas que lhe fazia.

Fiquei sabendo que não desconhecia a minha presença na Guiné, não só do tempo militar assim como de empregado bancário. Que tinha sido aliciado e recrutado com a idade de 20 anos por Amílcar Cabral, para a luta de Libertação da Guiné e Cabo Verde. Que embarcou para Cuba e se formou na Escola Militar em Havana. Que no tempo do general Spínola foi ele quem numa das noites bombardeou Bissau com três misseis teleguiados disparados da Ponta de Cumeré. Carregava com ele um diário repleto de informações recebidas dos colaboradores do Partido.

Chegam mais elementos, identifiquei-os como cabo-verdianos e reconhecemo-nos como amigos de infância, alguns ex-colegas do Liceu Gil Eanes em S. Vicente, Cabo Verde:

  • Honório Chantre,
  • Silvino da Luz,
  • Júlio de Carvalho,
  • Osvaldo Lopes da Silva, etc.

Era um grupo que também queria exteriorizar a sua alegria pelo fim da guerra e a independência da Guiné, reconhecida por Portugal, aguardando a vez de também lhes ser servido o almoço logo após haver mesas desocupadas.

Reinou grande alegria entre todos nós pelo reencontro e amizade, rejuvenescida no momento. Foi bebida à vontade para quem quisesse, cerveja Sagres bem geladinha, goles de whisky Johny Walker com gelo, eram sobras da velha senhora deixadas aí a custo zero por aqueles que partiram.

Como petisco, ostras e camarões cozidos e temperados com molho de piri-piri forte, mancarra torrada sem casca, tudo para matar a sede e o suor que trazia aquele calor asfixiante. De Jure, não sabia absolutamente nada que fossem filiados no Partido como combatentes. Apenas se ouvia dizer que tinhajm saído à procura de trabalho no estrangeiro.

Quando regresso a casa para o meu almoço, encontro a minha esposa bastante preocupada, com os nervos à flor da pele, sem ainda saber do que se tratava. Teve ela um grande alívio quando pela primeira vez conheceu o primo Agnelo mas discretamente me consciencializou e me convenceu que devíamos deixar a Guiné para outras paragens onde pudéssemos cuidar da educação dos nossos filhos e viver com mais tranquilidade.

Durante algum tempo o primo Agnelo esteve em Bissau e mantivemos ótimas relações. A minha mulher passou a cuidar das roupas dele, com frequência se juntava-se a nós para o nosso rancho.

Depois seguiu para Cabo Verde e ocupou o cargo de Chefe das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP). Mais tarde foi Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas.

Hoje é reformado como Coronel do Exército cabo-verdiano e vive na cidade da Praia. Comunicamo-nos com frequência através da Net mas nunca voltámos a falar da guerra, águas passadas nao movem moinhos.

Antonio Cândido Medina


(Revisão / fixação de texto / negritos: LG)



(#) Nota biográfica baseada em A Semana, [Em Linha], 27 de janeiro de 2007. "Retratos: Agnelo Dantas, soldado de Cabo Verde", por Gláucia Nogueira



Agnelo Medina Dantas Pereira (foto acima)
Fonte: Casa Comum / Arquivo Amílcar Cabral, com a devida vénia)


(i) o pai é da Brava e a mãe de Santo Antão, nasceu nesta ilha em 1945;

(ii) em 1965, ainda com 19 anos, encontrava-se em Paris quando foi contactado por Pedro Pires, e depois por Cabral, e convidado a integrar "o grupo de estudantes e operários" que iria fazer um treino militar em Cuba;

(iii) chegou à ilha, depois de uma passagem pela Argélia, onde já se encontrava uma parte do grupo, formado por 30 homens e uma mulher; o chamado "grupo de Cuba” durante dois dois anos recebeu treino militar, com o objectivo de fazer "um desembarque armado em Cabo Verde";

(iv) “foram cerca de dois anos, isolados nas montanhas, ou em quartéis formados ad hoc, para nós. Foi muito exercício táctico, físico, até o dia do juramento - 15 de Janeiro de 1967 - quando Cabral se desloca a Cuba para se reunir connosco”, conta Agnelo Dantas, que diz, estarem, na altura, todos “prontos para o desembarque”;

(v) pouco tempo depois, com a morte de Che Guevara (em outubro de 1967), os cubanos têm a noção de que os seus serviços de informação estavam infiltrados, já que o próprio cerco a Che terá resultado desse facto; foi então adiada "sine die" a ida para Cabo Verde, e os militantes partiram para a União Soviética para complementar a formação;

(vi) ao longo de 1968, Dantas especializa-se em artilharia e explosivos; a ida para Cabo Verde ia ficando cada vez mais longínqua; para não ficarem indefinidamente inactivos é-lhes proposta, pela direcção do Partido, a ideia de ir para a Guiné;

(vi) tem o seu baptismo de fogo no início de 1969, quando foi aberta a Frente Leste; daí em diante e até 1974, ora ao lado de Nino Vieira, ora de Pedro Pires, participou em todas as frentes de combate, sempre no mato: primeiro, foi chefe de pelotão, depois chefe de bateria; e em 1973 já tinha o seu posto de comando, na Frente Norte;

(vii) depois do 25 de Abril e durante o período de transição para a independência de Cabo Verde, altura de intensa luta política e diplomática, foram trazidas armas da Guiné, "para qualquer eventualidade", sendo nessa altura que se começaram a formar as Forças Armadas cabo-verdianas: a 5 de Julho, de 1975, data da independência de Cabo Verde, "já tínhamos exército";

(viii) em 200, à data da entrevista, era coronel reformado das Forças Armadas de Cabo Verde, foi condecorado a 15 de janeiro de 2007 com a medalha da Estrela de Honra pelo chefe do Estado-Maior das FA (cargo que também ocupou);

(ix) tem página no Facebook: Agnelo Dantas.

