Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 12 de outubro de 2007
Guiné 63/74 - P2174: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (5): Aquela Terceira Semana Prodigiosa de Setembro
Capa do romance policial de Agatha Christie, O assassinato de Roger Ackroyd. Lisboa: Livro so Brasil. s/d. (Colecção Vampiro). Capa de Cândido Costa Pinto.
Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.
Texto enviado, em 21 de Agosto último, pelo Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).
Luís, aqui vai o quinto episódio. Prometo que o sexto seguirá até sexta feira. Julgo-te em férias, mais do que merecidas. Farei também uma semana de férias, até 3 de Setembro. Não te esqueças do meu pedido quanto ao Coronel Coutinho e Lima, o último comandante de Guileje. Um abraço do Mário.
Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (5): Aquela Terceira Semana Prodigiosa de Setembro
Ligeiro foguetório sobre Finete e Missirá
Tudo começou a 20 de Setembro de 1969,quando pelas 18h30, mal tínhamos chegado a Missirá, Finete foi flagelada durante uma hora. Não foi um ataque devastador, do alto dos abrigos e nas vigias dos sentinelas cedo se percebeu que era um tiroteio proveniente de um grupo pouco numeroso, vieram armados de morteiros e rockets, mas era um fogo intermitente, pausado e bastante económico, como se viessem só para cansar ou intimidar pelo factor surpresa daquele pânico repentino e não pelo caudal tumultuoso, avassalador da metralha.
Houve tempo para pedir a Bambadinca que fizesse fogo de morteiro sobre Malandim, notificando igualmente o Xime para estar atento, pois talvez viesse a ser necessário mais tarde foguear Chicri, infernizando-os na retirada para Madina. Feitos estes contactos, preparou-se uma coluna de auxílio a Finete que chegou a Canturé, já há muito cessara o fogo. Após uma caminhada prudente, encontrámos Finete moralizada, resistira bem com as suas Mauser, G3, dilagramas e o recém-chegado morteiro 60. Só destoara um ferido ligeiro e uma morança danificada. Para quem, como eu, vivia o espectro de um ataque intimidatório e brutal, susceptível de neutralizar por largos meses o destacamento onde íamos buscar os meios humanos para patrulhar Mato de Cão, o que acontecera era tranquilizador, o menor mal possível.
Mas não se confiava nestes pequenos surtos de fogo, a que Madina parecia querer habituar-nos. A 24 de Setembro de 1969, regressados igualmente ao anoitecer de Mato de Cão, a gente de Madina, de novo a partir das estrada de Cancumba, lançou um curto ataque com rockets que esvoaçaram sobre o quartel enquanto um punhado de atiradores metralhavam a porta de armas e três abrigos. Um morteiro flagelou meia dúzia de vezes o interior de Missirá, felizmente nas hortas e outros locais não habitados. Eu estava entregue aos cuidados do alfaiate Malâ Mané, um dos homens mais sorridentes que conheci, era um riso largo com dentes de ouro e óculos à Stevie Wonder e que veio de escantilhão atrás de mim, até sossegar dentro de uma vala, deixando-me entregue aos afazeres da resposta.
Amigos turras em Missirá ?
Foram escassos dez minutos em que a resistência firme, sobretudo dos morteiros e das bazucas, cortou cerce a intenção da gente de Madina em aterrorizar também com aquele fogo esparso e cadenciado, à semelhança do que fizera em Finete. Na manhã seguinte, verificámos com apreensão que o inimigo retirara a corta-mato, fugindo aos trilhos normais, que estavam armadilhados. Nessa manhã, alguns soldados diziam em voz alta:
-Estes gajos estão informados das picadas por onde não podem andar, têm amigos turras em Missirá.
Sempre procurei desqualificar este tipo de crítica, hoje sei que havia fundamento acerca da passagem de informações para a gente de Madina, a partir de Missirá e Finete. Não se devem esquecer os laços de sangue: havia mandingas de Missirá em Madina, balantas de Finete em todo o Oio.
As reivindicações dos caçadores nativos do pelotão
Depois da curta flagelação, recolhidas as amostras do fogo inimigo e verificada a inexistência de estragos, recolhemos aos leitos para sair pelas cinco e meia da manhã, pois havia patrulha de reconhecimento e pelas dez partiríamos para Mato de Cão. Exactamente quando saio ao alvorecer do abrigo para ir tomar uma chávena de café, descubro que tenho o pelotão formado em U à porta, impecavelmente indumentados, boina castanha na cabeça. O Domingos Silva apresenta o pelotão, limito-me a mandar descansar e regresso ao abrigo para me fardar a rigor. Regressado, igualmente de G3 no braço, pergunto ao que vêm. Noto que não estão presentes os furriéis nem os cabos brancos. É o mesmo Domingos quem vai ser o porta-voz: o Pel Caç Nat 52 está em Missirá desde 1967, tem vivido os patrulhamentos diários a Mato de Cão, ajudou a refazer o quartel, tem colaborado nas obras de Finete, consideram todos que chegou o momento de serem transferidos, merecem um pouco de repouso, vêm por este meio expressar ao seu excelentíssimo comandante os protestos da mais elevada consideração, não estão revoltados, sentem-se bem tratados mas acham que chegou a hora da mudança, o excelentíssimo alfero que providencie junto de Bambadinca para que haja uma transferência, tão depressa quanto possível, estamos cansados, este clima arrasa, o nosso inesquecível comandante é um exemplo de trabalho, parece que nasceu em África, é o pai de todos nós, queremos que ele parta connosco.
