1. Mais uma das geniais estórias (ou histórias, como queiram) cabralianas... Cabralianas, de Cabral, Jorge Cabral, porventura o único combatente da Guiné que não sofre de stresse pós-traumático de guerra (*). Julgo que inclusive tem uma declaração psiquiátrica a atestar tal facto, e que anda sempre com ele na carteira. E nessa qualidade é porventura o único de todos nós que estaria apto para lá voltar, na outra encarnação... Como penitência, está-nos a pagar uma promessa de cinquenta contos. Este é o 39º... Só faltam 11, o que em euros dá qualquer coisa como 55 ... Não é muito mas, nos tempos que correm, dá-nos jeito. Na Guiné dá para comprar dois sacos de arroz e fazer feliz uma família durante um mês. Aqui vai a segunda das duas estórias que nos mandou há dias (**). Não se esqueçam de lhe dizer: Obrigado!
LG
2. Estórias cabralianas (39) > O Marido das Senhoras
por Jorge Cabral
Todos nós tínhamos uma fé. Os africanos eram na sua maioria muçulmanos, os europeus católicos e eu era tudo. Frequentava a mesquita e a igreja, mas também prestei culto aos Irãs balantas. Porque não?
O mais religioso de todos era porém o furriel Paiva (***).
No seu abrigo–quarto construíra um pequeno altar, onde colocou quatro imagens das Santas da sua devoção e, entre elas, o retrato de Salazar.
Sempre alumiado por uma vela, o local era visitado com respeito pelos Soldados Africanos, mulheres, filhos e demais população.
No final do mês de Julho de 70, logo de manhãzinha, o Milícia Demba informou-me compungido:
- O furriel Paiva está muito triste. Morreu o Salár.
Estremunhado não percebi:
– Quem? Quem morreu?
- Foi o marido das Senhoras! – respondeu-me convicto.
© Jorge Cabral (2008). Direitos reservados
_________
Notas de L.G.:
(*) Ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71 . Actualmente, jurista e professor universitário. Nasceu, trabalha e vive em Lisboa. O seu sonho, modesto, era voltar a ser chefe de tabanca; o seu sonho maior era poder ainda um dia ser convidado para reitor da Universidade de Fá-Mandinga...
(**) 23 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3225: Estórias cabralianas (38): O Alferes roncador e a almofada (Jorge Cabral)
(***) Aviso do autor (JC): "Quanto ao devoto furriel, claro que não se chamava Paiva"...
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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5 comentários:
Ó Luis Graça, adapta-te pá, estás velho...
A promessa de cinquenta contos...são agora duzentos e cinquenta euros...eheheh
Abraço Jorge, grande Jorge...
Abraço camarigo do
Joaquim Mexia Alves
Só o Jorge Cabral, em quatro linhas, pode fazer rir a bom rir.
Jorge, para quando um livro com as tuas histórias?
Carlos Vinhal
Como ele só ele.
Obrigado Jorge, és o maior a contar histórias.
Um abraço
Carvalho de Mampatá.
Já ouvi isto á vários anos,mas continual actual
Jorge Cabral,só há um,o de Missirá e mais nenhum.
Grande abraço..
Nunca respondi ao comentário do Joaquim Mexia Alves, ms nucna é tarde...Aqui vão uns cálculos que nos permitem relativizar o "valor" do dinheiro:
(i) 50 "contos" (ou "estórias" do "alfero Cabral") não têm preço;
(ii) 50 mil escudos (ou 50 contos) em 2008 equivaleriam, a preços de hoje não a 250 €, mas um pouco mais: 277,39 €
(iii) em 1970, quando o "alfero Cabral" andou lá por Missirá (e o ano em que morreu o Salazar) equivaleriam hoje a 14.721,07 €!...
Ver aqui o conversor da Pordata > Portugal (, disponível no canto inferiro direito da página):
https://www.pordata.pt/Portugal
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