quinta-feira, 12 de abril de 2007

Guiné 63/74 - P1654: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (3): De pá e pica, construindo Gandembel

"Na região de Forreá e nas imediações do rio Balana, uma grande coluna provinda de Guileje havia de parar, desfazer-se das suas cargas, para desde logo se dar início aos trabalhos de construção do aquartelamento de Gandembel"...

Foto 206 > "Tanto trabalho por realizar, com pás, picaretas e outros artefactos manuais, criando calos nas mãos, que por vezes sangravam" (IR)


"Urgia arranjar uns abrigos (tocas escavadas), que nos garantisse alguma segurança, mesmo diminuta, durante o período da construção das casernas-abrigo"... Foto 205 > "A parte das escavações, em que os utensílios manuais, por vezes eram arrojados para o chão, para serem substituídos pelas armas" (IR)...


"Outras infra-estruturas, as mais essenciais e vitais, surgiram no imediato, tais como o posto-rádio e a cozinha; estes, foram sendo melhorados no delongar do tempo"...

Foto 204 > "A cozinha, quedou-se naquele local. Teve que levar um telhado em chapa, para a abrigar das inclemências das chuvas. Mas a qualidade dos alimentos postos à sua mercê foi, em grandes períodos, manifestamente má" (IR)...


Foto 203 > "O posto-rádio tornou-se uma infra-estrutura bem consolidada; desde cedo, constatou-se que a vida em Gandembel seria impossível, sem um funcional centro de transmissões" )(IR)...

Foto 202 > "Uma das primeiras prioridades, consistiu na limpeza de duas pequenas áreas, de molde a colocar uma tenda para servir de posto de enfermagem e também onde o helicóptero pudesse aterrar" (IR)...


Foto 201 > "De um lado, um monte de baga-baga à espera de uma picareta para o destruir, e tantas árvores para derrubar numa imensa zona para limpar" (IR)


Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (1968/69) > Instalação e início da construção do aquartelameto de Gandembel.

Fotos e legendas: © Idálio Reis (2007). Direitos reservados.


III Parte da história da CCAÇ 2317, contada pelo ex-Alf Mil Idálio Reis (ex-alf mil da CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1). Texto enviado em 11 de Fevereiro de 2007.

Meu caro Luís

Após ter exercido o meu direito cívico, estive o resto da tarde, à volta desta narrativa. E também contribuiu para contactar com alguns, saber-lhes das suas vidas e saúde. Infelizmente, tive a notícia que o coração arredou mais um do nosso seio. E estas notícias custam!
Seguem mais 2 capítulos, de 4 sobre Gandembel/Ponte Balana.

Até breve. Um cordial abraço do Idálio Reis.


Parte III - Instalação e início da construção do aquartelamento de Gandembel
por Idálio Reis (Subtítulos do editor do blogue)



Resumo: Em Gandembel, vinga a insensatez, a obrigarem-nos a penar um inextinguível tempo de arrastados sacrifícios. Do período mediado entre o início da construção do aquartelamento e a chegada da energia eléctrica, a 9 de Maio.(Ganembel/Balana, Parte Ia/IV)



O dia 8 de Abril de 1968 alvoreceu para um conjunto de homens inquietamente sós, desunidos de um futuro confiante, porque, por mais que se procurasse predizer, não lhes era possível reconhecer se se podia atingir. Um imenso manto de silêncio ali estava especado, com secretas sombras negras a envolver-nos.

Restava-nos apenas um singelo e frágil elo de ligação, com o presente a reclamar esperança, ainda que tão ténue e falível.

No chão do PAIGC....
Tudo estava pronto para se tomar rumo por uma estrada, onde as NT já lá não passavam há um ror de meses (desde quando?), por força do maior poder bélico que o PAIGC mantinha na zona.
A coluna partiu, e foi fácil atingir o cruzamento de Guileje. Aqui, virou-se à esquerda, e entrou-se numa estrada como tantas outras, em terra batida, a romper adentro de uma densa floresta.

A vegetação arbustiva já tinha começado a assenhorear-se do seu assento, e muitas árvores estavam tombadas, a dificultar o andamento da longa coluna. De quando em vez, encostadas sobre as bermas, jazendo no local de abandono, apareciam torcidos os destroços de viaturas carcomidos pela voragem do tempo.

