41ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado em 19 de Março de 2007.
Cartas de um militar além-mar em África para aquém em Portugal(3º e última parte)
por Beja Santos
Carta para o Paulo Simões da Costa
Meu estimado Paulo
Recebi a tua carta a caminho de Nampula. Espero que na secretaria tenhas uma existência agradável e nas horas vagas possas apreciar as beleza naturais, que me dizem ser assombrosas. O fotógrafo Luís Soares, que trabalhou com o meu pai, ofereceu-me uma fotografia da ilha de Moçambique que me deixou sem fala.
Por aqui vivemos um período de grandes dificuldades, a reconstruir Missirá, bem afectada por um ataque que incendiou metade das moranças civis. Felizmente que tem sido possível conciliar as obrigações inadiáveis dos nossos patrulhamentos diários com a reconstrução. Tenho muito orgulho nos meus soldados que prescindem férias e descanso.
Dentro em breve irá para Moçambique o Carlos Sampaio, seguramente mobilizado para um teatro de operações. Como tu gostas muito do Malraux (sobretudo o estudioso da arte) quero informar-te que vai seguir pelo correio um livrinho da colecção Miniatura, dos Livros do Brasil, que me surpreendeu pela alta qualidade literária, quando ele tinha a nossa idade. Tu vais ler diálogos imaginados entre um francês possídor de conhecimentos de obras chinesas que troca correspondência com um chinês, fascinado pela cultura ocidental.
Para te despertar a curiosidade, aqui vão algumas passagens. Escreve Ling: "O artista não é aquele que cria mas aquele que sente... o tempo para vós é aquuilo que fazeis dele e nós somos o que ele faz de nós". O correspondente francês procura sensibilizá-lo coma a ideia de nação, o sentido da alma ocidental, as fontes da vida imaginária e o génio europeu. O chinês contrapõe e esclarece a diferença que separa as duas sensibilidades: "Se sonhamos é apenas para pedir aos nossos sonhos a sabedoria que nos recusa a vida. O sonho do chinês não é povoado de imagens, ele não vê nem velhas conquistas nem a glória, mas a possibilidade de apreciar tudo com perfeição, de não se prender ao efémero".
Quando o francês procura esclarecer o chinês acerca das experiências artísticas, fazendo coincidir a história da Europa com a história da sua arte, ele responde: "Para o pensador do Extremo Oriente, o único conhecimento digno de ser adquirido é o do universo. O mundo é o resultado da oposição de dois ritmos que penetram todas as coisas existentes. O seu equlíbrio absoluto seria o nada; toda a criação procede da sua ruptura e implica necessariamente a diferença".
Dou comigo às vezes a pensar nestes labirintos silenciosos onde nos encontramos e ficamos em diálogo como amigos de longa data. Olha a curiosidade: a 11 de Abril de 67, almocei em minha casa com o Carlos Sampaio e a minha mãe. O Carlos levou-me à estação, entregou-me livros, prometemo mantermo-nos em contacto. A seguir apanho o comboio e conheci-te e aqui estamos. Desejo do coração que tudo corra bem contigo e que me ajudes nos momentos mais difíceis e me encorajes a resistir a esta dura canseira. Fica com muita estima.
Carta para José Carlos Megre
Meu caro Zé Carlos
Recebi a tua carta com a revista em que publicaste um poema meu. Tenho muitas saudades do tempo em que na Av da República, 84, 4º, confeccionávamos com o Pedro Roseta e o Barata Moura o nosso Encontro. Tu empurraste-me para as críticas de cinema e teatro, ensinaste-me as manhas para enganarmos a censura, deste-me a conhecer Mounier, aprendi contigo o que era o catolicismo de vanguarda e a importância de muitos títulos da Moraes Editora.
Não te quero deixar sem uma compensação. Imagina tu que antes de ir para a Guiné um amigo me ofereceu um livro da Simone Weil, autora que eu desconhecia, com uma temática extremamente arrojada: uma crente que está nos umbrais da fé, que se sente chamda por Cristo, mas que ainda não pode ultrapassar o silêncio. Vou mandar-te o livro, logo que ele esteja bem digerido. A Simone Weil, militante da Extrema Esquerda que por ser judia é forçada a abandonar a França e conhece exílios na América e em Londres, onde morre precocemente. O livro chama-se Attente de Dieu e é constituído por cartas que envia a um religioso. O que pasma é a sua extrema sinceridade, a sua força espiritual e o conhecimento do cristianismo. Ela aproxima-se da Igreja, mas está cheia de dúvidas.