2. Comentário do editor LG:

Esta é uma realidade, ignorada ou esquecida por muitos de nós... Na Guiné, no teatro de operações da Guiné, houve familiares e parentes que se combateram de armas na mão, em campos opostos, quer guineenses, quer cabo-verdianos...

Não chegou a ser o caso do nosso camarada António Medina, já que o primo Agnelo era mais novo (cerca de seis anos) e ainda devia estar em Paris (ou já a caminho de Cuba) (#), quando o primo António terminou a sua comissão em 1965 e regressou à vida civil, acabando por se fixar em Bissau e ingressar, como bancário, em 1967, no BNU...

Não temos (eu não tenho...) estatísticas sobre os cabo-verdianos que combateram de um lado e do outro... De qualquer modo, é interessante a referência do António à presença, nesse encontro com o primo Agnelo, em Bissau, em junho de 1974, de outros combatentes do PAIGC, de origem cabo-verdiano, ex-colegas do Liceu Gil Eanes, no Mindelo, em São Vicente... (Nomes sonantes ou pesos pesados do PAIGC como Honório Chantre, Silvino da Luz, Júlio de Carvalho, ou Osvaldo Lopes da Silva.)

No Liceu Gil Eanes, fundado no tempo da I Repúblcia, em 1917, com a designação de Infante Dom Henrique (que manteve até 1938), estudou Amílcar Cabral bem como a "elite portuguesa-cabo-verdiana". Até 1961 era o único estabelecimento de ensino secundário do arquipélago, e por lá passou praticamente toda a elite local...

Os mais afortunados, os filhos das famílias com posses, seguiam depois para a metrópole para prosseguir os estudos superiores na universidade, ou até para o estrangeiro (como fpoi o caso do Agnelo, que em 1965 era estudante em Paris). Eram os/as "m'ninos/as de São V'cente"...

(Fonte: Luís Batalha, investigador do ISCPS, autor do capº 6º ("A elite portuguesa cabo-verdiana: ascensão e queda de um grupo social intermediário") do livro coordenado por Clara Carvalho e João Pina Cabral, "A persistência da história. Passado e contemporaneidade em África" (Lisboa, ICS, 2004, pp. 191-225).


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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 12 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24390: O segredo de... (38): António Branquinho (1947-2023): Passei-me dos carretos... Perante a recusa dos helis em levaram os nossos dois mortos, puxei a culatra atrás da G3 e gritei: 'Levais os mortos ou… dou-vos um tiro nos c….!' (Acção Galhito, 22/6/1971, regulado do Cuor, sector L1)

(**) Vd. poste de 29 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14945: O segredo de... (19): António Medina (ex-fur mil, CART 527, 1963/65, natural de Cabo Verde, mais tarde empregado do BNU, e hoje cidadão norte-americano): Desenfiado em Bissau por três dias, por causa dos primos Marques da Silva, fundadores do conjunto musical "Ritmos Caboverdeanos"... Teve de se meter num táxi, até Teixeira Pinto, que lhe custou mil pesos, escapando de levar uma porrada por "deserção"!

(***) Vd. poste de 21 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12753: (De)caras (15): O meu primo Agnelo Dantas, e meu conterrâneo da ilha de Santo Antão, comandante do PAIGC, com quem me reencontrei no pós-25 de abril, em Bissau, era eu empregado bancário, no BNU - Banco Nacional Ultramarino (António Medina, ex-fur mil op esp, CART 527, Teixeira Pinto, 1963/65, a viver nos EUA, desde 1980)

Guiné 61/74 - P24724: Historiografia da presença portuguesa em África (388): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Tenho para mim que esta revista ilustrada das Colónias Portuguesas é uma publicação que merece a maior atenção dos investigadores e historiadores. Repare-se no mapa hoje publicado, e com data de 31 de dezembro de 1887, onde, estou em crer, se procurar reproduzir fidedignamente as fazendas agrícolas que marcavam claramente o que era a presença portuguesa fundamentalmente no sul da colónia, comércio esse, ponto curioso, que será severamente abalado no mesmo ano em que a Guiné será desafetada de Cabo Verde, 1886. Não será por acaso que os números desta publicação referentes a 1887 e parte de 1888 estejam escritos num tom tão lamentoso, a Guiné é dada como perdida, o que deve chamar a nossa atenção para a grande importância comercial que tinha Ziguinchor e o tráfego comercial no Casamansa. A revista mostra imagens espantosas do desenvolvimento em Angola, usos e costumes na Índia e Timor, enfim, é uma publicação que só pelas suas ilustrações de altíssima qualidade merecia que um editor as publicasse, mostram a saga portuguesa quando o sonho do império africano se tornara numa frutuosa aventura comercial.

