quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2425: O Nosso Livro de Visitas (1): Manuel João Coelho, Cabo Especialista da FAP (Aeroporto da Portela)

1. Mensagem de Manuel João Coelho, com data de 7 de Janeiro de 2008:

Felicitações pelo excelente blogue!

Voluntário na Força Aérea, de 1963 a 1966, fui colocado no então AB 1- Aeródromo Base n.º1 no Aeroporto da Portela, em Lisboa, de 1964 até final do tempo de tropa.

Escapei à mobilização para África, mas tornei-me, com outros camaradas, testemunha de episódios que poucos conheceram.

Refiro-me à chegada dos aviões de evacuação, DC-4, Skymaster e DC-6, dos Transportes Aéreos Militares, que traziam para Lisboa, os feridos e acidentados da guerra.

Os vôos normais desembarcavam os passageiros a par dos aviões civis, no estacionamento frente ao Terminal... os de evacuação chegavam à noite, por vezes de madrugada, e eram deslocados para a placa no interior do AB1, longe dos olhos da população.

Como Cabo Especialista MMA (Mecânico de Material Aéreo) fazia parte da equipa que recebia o avião: reboque com tractor, ajuda na abertura da porta e colocação da escada de saída, para além de outras tarefas.

Este momento de abertura era sempre de tensão, a porta abria-se e saía um bafo terrível, mistura de suor, éter, sangue, restos de comida, as macas sobrepostas, os feridos de todos os tipos... rebentamento de minas, amputados, cegos, queimados, cacimbados, feridos à bala, com estilhaços.

E depois a confusão da saída das macas, levanta à frente, baixa, baixa atrás, aguenta, segura!...o despacho e presteza das enfermeiras-páras que, por vezes, acompanhavam o pessoal, o ar pálido/horrorizado das madames da Cruz Vermelha, com as suas capas cinzentas, e que com os seus belos penteados eram um anacronismo ali, pese a sua boa vontade.


Nestes vôos eram particularmente difíceis os que vinham da Guiné.

A viagem era mais curta, tínhamos a sensação de que alguns daqueles desgraçados tinham ferimentos ainda frescos: camuflados rasgados, ligaduras empapadas em sangue, um ar esgazeado mostrando a surpresa, a incredulidade face ao sucedido.



Guiné> Vista aérea da Base Aérea 12> Bissalanca

Foto retirada do Blogue dos Especialistas da BA12, Guiné 1967/74, com a devida vénia

Recordo-me, como se hoje fora, de uma noite em que chegaram dois aviões quase em simultâneo. Não havia capacidade de transporte para o Hospital da Estrela e anexos, de tanta gente, as ambulâncias não chegavam e lá vieram os autocarros da Academia Militar para transportar os feridos que pudessem viajar sentados.

Tenho dois amigos, açorianos como eu - Ponta Delgada, S. Miguel - ambos furriéis milicianos, que estiveram na Guiné, julgo que a partirde 66 até 68 ou 69. Um, o Tibério Branco, andou por Catió e Buba, tanto quanto recordo, o outro, Álvaro Lemos, em Aldeia Formosa.

Os dois contavam, no regresso, como tinha sido a vida deles naquele território e, anos depois, já com o país independente, visitei a Guiné: Bissau, Nhacra, Bafatá, Cacheu e, na carrinha que percorria a estrada, olhando em redor, para aquela vegetação, as bolanhas, os rios e as jangadas, as tabancas - numa delas a inscrição numa parede "Viva o Benfica" - pensei neles, nos meus amigos de adolescência, no seu sacrifício. E nalguns colegas que morreram na guerra em África: o Martins, o Norberto, o Amaral, o João Manuel Cordeiro e outros cujo nome esqueci.

Ao mesmo tempo interrogava-me: se eu tivesse vindo aqui parar, teria conseguido, será que aguentava isto?

Um abraço e continuação do bom trabalho

Manuel João B. Ferreira Coelho


2. Resposta do co-editor CV:

Caro João Coelho:

Desde já agradecemos as suas palavras amáveis e a descrição que faz da sua experiência, colateral, da Guerra Colonial.

Julgo que os nossos verdadeiros amigos e camaradas que tiveram a ventura de escapar àquela guerra, sentiram por nós, os que para lá fomos, uma saudade e um temor que só terminaria naquele abraço trocado aquando do regresso definitivo.

Todos nós temos a lamentar a morte de alguém, que fazendo parte do imaginário da nossa juventude, foi levado antes do tempo, cuja memória provocará uma saudade e uma dor por toda a nossa existência.

O Coelho pode considerar-se Tertuliano e Amigo do nosso Blogue, porque visitou a Guiné-Bissau e viveu de muito perto os efeitos da Guerra Colonial.

Receba um abraço do co-editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Carlos Vinhal

2 comentários:

Anónimo disse...

Esta descrição da chegada a Lisboa dos aviões, fez lembrar a minha evacuação num DC6, não vinha de maca mas vinham lá muitas - viagem de noite e confusão na chegada.
Um abraço para o Coelho de outro açoriano de S. Jorge. O Blog ainda tem poucos ilhéus, mas com o tempo vão aparecendo.
Henrique Matos

joão coelho disse...

Caro Henrique

Só agora me é possível vir aqui dar-lhe um abraço ( dificuldades "nabisticas" no manuseamento destas tecnologias ) Espero que apareçam de facto mais açoreanos, andaram lá, alguns amigos meus incluídos e, reza a lenda, que uma companhia de micaelenses até terá levado o PAIGC, que os ouvia no mato ( e ao seu sotaque de "coriscos" ) a pensar que os militares portugueses estariam a utilizar mercenários de oorigem desconhecida.
Vai daqui, desta Lisboa, um abraço atlântico, com saudades das fajãs, do queijo, e do resto, sem esquecer as Velas e a Calheta ( cito as duas para não ferir susceptibilidades )...

João Coelho