Dou-te só dois pequenos exemplos da beleza desta escrita: "A infelicidade está verdadeiramente no centro do cristianismo. Amar a Deus ou amar o próximo passa pela infelicidade. Não podemos amar a Deus senão olhando a Cruz". E mais adiante: "No amor verdadeiro, não somos nós que amamos os infelizes em Deus, é Deus em nós que ama os infelizes. Quando estamos mergulhados na infelicidade, é Deus em nós que ama aqueles que nos querem bem". Aqui, neste ponto ermo, esta espera de Deus veio em meu auxílio. Espero que aprecies esta grande senhora que foi professora de filosofia e que quis combater na Guerra Civil de Espanha, uma agnóstica que um dia confessou: "Cristo desceu e tomou-me".
Zé Carlos, tomei a decisão de não voltar a publicar poemas, não sou poeta, o que escrevo é uma xaropada, há que ter respeito por quem paga jornais e revistas. Acresce que o que me vai na alma muitas vezes é tão doloroso que receio confundir a conjuntura com o sentimento definitivo. O que escrever vou guardar, sem quaisquer compromissos. Sempre que puderes, manda-me os jornais para eu ter saudades do ideal e da alegria com que colaborava no nosso jornal E escreve-me sempre pois um dia esta guerra vai acabar e tu vais ajudar-me a recomeçar. Obrigado por tudo.
Carta para Cristina Allen
Meu Adorado Amor
Chegaram ontem duas cartinhas tuas. Agradeço-te as visitas que fizeste ao Fodé e ao Paulo, isto quando estás a fazer frequências. Antes de falar do que tem aqui acontecido, quero dizer-te que o teu antigo professor de Expansão Portuguesa, o Teixeira da Mota, fez de mim seu ajudante para confirmar alguns dados. Penso que ele anda a preparar seja um livro acerca do Teixeira Pinto, seja sobre as guerras da pacificação da Guiné, assim que lhe disse que estava vivo o último filho do régulo Infali Soncó, logo me mandou uma bateria de perguntas acerca desse lendário guerreiro que derrotou o Teixeira Pinto nas guerras do Oio.
Recolhi o depoimento de Alage Soaré Soncó com o auxílio do Benjamim Lopes da Costa e do principe Samba, que dominam perfeitamente o mandinga. Não te vou prender com o relato destas peripécias, ele foi amado e condecorado pelas autoridades portuguesas que mais tarde traiu sem piedade. O que gostei mais no relato deste Alage Soncó foi uma história passada em 1915 em que o Governador, que na altura vivia em Bolama, então a capital, se deslocou aos regulados do Leste da Guiné, onde se deu um grave incidente.
Infali saiu de Sansão (aqui ao pé de Missirá) acompanhado por músicos em sinal de boas vindas. Foi tal a algazarra dos músicos e o avanço de uma multidão a correr para o séquito do Governador que um alferes, desconhecedor do significado daquela fanfarra, mandou disparar, dando origem ao cerco dos portugueses pela gente de Inafali.
Foi preso um alferes, dois sargentos e catorze praças, que ficaram reféns, enquanto o Governador se punha em fuga. Começaram as hostilidades e um pouco á semelhança do que se passa hoje, começaram os ataques do Geba. Entretanto, o alferes, que vivia perto aqui de nós, em Aldeia do Cuor, apaixonou-se por uma linda negra de nome Cumba Mané. Como numa ópera ou numa tragédia literária, assim que vieram resgatar o alferes, este suicidou-se, há quem diga por insanidade mental, há quem diga que por um grande amor pela Cumba, que ele não queria abandonar (2). O que aqui te escrevo, juro-te que me foi contado e transmiti ao Comandante Teixeira da Mota.
Informo-te que já chegaram camas, lençóis e fronhas para substituir tudo o que foi devorado pelo fogo. Como as obras se vão prolongar por mais um mês e meio, como as casas ainda estão em construção, não é possível viver de outra maneira de que atamancados nos abrigos, à espera de dias melhores.