Um abraço do
Mário



Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (3)

Mário Beja Santos

A publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada, publicou-se entre 1883 e 1891, era inequivocamente dirigida à classe política, não descurava a atração de investimentos, procurava dar informação aos funcionários da administração colonial e a potenciais estudiosos do Terceiro Império. Comecei, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, por percorrer o volume referente a 1883 e a 1884. Não posso esconder o entusiasmo que sinto ao folhear estas páginas, elas comportam informações que, por um lado, corroboram o que a historiografia vai lavrando, e, por outro lado, temos inesperadamente acesso a testemunhos que se afiguram genuínos, um dos redatores efetivos, António A. F. Ribeiro terá montado uma rede de contactos e o que vai aparecer sob a forma de correio parece-me de insofismável valor.

Estamos agora em janeiro de 1887, sou forçado a folhear delicadamente o volume, está muito combalido, o papel esgarçou, despegou-se da lombada, há cortes e remendos, impõe-se o maior cuidado, é volume histórico. Estão ausentes quaisquer imagens da Guiné, o leitor que se prepare para comentários do editor e de um leitor que se assina A. B. (presumivelmente Augusto Barros, que se apresentou em 1883), predomina um tom lamentoso, derrotista, lendo estes escritos parece que a Guiné portuguesa bateu no fundo.

Começa-se por um comentário do editor logo no número de janeiro:
“Nesta província onde se presenceia continuada decadência, tudo são empregos para uns e para outros, com ordenados mesquinhos e pobres; tudo feito sem nenhum critério, sem nenhum estudo que proceda à criação desses mil empregosinhos, mais funestos que úteis à administração pública.
As forças públicas, apesar dos mais honrados esforços, tende à sua frente um oficial dedicado e de subido merecimento, continuam no mais grave abandono, pois que em vez de soldados se lhes apresentam essa coorte de malfeitores, que a metrópole, com todos os seus recursos, recusa e não quer nas suas fileiras.”


Segue-se um longo silêncio, estamos agora no número do mês de setembro, o comentário é quase tétrico, a narrativa apocalítica:
“A Guiné portuguesa está perdida, e, contudo, é uma das mais belas das nossas províncias ultramarinas. Cortada por dois grandes rios, o Rio Grande de Bolola e o Geba, formam na sua foz um grandioso estuário, orlado de todos os lados da mais surpreendente vegetação, têm as suas nascentes nos célebres territórios de Futa-Djalon, onde os grande mananciais auríferos, a fertilidade do sono, o espíritos agrícola e industrial dos seus habitantes, causa inveja às melhores colónias do mundo.
Em 1886, quando pela primeira vez tivemos ocasião de conhecer esta colónia, estava ela no seu esplendor comercial. A agricultura florescia, trabalhava-se, havia vida e ânimo para novos empreendimentos e viam-se as águas num e noutro rio cobertas de navios de alto bordo, franceses, suecos, ingleses, russos, espanhóis, italianos, etc., que ali iam tomar importantes carregamentos de diversa produção do país.
O ouro e o marfim encontravam-se igualmente no comércio. Hoje, na nossa Guiné, tudo é triste, medonho, pobre, desgraçado. Assim o quiseram os homens que legislam sem o conhecimento das colónias.
A produção atualmente nem a um terço atinge, e as propriedades estão completamente abandonadas. Um silêncio de morte reina hoje, onde tanta vida, tanto trabalho e tanta atividade houve ainda há pouco tempo.

Santa Cruz de Buba, situada na margem direita do Rio Grande, que tanto florescia como centro do melhor negócio com todos os povos circunvizinhos, lá está na mesma tristíssima situação: nenhum comércio, tudo abandonado! O comércio da amêndoa de palma, que fornecia a permutação com os Bijagós, enfraqueceu igualmente e restaria a borracha, que na província aumentou em proporção notável nos últimos tempos, se não fosse também perdendo o seu valor, porque os gentios lhe juntam matérias estranhas, com ainda derrubam as árvores para lhe aproveitar todo o suco leitoso, porque não conhecem os simplicíssimos processos para tal fim empregados.
Em Geba, empório do comércio com as tribos mais trabalhadoras da costa leste de África, em cera, couros, ouro, marfim, etc., está igualmente aniquilado; tais foram as funestas negociações de Paris para a delimitação das nossas fronteiras nestas colónias, que melhor fora vender de vez.
É em 1883 onde se acentua mais violentamente este desgraçado estado de coisas.
A grande baixa dos produtos coloniais, o enfraquecimento do solo, as guerras constantes entre os naturais, levaram igualmente um enorme desastre àquela colónia; mas se isto era motivo para tomar em atenção os meios que conviria adotar para contrabalançar tais prejuízos, lançaram impostos tão excessivos na propriedade rústica, que ocasionou a sua fatal ruína.”


Permito-me agora dois comentários. O primeiro atende à referência que o autor faz a dois rios, o de Buba e o Geba, o que significa que em 1886 não havia comércio e navegação no Corubal, este rio sim com nascente e foz, tal como o Geba. O autor lamenta a convenção luso-francesa mas não faz nenhuma referência à quantidade de território recebido para o interior, exatamente em direção a Futa-Djalon, e aonde a nossa presença nem chegava a ser meramente simbólica.

O segundo refere-se a um mapa que vos mostro com muito orgulho e que tem a ver com o abandono completo das fazendas agrícolas, está datado de 31 de dezembro de 1887, as duas folhas estão muito maltratadas, estou convencido de que se trata de um mapa jamais referenciado pela historiografia da Guiné, corresponde ao desaparecimento dos entrepostos comerciais fundamentalmente no Tombali e no Quínara, produto acima de tudo das guerras do Forreá.