Desde esse cruzamento, tão cruel para a Companhia ainda há dias, o avanço processou-se vagarosamente, com muitas paragens de permeio. E desde cedo, o Sol começou a lançar os seus inclementes raios, que nos começava a entorpecer os movimentos e a ressecar as gargantas, onde a preciosidade da pouca água que ia minguando no cantil, era de uma premente tentação a preservar para saciar uma outra secura, a sorver aquando da desidratação que proviesse do arfar do cansaço.

Apesar desta agonia, ao entardecer, sem grandes incidentes a registar, a coluna chegava junto ao corredor de Guileje, nas imediações do rio Bundo Boro, onde bivacou numa nesga de terreno que apresentava uma clareira mais rala, e onde o grande número de viaturas se dispôs em formato circular, cada uma guardada por pequenos grupos de militares.
Abatia-se sobre todos nós uma tensa e suspeita inquietação, e uma extenuante fadiga que se tinha apoderado facilmente, impelia-nos ao descanso. Se alguma ração se abriu, foi a boca sedenta a buscar algum líquido, embora na coluna viesse uma grande cisterna com água, a mesma que trouxéramos de Cacine; todavia, vinha fortemente defendida para ninguém ousar fazer abuso, e por isso até houve o cuidado de a colocar numa defendida posição de salvaguarda.
E parece que os homens do PAIGC deixaram assentar com toda a quietude este grande efectivo humano, serenamente, para amainar da canseira da jornada.


As boas-vindas do IN...

Fez-se então noite, e tudo se preparou para o próximo dia, encontrando cada um a melhor forma de fruir algum possível repouso, não descurando os que haviam de manter a indispensável vigília.

Amargamente, esta doce sensação de paz e tranquilidade, teve uma duração pouco mais que efémera. Num relance, um imenso tiroteio desencadeia-se, como resultado dos disparos de metralhadoras ligeiras até às fortes detonações das granadas de morteiros e de rockets, com uma repetição de acções quase consecutivamente.

Como tudo era escuro como breu, os estampidos dos projécteis indicavam-nos para nossa satisfação, que não atingiam o seu destino. Contudo, já na visibilidade da alvorada, os seus impactos cada vez mais se aproximavam, o que nos atemorizou ao ponto de muitos de nós ter que rastejar sob as viaturas à procura de um eventual refúgio mais seguro. Cruciantes momentos de arrepiar!

Felizmente que não houve agravos para o pessoal ou para o material. Os homens que guardavam a cisterna também se vieram a assustar, perderam o seu controlo, o que serviu para muitos, em sofreguidão, preferirem encher os cantis, enquanto os silvos estalavam na periferia...

Tudo me leva a crer que foi este imenso tiroteio que determinou a que a coluna se refizesse e avançasse mais cerca de meia dúzia de quilómetros para norte, em busca de uma linha de água que nos viesse a proporcionar o fornecimento desse elemento tão vital, e que, dado o adiantado da época seca, se tornava um bem bastante escasso.


O início de Gandembel/Ponte Balana

E por via disso, na superior linha de festo do rio Balana, nos viemos a quedar nessa manhã, para de imediato dar início à odisseia que representou a construção de um posto militar fixo, que se viria a chamar Gandembel e mais tarde a uma anexa afastada apenas de poucas centenas de metros, de nome Ponte Balana.

Sob a vigilância directa de uma tropa já bastante mais experimentada — a CART 1689 —, que já reconhecera o local antecipadamente, e que teve uma acção extraordinária durante a permanência que teve connosco até à sua retirada a 15 de Maio, e que é de elementar justiça salientar o papel relevante que sempre demonstrou, começámos a arranjar as nossas guaridas colectivas, autênticos abrigos-toupeira, que nos ofertassem uma maior segurança pessoal durante o tempo de construção dos abrigos definitivos.

Mas antes do mais, houve que proceder à limpeza arbórea da zona, onde a única ferramenta mecânica — a moto-serra —, nos propiciou uma ajuda preciosa. Não foi assim, mestre-soldado Horácio Almeida?, tu que desde criança, tens tido uma vida mancomunada com a floresta.

Tratou-se de uma tarefa bastante penosa, de uma luta travada sem tréguas contra o tempo que se esvaía, porquanto muito repentinamente tomámos plena consciência que potestades infernais tinham desabado sobre as nossas cabeças. Para tentar impedir ou minorar o absurdo das desgraças, mesmo dos desalentos, prestes a acontecerem a todo e qualquer momento, havia que arranjar forças em suficiência, sacadas aos recônditos de cada um de nós, dispostas a sobrepujar tais contrariedades.