Dois meninos meus amigos vieram visitar-me, o Mazaqueu e o Abudu Cassamá. Prometi-lhes material escolar e roupa nova no mercado de Bambadinca. Espero dentro de dias passar uma semana em Finete, a dar apoio ao novo Comandante, Bacari Soncó. Vamos fazer um telheiro para as mulheres do chefe de tabanca, instalações sanitárias e dois abrigos.
Como tu achas graça às trivialidades, segue-se mais uma . Através da confidencial 1704/01/69, o Batalhão de Engenharia mandou-nos uma agradável mensagem: "Motoserra segue hoje via barco. Fica como material carga". Um mês depois do ataque a Missirá chegam as malditas chuvas e imprevistos tornados. Tenho casas alagadas, o tecto da casa de Uam Sambu andou pelos ares e veio cair na parada.
Bambadinca informou-me ter dado apoio às propostas para condecoração de três bravos soldados, Cherno Suane, Mamadu Djau e Mamadu Camará. O Almeida e o pelotão 63, que estão em Bambadinca, passaram um mau bocado numa emboscada na zona do Xime, foi uma duríssima hora debaixo de fogo em que foi preciso a aviação vir tirar do apuro e mesmo assim teve três soldados estilhaçados com gravidade.
Deixo boas e más notícias para o fim. Chegou o Casanova que me entregou o Chopin interpretado por Samson François (prelúdios) e por Vladimir Ashkenazy (os dois concertos). Não sei como te hei-de agradecer bem como aos teus pais. Volto a andar sem dinheiro, já tenho idade para resistir a certos impulsos mas apareceu aqui o soldado Sadjo Seidi em pranto com as dívidas do pai que ameaça matar-se se não paga as dívidas e passei-lhe para as mãos os meus últimos 500 escudos...
E logo o Sadjo me perguntou se para o mês que vem lhe posso emprestar dinheiro para comprar nova mulher já que a primeira fugiu com o outro que vive na povoação de Geba. Como te recordas, palmaram-me 1500 escudos que deixara em cima da mesa, ainda não estou recomposto com a violência desta agressão e aproveitei para dizer aos soldados quando nos reunimos que há bandidos que nos queimam as casas e há outros que nos roubam sossegadamente dentro delas. Mudando de assunto, o Djaló Indjai escreveu-me, já está a restabelecer-se e vai contactar-te.
Estou a ler Espera de Deus de Simone Weil. Desculpa hoje não te falar da obra, tal o cansaço. Amanhã quem vai de manhã cedo a Mato de Cão é o Casanova, temos os cibes cortados e quero estar presente na montagem do forro dos abrigos, onde depois metemos cimento dentro e por cima da chapa zincada. Mas este livro tocou-me tão profundamente que resolvi escrevinhar um textinho que é só para ti:
Caminhada
Tu és a minha companhia da viagem.
Quando a minha memória se povoa de pássaros cegos,
quando uma melodia de sal me traz à lembrança o cerco destas bolanhas,
onde os lótus frutificam dentro da água de arroz, insensíveis aos vermes,
tu vens na confidência das línguas de fogo,
tu vences esta solidão que se evapora nos alto fornos
resgatando a esperança
que está imobilizada na estrada acima do rio
para onde vou partir a pensar em ti
e na tua coragem textual.
Tu és a minha companheira de viagem.
Por isso, antes de partir
falo silenciosamente no açude dos tímpanos
e quero que saibas: é fausto este amor, é um concerto polar
este amar.
Graças a ti, há todo o sentido em esquecer estes pingos da noite, conferindo direito de nos ocupares a sombra
neste gigante equatorial de matas que se sucedem,
aguardando a tua mensagem.
Tu és o sentido da caminhada.
Este textinho é um arremedo poético que não mostrarás a ninguém. Quanto à má notícia, as mulheres dos soldados e milícias foram até à fonte de Cancumba e quando estavam a espalhar a roupa a corar explodiu uma daquelas armadilhas que o Reis montou à volta. A mulher do soldado Dauda Seidi teve que ser evacuada com o peito todo estilhaçado. Vou trazer o Reis em breve, já não aguento estes sobressaltos. Desculpa, agora vou mesmo dormir. Recebe todo o meu amor e escreve-me depressa.
___________
Notas de L.G.
(1) Vd. último post desta série > 30 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1637: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (40): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (2)
(2) Vd. post de 18 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P882: Infali Soncó e a lenda do Alferes Hermínio (Beja Santos)
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