Estamos agora em 1888, mantém-se o tom lamentoso, é momento de dar a palavra a A. S., é uma jeremiada pegada:
“Choremos a perda do nosso Casamansa, mas ponhamos também luto carregado todos os anos no aniversário da assinatura do tratado dos limites franco-lusitano, porque se é verdade que perdemos, para sempre, aquele riquíssimo empório de comércio, é dever nosso também memorar os que como Honório Barreto, e outros, souberam honrar o nome português.” E escreve mais adiante: “Em 1835, o nome de francês ainda era ali completamente desconhecido, e no Rio só se conhecia o nome português, ainda como no Cacine e no Nalu, ainda há poucos anos. Mas no que ninguém pensou, nem poderia pensar, é que o sertão correspondente à nossa colónia pudesse por um instante ter contestação, por limitar com o de régulos Futa-Fulas. A questão foi o futuro que os franceses salvaguardaram, e que nós, implicitamente, desprezamos.”

E assim termina o libelo acusatório:
“O primeiro governador, em lugar de desenvolver energia e atividade de castigar rebeldes, ocupar o fortificar os lugares que ocupava, concentrava os seus cuidados em organizar repartições, montar secretarias, fazer regulamentos, nomear comissões, que tudo leva demoras, escrever ofícios e relatórios sobre o estado em que encontrara a colónia!
Dez anos após a autonomia, cometem-se os mesmos erros iniciais. A Guiné tem descido, e continuará a descer, se não se reformar a sua administração, até que o governo se há de ver na dura e triste necessidade de a ligar novamente a Cabo Verde, senão a vê-la perdida para sempre. Acudam à Guiné.”

Assina A. S., repito que é suposto ser Augusto Barros, já colaborador em 1883.

Creio tratar-se de um mapa credor da atenção dos historiadores, mostra as fazendas agrícolas então existentes, nomeadamente no sul e que foram abandonadas, na sua quase totalidade, até 1886

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24705: Historiografia da presença portuguesa em África (387): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", revista ilustrada (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24723: (Ex)citações (425): Ainda a propósito do Jornal Voz de Bissau, a atividade Política em Bissau no pós 25 de Abril (Victor Costa, ex-Fur Mil)

1. Mensagem do nosso camarada Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974), com data de 27 de Setembro de 2023:

A atividade Política em Bissau no período pós 25 de Abril

Amigos e camaradas da Guiné.

Apesar de minha atividade profissional continuar intensa, acompanho as mensagens que os diversos camaradas vão escrevendo e por isso decidi escrever esta mensagem porque continuo a gostar da verdade, de História, Arquivo e papéis velhos.

Os artigos publicados no Jornal Voz da Guiné são interessantes e os factos e as questões colocadas pelo camarada Abílio Magro, ex Fur Mil Amanuense (CSJD/QJ/CTIG, 1973/74) no dia 16/09/2023 e seguintes, são pertinentes.

Se entenderem que o enquadramento desta mensagem fica mais explícita se for dividida em três, deixo à vossa consideração.

Apesar da esquerda e a direita serem duas maneiras diferentes de ver e viver a vida, há uma coisa comum que as torna iguais, trata-se da corrupção.

Com o passar dos anos verifiquei que a leitura evitou que eu perdesse o Norte depois dos 28 anos, como aconteceu a outros, hoje entendo que olhar para trás para o nosso passado Histórico, ler de tudo e comparar as políticas é o melhor remédio.

Li a "Mãe" de Máximo Gorky, mas também li também "O Sabor do Poder", traduzido Ladislav Mnacko do original Jak CHUTNÁ-MOC-1967, by Verlag Fritz Molden Viena-Munique.

O ano de 1948 anunciava-se particularmente agitado no plano internacional. A tensão crescia entre a URSS e os seus antigos aliados. O Golpe de Praga que expulsara do Poder o Presidente Benés entregava a Tchecoslováquia aos comunistas e não deixava dúvidas nenhumas sobre a vontade soviética de continuar uma política expansionista para Oeste. O chefe do Partido começou como revolucionário, organizou o partido e tomou o Poder à custa de corrupção, esta história acabou na chamada Primavera de Praga.

Os golpes de Estado correm sempre o risco de serem aproveitados por alguns em proveito próprio e por isso é um livro aconselhável.

Após o golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, os militares de bom senso tinham poucas possibilidades de vencer a tarimba e a atividade política pró-soviética, cujo objectivo visava minar, o dever e a disciplina, no seio das Forças Armadas, para tomar o Poder.

Consta da 1.ª página do Boletim Informativo n.º 1 de 1 de junho de 1974, publicado no Blogue em 22 de Abril de 2022, que o Sr. Tenente Coronel Almeida Bruno na sua deslocação à Guiné, em representação do MFA, dirigiu uma reunião sobre a reestruturação democrática do MFA e a preservação da disciplina e da hierarquia, que contou com a participação do Sr. Capitão Duran Clemente, nomeado entre outros para a Comissão Coordenadora do MFA na Guiné.

As ordens do MFA que o comandante Almeida Bruno tinha acabado de transmitir em Bissau no dia 7 de Maio de 1974 nunca foram cumpridas.

Tinham passado apenas 9 dias e já "aqueles soldados" da Guiné pediam ao diretor do Jornal Voz da Guiné, o Sr. Capitão Duran Clemente, que mandasse publicar um comunicado sem dizerem, quem eram, quando tinham sido eleitos, nem quem os tinha mandatado para tal.

