quarta-feira, 19 de abril de 2006

Guiné 63/74 - P705: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (3): De Santa Margarida ao Uíge

N/M Uíge > Foto da excelente página Navios Mercantes Portugueses (com a devida vénia)...

O Uíge era um navio misto, de carga e de passageiros, construído na Bélgica em 1954 e abatido em 1978. O seu comprimento não chegava aos 150 metros. A sua arqueação bruta era de 10 mil toneladas. Armador: Companhia Colonial de Navegação, Lisboa. Velocidade de cruzeiro: 16 nós. Alojamentos para 4 passageiros em classe de luxo, 74 em primeira classe, 493 em classe turística, no total de 571 passageiros... Nº de tripulantes: 139. Na viagem que levou o Paulo Raposo até à Guiné, em finais de Julho de 1968, transportava dois batalhões, ou seja, cerca de 1200 homens.

N/M Uíge > Final de Julho de 1968 > A caminho de Bissau > "A alegria do regresso quase que compensa a tristeza da partida". O Paulo Raposo é o segundo a contra da esquerda.

© Paulo Raposo (2006)


III parte do testemunho do Paulo Raposo (ex- Alf Mil de Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, na CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 (Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70> Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 10-14

SANTA MARGARIDA

Após termos dado a instrução aos soldados em Abrantes, lá fomos para o grande campo de Santa Margarida para tirar o IAO, a Instrução de Adaptação Operacional.

Santa Margarida era, na realidade, parecida com aquilo que víamos nos filmes de cowboys. Uma avenida muito larga e comprida, com uma capela ao fundo. De um lado e de outro dessa larga avenida havia enormes quartéis de todos os ramos do Exército. Estavam lá os carros de combate, a Engenharia, a Infantaria, as Comunicações, o Estado Maior de Brigada, etc.

Continuando depois da capela, havia o grande campo de tiro para onde íamos fazer fogo real.
Passado o IAO tivemos duas semanas de férias, para nos despedirmos da família, antes de embarcarmos.

Era precisamente neste período de férias que muitos rapazes se aproveitavam do dinheiro recebido do subsídio de embarque, para fugirem.

Um país não se constrói com aqueles que têm por hábito fugir e na volta, habilmente, dão-lhe uma componente política para se justificarem, mais perante eles próprios que perante os outros. Só se tem autoridade para criticar depois do dever cumprido.

Sobre este tema deixo aqui uma história:O Comodoro Cunha Aragão era um assanhado oponente de Salazar. Era amigo de meu pai e visita de minha casa. Em 1960 estava a comandar o aviso Afonso de Albuquerque, quando a União Indiana desencadeia a acção militar contra Goa.
Quando surge a primeira salva de tiros proveniente dos navios indianos que deu origem à invasão de Goa, o Comodoro Cunha Aragão agarra nos retratos de Salazar e Tomaz, que estavam no navio, e, atirando-os borda fora, diz:
- Vamo-nos bater por Portugal, não por estes gajos.

Este gesto custou-lhe as estrelas de Almirante. Foi ferido em combate, foi vencido, mas foi um bravo.

Uma coisa é a Pátria, outra são os regimes. Uma coisa é a Alta Política e outra é a baixa política. Hoje não sabemos distinguir uma da outra.

O EMBARQUE

No final de Julho de 1968, no Cais de Conde de Óbidos, lá embarcámos no Uíge. Seguiram os BCAÇ 2851 e 2852.

A largada foi terrível. O barco a afastar-se do cais é muito doloroso para nós, com as carpideiras que para lá eram enviadas, para nos desmoralizarem ainda mais.

Depois do navio largar e passar S. Julião da Barra, fomos para o bar à espera que nos chamassem para o almoço.

O Major Branco, que comandava interinamente o nosso Batalhão, uma vez que o nosso Comandante, Ten. Cor. Pimentel Bastos já tinha seguido de avião, perguntou ao nosso Capitão:
- Embarcaram todos os rapazes?

O Capitão respondeu de imediato:
- Sim, sim, meu Comandante.

Ele sabia lá!

Em conversa, o Cap Medina, que comandava uma companhia do outro batalhão que seguiia connosco e estava a partir para a sua segunda comissão, disse algo de que nunca me esqueci:
- A alegria do regresso quase que compensa a tristeza da partida.

Na realidade foi bem assim.

Durante os cinco dias que se seguiram, o ambiente a bordo não podia ser o melhor. Conversávmos muito uns com os outros enquanto passeávamos ao longo do tombadilho.

O nosso espírito era unânime. De política, nada sabíamos. Sabíamos apenas que aquela ida para África era o preço que tínhamos de pagar para ter um lugar na sociedade. E se na na vida tínhamos de passar sacrifícios, então iríamos passá-los de uma assentada para o resto da vida.

A defesa do Ultramar para nós, naquela altura, era uma coisa que não nos dizia directamente respeito, nem nos apercebíamos que África era fonte de abastecimento das nossas matérias primas.

O que é que íamos defender na Guiné, território que estava rodeado de países francófonos ? A população estava dividida por várias etnias, a função pública era ocupada por caboverdianos, os comerciantes eram senegaleses e a religão dominante a muçulmana.

Portugueses europeus não os havia por lá.

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