É uma longa oração, o Domingos está num momento feliz da oratória, não se ouve uma mosca, o meu olhar vagueia por todos estes semblantes rígidos, agora o meu olhar paira sobra as copas dos bissilões, desce como se pudesse ver Canturé, o coração aperta-se, é o pronuncio da despedida, começo a enfrentar o luto por essa Missirá inesquecível e profundamente amada. Com os olhos humedecidos, mas sem vacilar na voz, respondo-lhes que percebo o sentido da transferência e comunico que hoje mesmo procurarei expor em Bambadinca o que me acaba de ser pedido. O que se segue, deixa-os estupefactos. Digo-lhes que compreendo que tem havido muita canseira em Missirá mas que em Bambadinca nunca mais seremos esta família: ali trabalharemos em secções, andaremos a reboque de uma escala de serviços e de múltiplas necessidades, é mentira que descansaremos mais, não haverá Mato de Cão todos os dias, nem os reforços, nem as colunas de reabastecimento nem as obras, mas haverá colunas a qualquer hora, oiço o protesto dos camaradas que fazem emboscadas à volta de Bambadinca, eles devem falar com os camaradas de Bambadinca como eu faço. Garanto-lhes que tudo farei para que haja esta transferência, mas vou por arrasto, aqui ainda sinto dignidade, lá andaremos aos baldões da sorte a cumprir a escala de serviço e as necessidades operacionais, seremos uma serventia, cumpriremos as ordens dos outros. Vou com vocês, deixo o meu coração aqui.
Feito o reconhecimento, partimos para Mato de Cão, os batelões vieram à hora, avançámos para o quartel de Bambadinca, o Pires, o Teixeira e o Benjamim irradiaram para as sua missões, eu fui procurar o Comandante Corte Real.
Uma conversa extraordinária com todo o comando reunido
Jovelino Corte Real recebeu-me com deferência mas cedo observei que o olhar era gelado. E transmitiu-me as suas preocupações: era facto que Missirá e Finete estavam a sofrer pequenas flagelações, mas ele e o Major de operações estimavam que o inimigo circulava à rédea solta, parecia que tínhamos perdido a mentalidade ofensiva e queriam saber porquê.
Com o rosto afogueado pela torpeza da insinuação, pedi licença para responder na presença do Major de operações. Para minha surpresa, entrou igualmente o segundo comandante, o Major Cunha Ribeiro, presumo que acidentalmente. Aclarei a voz, procurando repor a verdade dos factos e sem me enervar: qualquer inimigo tinha, nas circunstâncias actuais, capacidade para pequenas, médias e grandes flagelações, ele estava informado dos nossos patrulhamentos diários, na época das chuvas há sempre mais gente doente, era do conhecimento do novo comando que Missirá ficara num escombro em meados de Março, era hoje de novo um destacamento graças aos soldados e à população civil, mesmo com algum apoio de Bambadinca e da engenharia de Brá. Quando chegara a Missirá, encontrara quase dois pelotões. Hoje tinha um pelotão e uma secção. Se o novo comando entendia que houvera perda de mentalidade ofensiva, em nome dos meus soldados pedia formalmente que fôssemos transferidos prontamente. Aliás, aproveitava para transmitir o pedido dos caçadores nativos que se encontram em Missirá há mais de dois anos e meio.
Na réplica, o Comandante suavizou o nível das críticas e prometeu reapreciar a situação nos próximos dias. Furioso com a injustiça da insinuação, virei as costas e desci apressadamente a rampa de Bambadinca, com a fome no corpo e na alma. E só depois de duas bifanas no Zé Maria é que ganhei coragem de me lançar na bolanha ainda enlameada, sem gozar a magnitude do palmar à distância.
Uma primeira conversa esotérica com o padre Lânsana Soncó
Anoitece quando empunhando o meu caderninho preto onde consta a palavra Soncó que tem lugar a minha apalavrada reunião com o Padre Lânsana, meu vizinho e admirado sábio. Estamos acompanhados pelo Benjamim e, sempre que necessário, Cherno traduz directamente para mandinga. Peço primeiro a Lânsana que fale sobra a duração da época das chuvas. Ele beberricara chá de erva cidreira e comera pãezinhos quentes preparados pelo Jobo, servindo-se generosamente de talhadas de marmelada. Respondeu dizendo que a época das chuvas vai desde o princípio de Março até finais de Outubro, mês em que normalmente já chove pouco. Recordou que é uma época com ondas de calor sufocante, grande trovoadas no princípio e no fim, redemoinhos que começam por ser manchas pretas que começam nas bolanhas e se transformam em colunas de ar destruindo tudo à sua passagem.