Muita coisa se disse e diz em nome do Povo e dos soldados e não deixa de ser interessante o facto destes "soldados" escreveram um comunicado utilizando a letra "n" em vez de "m", mas não se esquecendo de terminar a mensagem, a 4.000 Km de distância do Povo com a devida palavra de ordem, "O Povo Unido Jamais Será vencido".

O Comandante Almeida Bruno e outros notáveis das nossas Forças Armadas eram homens de coragem, sabiam lidar bem com armamento e engenhos explosivos, mas infelizmente não conheciam o sistema de comunicações soviético nem o método e a forma de atuação destes engenhos políticos.

A publicação do artigo da LUAR no Jornal a Voz da Guiné merece o seguinte comentário:

O assalto ao Banco de Portugal realizado por Hermínio da Palma Inácio em de Maio de 1967 que contou com a participação de dois naturais da freguesia do Paião, um deles residente em França.

Parte do produto deste assalto, 1.500 contos foram encontrados debaixo da lareira de um deles, depois de serem recolhidos a seguir ao assalto numa das pontes de Maiorca da estrada nacional n.º 111 que liga a Figueira da Foz a Coimbra.

Que Operação cuidada esses "revolucionários" da LUAR fizeram, em vez de assaltarem os bancos capitalistas foram roubar o Banco do Povo, já só falta cruzar os cabos.

Abaixo os capitalistas, os seus Bancos e a democracia burguesa, vivam os Bancos do Povo e viva a União Soviética.

Junto cópia do artigo de António Jorge Lé, do Jornal Diário de Coimbra de 24 de Maio de 2023, sobre esta grande e cuidada "operação popular".

Clicar na imagem para ampliar


Ainda sobre o rebentamento da granada no Café Ronda:

Devido ao bom relacionamento da CCaç 4541/72 com o BCP12 eram frequentes as nossas deslocações conjuntas a Bissau, todos nós vestidos a rigor sem camuflados, que permitissem transportar "embrulhos" pesados e nocivos à vida.

Para evitar problemas em Bissau, a disciplina no BCP 12 em Bissalanca era clara, segundo o meu vizinho e amigo falecido (Sold. Pára) Américo Paiva, com quem me deslocava nestas andanças, não haviam máquinas de escrever nem papel no Quartel e as indisciplinas no BCP 12 eram tratadas no salão de treinos de Boxe, onde o seu comandante tinha fama de ser justo e bom lutador, nós seguíamos as regras.

Ao chegar a Bissau verificávamos que era mantido o bom o nível do alcatrão, ao longo da Avenida da República, que fazia soar o forte som das botas do render da guarda da PM desde a Amura até ao Palácio do Governador, mas não posso esquecer aquele furriel da PM que foi "condenado" a passar um mês de férias no mato, apenas para ver a diferença entre entre a vida no mato e o som do bater das botas na calçada da Avenida da República em Bissau. Assim, face ao "risco" que corríamos nas nossas deslocações a Bissau, não posso terminar sem enviar os meus sentimentos às famílias dos "soldados mortos em combate" na arriscada cidade de Bissau, nomeadamente desde o QG, passando pelo Quartel da PM na Amura, Avenida da República, onde se localizava o Café Ronda e o Cinema UDIB, e até ao Palácio do Governador.

Por isso, em nome da preservação da História, deve ser atribuído um louvor ao camarada ex-Fur Mil Amanuense (CSJD/QJ/CTIG,1973/74) Abílio Magro, por ter guardado esses recortes do Jornal "Voz da Guiné" publicados no dia 12 e seguintes do mês de Setembro de 2023.

Felizmente que ainda ficaram alguns "periquitos", que já liam livros de política e outros "velhos" que conheceram os locais, gostam de ler, vasculhar documentos e ainda conseguem manter o bom humor e rir dessas coisas.

Um abraço,
Victor Costa,
Ex-Fur Mil At Inf
CCaç 4541/72

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24662: (Ex)citações (424): Nas nossas já bíblicas idades os planeamentos a longo prazo são sempre eivados de 'relativismo'. Daí que nada melhor do que as bolas de cristal (José Belo, Suécia)

terça-feira, 3 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24722: Facebook...ando (39): António Medina, um bravo nativo da ilha de Santo Antão, que foi fur mil na CART 527 (1963/65), trabalhou no BNU em Bissau (1967/74) e emigrou para os EUA, em 1980, fazendo hoje parte da grande diáspora lusófona - Parte IV: Acampado na foz do rio Cacheu


Foto nº 1A


Foto nº 1B


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4

Guiné  > Região do Cacheu >  Rio Cacheu e afluentes >  CART 527 (1963/65)   > O fur mil at inf António Medina, mais a sua secção, acampados na foz do rio Cacheu

Fotos (e legenda): © António Medina (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Continuação da seleção de fotos do álbum do nosso camarada da diáspora lusófona, 
António Medina (estas fotos correm o risco de desaparecerem com o encerramento da página do Facebook do autor):

(i) ex-fur mil at inf,  CART 527 (Teixeira Pinto, Bachile, Calequisse, Cacheu, Pelundo, Jolmete e Caió 1963/65), de resto o único representante desta subunidade, na Tabanca Grande;

(ii) a CART 527 estava adiada ao BCAÇ 507 (Bula, 1963/65), que era comandado pelo ten cor inf Hélio Felgas;