Cada grupo de combate teve que arranjar num espaço de tempo de pouco mais de uma semana, e distanciados a cerca de uma dezena de metros, 2 buracos rectangulares escavados a uma profundidade da ordem do 1,5 metros, que depois foram cobertos por troncos de árvores justapostos, atapetados por chapas de latão aplainadas dos bidões, com um recoberto final de terra. Havia uma única entrada, que servia também de posto de sentinela.

9 de Maio: inauguração da luz eléctrica

A vivência nestes abrigos durou cerca de um mês, precisamente até 9 de Maio, que corresponde à inauguração da luz eléctrica, e que pelo simbolismo da data representa um forte «ronco», e que desejo que seja de marca maior, para lhe dar a primazia para o primeiro excerto a focar sobre Gandembel/Ponte Balana.

Este acontecimento correspondia à maior façanha atingida até então, pois se outrora as noites eram guiadas pela audição e cheiros, propiciava-se desde agora a ter luminosidade externa, que correspondia à visão alcançar para além das trevas. Aclaravam-se alguns dos negrumes, que impiedosamente se vinham abatendo sobre Gandembel.

Sentíamo-nos mais defendidos, uma vez que as noites sem luz eram aterradoras, em que o ecoar do mínimo ruído correspondia quase sempre a um constante tiroteio, e as noites sobre noites eram passadas em constante sobressalto, ante o sibilo das G3 em acção, a que se juntavam os estouros das flagelações inimigas que iam recrudescendo.

E o sossego dos corpos, tão fundamental, ia-se passivamente desestruturando. E tornava-se tão crucial manter elevado e coeso o moral desta tropa sempre briosa e intrépida. E era fundamental enfrentar as adversas agruras, com muita coragem, sem nos deixarmos abater.
A qualidade de vida que se nos deparou nestes abrigos, é de uma extrema precariedade, dada a crueldade das situações em presença, violentas e severas, desde o calor que se fazia sentir pelo efeito estufa resultante de um espaço quase nulo, os colchões de borracha que ao fim de poucos dias acabaram todos furados, os cheiros fétidos de corpos sujos de pó e bafientos do meio envolvente.

A Gandembel das morteiradas...
Havia também o reconhecimento que o grau de segurança minimamente necessário, era muito pouco fiável, em especial para as largas centenas de morteiradas que rebentavam sobre aquela zona. Felizmente que nenhuma granada explodiu sobre o coberto de qualquer destes abrigos.
Mas a situação mais angustiante para nós, era a audição das saídas das granadas de morteiros sem antevermos onde viriam a cair e deflagrar; parece que o record, como me afirmou há pouco tempo o Carlos Alentejano, foi de 32 (trinta e duas). Mais de uma trintena de granadas de grande potência, a curvar nos ares, para tombarem aqui ou além (onde?).

Durante o movimento imprevisível destes projécteis, ficávamos naqueles breves instantes, suspensos de uma qualquer intercessão, num silêncio persistentemente surdo, de ansiedade e expectativa. Eram momentos de um pavor incontrolável, em que se tremia de susto.

Foram empolgantes desafios de vida, estes consecutivos dias de escravatura, que se prolongariam principalmente até ao aquartelamento declarar algum estatuto de forma definitiva, e que impuseram um gigantesco esforço braçal quase constante, pois houve que proceder à execução das seguintes tarefas prioritárias:

— abertura de latrinas, e sua preservação com os mínimos requisitos de alguma salubridade;
— limpeza de uma área que possibilitasse uma descida rápida de um helicóptero, essa máquina voadora tão fundamental nas emergências;
— construção de abrigos de consistência bastante sólida, para a implantação do posto rádio e do comandante da Companhia;
— criação de um posto de primeiros socorros;
— arranjo de uma cozinha e de um forno para cozer pão;
— construção de abrigos consolidados, para servirem de paiol ou de defesa para localização dos obuses e de metralhadoras;
— arranjo dos abrigos definitivos, de execução mais demorada, a obrigar a um conjunto consecutivo de trabalhos específicos;
— limpeza de um vasto perímetro circundante ao arame farpado, a fim de poder manter um grau de visibilidade de algum alcance;
— ida à água que o Balana poderia fornecer; enquanto o período das chuvas não chegou, buscava-se ao longo do leito e que era uma tarefa a requerer sempre o maior cuidado, pois desde logo se começou a notar a utilização de minas e armadilhas.

(Continua > Ib/IV)

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Nota de L.G.

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