Perguntei-lhe depois quais as culturas desta época. Com gestos serenos, as suas mãos mascarradas pela tinta com que desenha elegantes caracteres árabes, ele que tem uma pose de Fu Manchu, fala do cultivo do milho preto e basil, da mandioca, do arroz e da batata doce. Observo que sobre a cultura de arroz tinha estado a conversar com o chefe da tabanca de Finete, N’cuia, um gentil balanta que me aturava estes interrogatórios. Afinal, muitas destas questões eram cuidadosamente versadas em livros publicados pelo Centro de Estudos da Guiné Portuguesa.
Perguntei-lhe à queima roupa se Missirá sempre existira com esta nome, ao qual ele respondeu:
-Só a partir do pai de Malã é que Mansacunda é que passou a chamar-se Missirá, em homenagem ao lugar santo.
Avancei depois para a questão delicada da lealdade dos Soncó e dos Mané à bandeira portuguesa. Como se estivesse a filosofar olhando para um ponto fixo, o padre lembrou que em todas as culturas há ressentimentos, traições, mudanças de opinião. Toda a gente sabia que Seco Soncó, um irmão de Malã que vivia em Canturé, nunca aceitara a escolha de Malã para régulo com o patrocínio das autoridades portuguesas, tinha logo apoiado o PAIGC desde o início da luta armada. E foi exactamente quando eu me preparava para fazer perguntas sobre a época seca que Umaru pedi licença para pôr a mesa, dez militares esperavam à porta da messe que acabassse aquela conversa esotérica. Lãnsana prometeu continuar a dar-me todos os esclarecimentos necessários.
Leituras: de Simenon a Agatha Christie
A casa do canal, de Georges Simenon não é um policial mas é um denso romance psicológico onde não vai faltar um homicídio. Uma jovem de dezasseis anos parte de Bruxelas para ir viver com familiares em terras flamengas, em Neroeteren. Ela chama-se Edmée, é cosmopolita e nunca se sentirá bem em meio rural, vendo os barcos passar entre comportas, no meio de tios e primos que chapinham passos na lama.
Para quem duvide que Simenon seja um grande escritor, este livro dissipará todas as dúvidas, tal a capacidade dos registos humanos, o poder descritivo perfeitamente controlado, os diálogos enxutos, a riqueza de pormenores da Bélgica profunda: os objectos domésticos, as conversas à mesa, o vestuário, a contenção dos sentimentos, o patinar na neve, o ciclo das estações. Edmée é assediada pelo primo primogénito, indiferente à paixão que desencadeara noutro primo que a irá assassinar, brutalizado pela perda. Leitura magnífica e não paro de acariciar a linda capa de Bernardo Marques, um modernista que soube elevar o design gráfico à categoria de grande arte.
Capa do romance de Georges Simenon, A Casa do Canal. Lisboa: Livros do Brasil. s/d.. Capa de Bernardo Marques.
Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.
Soube-me bem reler O assassinato de Roger Ackroyd, de Agatha Christie. Para quem está esquecido, este romance dos anos trinta continua a ser uma singularidade nos anos sessenta: é o assassino que veste a pele de narrador, o Dr. Sheppard, médico de King’s Abbot, uma aldeola da Inglaterra rural. O romance deu controvérsia na época, a criadora de Hercule Poirot foi acusada de excesso e quebra de regras ao inviabilizar que o leitor pudesse participar na decifração do enigma. O que é importante é a textura com que a grande senhora do crime promove os inquéritos de Poirot, acolitado pelo próprio homicida e pela sua irmã bisbilhoteira. Uma obra prima absoluta, além do mais com uma bela capa do Cândido da Costa Pinto.
Estão a chegar alguns dias trágicos, para mim e para Missirá. Vem aí o colapso nervoso do [Furriel] Luís Casanova, que me vai deixar ainda mais sozinho; o correio de Lisboa faz-me descer às profundezas do inferno, há cóleras que se destilam em tinta, diferentes juizes e juízas que proferem sentenças de acusação, o possível casamento com a Cristina é censurado em coro; Missirá será de novo flagelada e depois, em meados de Novembro, por íncúria minha, deflagrará uma poderosa mina anti-carro em Canturé, agravando o moral das tropas.
Estamos numa época em que as chuvas são inclementes, os atoleiros das viaturas uma prática corrente, os soldados cada vez mais exaustos e a acreditar que a transferência [para Bambadinca] ia melhorar as coisas. É um tempo de prodígios, e Deus voltou a manifestar a Sua infinita misericórdia comigo. É um tempo em que se perderam vidas e em que julguei que Cherno Suane, o mais devotado dos amigos, ia morrer. Falemos então desse tempo.
___________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post anterior desta série > 5 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2154: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (4): Cartas de Missirá, Setembro de 1969
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