(iii) de seu nome completo, António Cândido da Silva Medina, nasceu em 26 de setembro de 1939, na ilha de Santo Antão, Cabo Verde (completou há dias 84 anos);

(iv) estudou no liceu Gil Eanes (Mindelo, São Vicente) (o único liceu então existente nas ilhas);

(v) depois da passar à disponibilidade, viveu em Bissau, e entre 1967 e 1974, até à independência, sendo funcionário do BNU (Banco Nacional Ultramarino); 

(vi) vive desde 1980 nos EUA, em Medford, no estado de Massachusetts, onde também foi bancário;

(vii)  tem página no Facebook (último poste: 30 de outubro de 2022); 
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Nota do editor:

Último poste da série >  30  de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24715: Facebook...ando (38): António Medina, um bravo nativo da ilha de Santo Antão, que foi fur mil na CART 527 (1963/65), trabalhou no BNU em Bissau (1967/74) e emigrou para os EUA, em 1980, fazendo hoje parte da grande diáspora lusófona - Parte III: de sintex pelo rio Cacheu e afluentes, até às ilhas de Pecixe e Jeta

Guiné 61/74 - P24721: Parabéns a você (2212): Hélder Valério de Sousa, ex-Fur Mil TRMS do STM (Piche e Bissau, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24709: Parabéns a você (2211): António Bastos, ex-1.º Cabo At Inf do Pel Caç Ind 953 (Cacheu, Farim, Canjambari e Jumbembém, 1964/66)

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24720: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (6): Olha o ceguinho de um olho, é prà pulga e prà piolho! (Luís Graça, Lourinhã)


Fonte Propagandas Históricas (com a devida vénia...) 

"Olha o ceguinho de um olho, é prà pulga e prò piolho!"...

por Luís Graça (*)


1. Eu ainda sou do tempo do óleo de fígado de bacalhau. Na idade de ir para  a escola, já com sete anos feitos (em 29 de janeiro de 1954), a caminho portanto dos 8,  lembro-me de tomar,  às refeições, uma colher de sobremesa   desse "milagroso óleo" que nos anos 40 e 50 do século passado estava na moda. 

Já não posso precisar se era uma colher de sopa, a "dose de cavalo", se apenas uma colher de sobremesa, quantidade mais indicada para crianças abaixo dos 12 anos. Nem sei se tomava  todos os dias. 

Como o nome sugere,  o óleo de fígado de bacalhau  ("cod liver oil", em inglês) era(é) extraído do fígado do bacalhau, considerado rico em vitamina A, vitamina D e ómega 3. 

 Na época, no pós-guerra, eram ainda muitas as carências aiimentares, e à nossa mesa não chegavam os suplementos nutricionais de hoje.  A criança comia a comida dos adultos,  e o próprio leite, â parte o leite materno, era um luxo. (O Oeste não era uma zona de criação de gado leiteiro, e uma grande parte dos seres humanos são intolerantes à lactose.)

Ao que parece, o óleo de fígado de bacalhau já dera utilizado há muito como complemento alimentar nos países do Norte da Europa, em especial nos países nórdicos, onde era(é) mais a baixa a exposição da pele ao sol (importante fonte de  produção de vitamina D). 

Por sua vez, a  Emulsão Scott,  um medicamento tradicional à base de óleo de fígado de bacalhau, era popular na América desde os anos de 1830.

No sítio brasileiro, Propagandas Históricas, fomos encontrar um anúncio de 1906 fazendo a publicidade dos benefícios do óleo de fígado de bacalhau. Era uma "preparado especial", da firma  J. Coelho Barbosa & C. Vendendo-se nas farmácias. de São Paulo, apresentava-se como  um conccorrente ("homeopático"...) da industrializada Emulsão Scott dos gringos.

O óleo de figado de bacalhau  continua hoje a vender-se nas farmácias ou nas lojas de produtos naturais, em cápsulas ou em emulsão ("xarope")... No nosso tempo, o raio do "xarope"  (que fazia bem aos ossos...) tinha um cheiro e sobretudo um sabor extremamente desagradáveis. A nossa primeira reação era de recusa, rejeição, vómito. 

As nossas mães, para nos obrigar a tragar a "horrível mistela", apertavam-nos o nariz, sem qualquer cerimónia. Com a goela escancarada, era só enfiar pela boca abaixo uma colherada do "xarope"... Era a nossa tortura (já não me lembro se era diaria e se era ao almoço, se ao jantar).

Segundo apurei, numa das farmácias da Lourinhã do pós-guerra, o óleo de fígado de bacalhau era fornecido em grandes frascos e depois acondicionada em frascos mais pequenos, para venda ao público. Recorde-se que só a partir os anos 50 há uma desenvolvimento, exponencial, da indústria farmacêutica. As farmácias  tinham muito poucas caixas de medicamentos  (aspirina, supositórios, e pouco mais).  Viviam  até então da manipulação de fórmulas,  da venda de "produtos naturais",  tudo em frascos.  

2. Na época tínhamos problemas de subnutrição, raquitismo, pulmões e... "escrófulas" ("doença crónica e hereditária das glândulas linfáticas em que se alteram os fluidos que contêm, formando tumores que se podem ulcerar", segundo a sintética definição do Dicionário Priberam da Língia Portuguesa)... Havia muita miudagem "escrufulosa" (que termo horroroso!)  e  nessa época o arsenal terapêutico ainda era muito reduzido...  

Andávampos sempre com montes de infeções, nomeadamente nas pernas e braços... O antibiótico mal tinha chegado e a vacinação (obrigatória) também chegava tarde à escola. (Acho que a primeira vacina que tomei foi a BCG. ) A tuberculose tinha ainda uma alta taxa de incidência, tal como as enterites, as diarreias, os problemas respiratórios e outras doenças infeto-contagiosas... 

A falta de higiene pessoal e ambiental (não havia recolha do lixo, ia tudo para o quinteiro ou esterqueiro, nos campos), o contacto com a terra, o estrume, os dejetos humanos,  etc., a par das deficièncias alimentares e da falta de serviços públicos de saúde  (só mais tarde apareceram os centros de saúde materno-infantil, na década de 60) explicam uma parte da morbimortalidade das crianças, no campo e na cidade...

Para dar um exemplo: quando eu tinha 14 anos, em 1961, no início da guerra colonial, ainda morriam 88,8 crianças com menos de um ano de idade por cada 1.000 nascimentos (!). (Cerca de 120, no imediato após-guerra.)

Nos anos 50 havia três médicos residentes na minha vila,  para uma população que devia andar já perto dos 22 mil (o concelho).

Também sou do tempo em que, no início dos anos 50,  se começou a beber leite, na minha terra e na minha rua...

 Um vizinho, que na periferia da vila, criava vacas leiteiras começou a vender leite porta a porta, com a bilha de folha de Flandres ao ombro... Leite ainda quentinho da vaca, que não passava por nenhum processo de pasteurização nem controlo de higiene  ou qualidade...

São estas e outras as lembranças, ainda vivas, da minha infância passada na Rua do Castelo. O ti’ Clemente Leiteiro, com a bilha do leite, de folha de Flandres já muito amolgada, que ia de porta em porta, vendendo um quartilho de leite,  acabado de tirar da teta da vaca!... Só não me lembro do seu pregão... "Leite que sabia a mijo", diziam os putos com as mães a apertarem-lhes o nariz para eles abrirem a boca. O leite, o óleo de fígado de bacalhau e, já agora, os ovos crus (com um furinho em cada ponta, para a gema e  a clara sairem inteirinhos, num jacto),  tomavam-se a fazer caretas… mas eram a medicina do pobres. 


3. Também sou do tempo do DDT (sigla de diclorodifeniltricloroetano), considerado o primeiro grande pesticida moderno, com extensivo e intensivo uso durante e após a II Guerra Mundial para combater doenças como a malária e o tifo (que dizimavam os soldados nos países subtropicais), e depois as pragas agrícolas. 

 As nossas mães, sem suspeitarem sequer dos graves inconvenientes que, a longo prazo, tinha o raio do inseticida para  a saúde humana (e ambiental) , utilizavam o DDT alegremente para matar pulgas e piolhos, não só na roupa da cama como no couro cabeludo da criançada ("canalha", no Norte).... 

Quando chegávamos a casa, com um camadão de piolhos apanhados na escola,  no recreio ou nas brincadeiras de rua, era um dia de amargura... A receita dolorosa mas milagrosa era água a ferver, pente de dentes finos de osso de baleia, e DDT, nuinhos dentro da tina de  folha de Flandres, com o fundo de madeira, que servia de banheira (a casa de banho moderna ainda era um luxo que nem sequer entrava nos nossos sonhos)...

Era uma "vergonha" uma criança. filha de "gente decente" (sic), apanhar pulgas e piolhos!,,,

Há quem se lembre (gente da minha idade) de ver e ouvir o vendedor de DDT, na feira do Marco de Canaveses, nos anos 50/60, apregoar o famigerado inseticida:  "Olha o ceguinho de um olho, é prà pulga e prò piolho!"...

Felizmente o DDT acabou por ser banido, há já alguns anos (em data que de momento não posso precisar). Mas foi largamente utilizado em Portugal como insecticida nacahricultura e nas campanhas contra a malária (ou "sezões"), nomeadamente nas regiões produtoras de arroz do sul do país.

Enfim, pobretes, mas alegretes!... LG

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Guiné 61/74 - P24719: Notas de leitura (1621): "Tertúlias da Guerra Colonial"; edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Fica aqui um histórico dado por um elemento da Marinha acerca do Destacamento de Fuzileiros Especiais 8 entre 1971 e 1973, um caso de Marinha no mato, pois estavam instalados num aquartelamento em Ganturé, com missões de patrulhamento no rio Cacheu, seguiram para Gampará, aí em instalações muito precárias, atividade operacional intensa e alimentação mais deficiente, conheceram o castigo, percorreram o rio Corubal e caminharam até Buba, voltaram para Ganturé, a comissão terminou em abril de 1973, assistiram ainda a intensidade da vida operacional do PAIGC e à chegada dos mísseis. Foi esta intervenção e a de Carlos de Matos Gomes que respigámos num conjunto de tertúlias promovidas pela Associação dos Pupilos do Exército.

Um abraço do
Mário.



O modo dos portugueses fazerem a guerra no mato (2)

Mário Beja Santos

Tertúlias da Guerra Colonial é uma edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021, o presidente da associação convidou um conjunto de oficiais das Forças Armadas que ao longo de quatro sessões, sempre através da plataforma Zoom, analisaram as quatro dimensões tidas como mais interessantes para as tertúlias: antecedentes políticos e fundamentos; combater no mato; efeitos colaterais e sentimentos coloniais; do 25 de Abril à descolonização. Estas quatro sessões realizaram-se em outubro e novembro de 2020. É da temática “combater no mato” que vamos aqui resumir as comunicações de Carlos de Matos Gomes sobre a quadrícula do Exército e a Marinha na guerra no mato da Guiné por Alcindo Ferreira da Silva. No número anterior procedeu-se a recensão da comunicação de Carlos Matos Gomes, vejamos agora aspetos principais da intervenção de Alcindo Ferreira da Silva. Começa por nos dizer que no início dos anos 1970 a Marinha tinha na Guiné três Destacamentos de Fuzileiros Especiais de origem metropolitana e dois Destacamentos de Fuzileiros Especiais Africanos. Ele chegara a Bissau em princípios de junho de 1971. Seguiu para o mato, primeiro para Ganturé, situado na margem norte do rio Cacheu, junto de um antigo armazém da CUF, 9 casamatas-abrigos dispostos em círculo, e descreve o ambiente. No rio havia uma ponte cais onde atracavam com frequência a lancha de fiscalização grande que estava em missão na área e as lanchas de desembarque média que patrulhavam o rio. Da ponte cais partia uma picada que atravessava a base e se dirigia em linha quase reta até Bigene, onde estavam outras unidades militares. A missão principal do destacamento consistia em efetuar a interdição da passagem de pessoal e material do Senegal para o interior do território da Guiné através do corredor de Sambuiá, para além de efetuar operações na margem sul com o objetivo de desarticular o dispositivo do PAIGC.

Dois botes com três fuzileiros cada, armados com uma metralhadora e bazucas e outros elementos armados com armas ligeiras fiscalizavam o tarrafo à procura de indícios da presença do inimigo. Por vezes os botes eram emboscados na entrada ou passagem de uma clareira ou deparavam com uma canoa ou bote de borracha atravessar o rio. Uma ou duas vezes por semana, o destacamento realizava uma operação na margem norte do rio Cacheu para tentar intercetar alguma coluna de reabastecimento do PAIGC. Quando as operações se realizavam na margem sul tinham como objetivo assaltar acampamentos, eram recontros normalmente breves.

Ao fim de uns meses, o destacamento saiu de Ganturé e foi enviado para Gampará onde decorria, desde há cerca de dois meses uma operação de reocupação do território e ali se preparava a construção de reordenamento. Ali se encontraram com o Destacamento de Fuzileiros Especiais 21 de fuzileiros africanos e uma companhia do Exército. O acantonamento era constituído por um quadrado desenhado por covas de lobo, cobertas por ramagem, à sua volta construíram-se mesas e bancos, enfim uma vida muitíssima rudimentar. Nas redondezas do acantonamento encontravam-se alguns grupos dispersos de população que tinha sido desalojada das suas tabancas quando estas foram destruídas no início da ocupação. As restantes populações e os guerrilheiros do PAIGC tinham retirado alguns quilómetros para a margem sul do rio Pedra Agulha, junto de Ganquelé. Foi intensa a atividade operacional, nas atividades de proteção, patrulhando a região afim de contrariar a penetração dos guerrilheiros para norte do rio Pedra Agulha. Operações que exigiam um esforço físico violento, em percurso em corta-mato, em zonas em que se respiravam impregnado de pó da terra e do capim queimado. Dois meses e meio que levaram a um pleno cansaço, foram depois rendidos por uma companhia de paraquedistas. Depois de uns dias de descanso em Bissau partiram para operação conjunta Pato Azul, na região do Quínara, em que participaram forças especiais. Após Gampará foram enviados para Cacheu, com a missão de patrulhar o rio e afluentes e de realizar semanalmente uma ou duas operações nas proximidades da Caboiana, um santuário do PAIGC. Com alguma regularidade, também efetuavam operações conjuntas. Ao fim de três meses, foram novamente enviados para Gampará, aqui houve um incidente entre um fuzileiro e um elemento do Exército, Spínola determinou que o destacamento, por castigo, realizasse uma operação, subiram em botes o rio Corubal e percorreram cerca de 40 quilómetros uma região controlada pelo PAIGC, até Buba.

Meses depois, seguiram novamente para Ganturé, aqui terminou a comissão em finais de abril de 1973. Foi em Ganturé que se começou a percecionar a intensificação da atividade da guerrilha, viveram os últimos dias em Ganturé com o aparecimento de dois mísseis. Esta foi a vida no mato do Destacamento de Fuzileiros Especiais 8. E concluiu assim a sua intervenção:
“O estar no mato significou, para todos os que por lá andaram, o possível e o próximo contato de fogo quando saiam para operações no mato ou no decorrer dos ataques ao aquartelamento nas suas horas de serviço ou descanso e, por isso, a necessidade permanente de manter a disciplina e a segurança, a coesão e o espírito de unidade, o treino e as armas sempre prontas, mas o que marcava este decorrer dos dias era, sobretudo, a rotina, a espera de que qualquer coisa acontecesse, a contagem do tempo que não passava, o isolamento, a solidão mesmo que rodeado de camaradas, ausência de informação, a saudade e para muitos a participação numa guerra imposta, ou injusta, ou sem sentido”.


Render fuzileiros na Guiné, imagem da RTP, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24712: Notas de leitura (1620): "Tertúlias da Guerra Colonial"; edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021 (1) (Mário Beja Santos)