quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3237: Estórias cabralianas (39): O Marido das Senhoras (Jorge Cabral)

1. Mais uma das geniais estórias (ou histórias, como queiram) cabralianas... Cabralianas, de Cabral, Jorge Cabral, porventura o único combatente da Guiné que não sofre de stresse pós-traumático de guerra (*). Julgo que inclusive tem uma declaração psiquiátrica a atestar tal facto, e que anda sempre com ele na carteira. E nessa qualidade é porventura o único de todos nós que estaria apto para lá voltar, na outra encarnação... Como penitência, está-nos a pagar uma promessa de cinquenta contos. Este é o 39º... Só faltam 11, o que em euros dá qualquer coisa como 55 ... Não é muito mas, nos tempos que correm, dá-nos jeito. Na Guiné dá para comprar dois sacos de arroz e fazer feliz uma família durante um mês. Aqui vai a segunda das duas estórias que nos mandou há dias (**). Não se esqueçam de lhe dizer: Obrigado!

LG


2. Estórias cabralianas (39) > O Marido das Senhoras
por Jorge Cabral


Todos nós tínhamos uma fé. Os africanos eram na sua maioria muçulmanos, os europeus católicos e eu era tudo. Frequentava a mesquita e a igreja, mas também prestei culto aos Irãs balantas. Porque não?

O mais religioso de todos era porém o furriel Paiva (***).

No seu abrigo–quarto construíra um pequeno altar, onde colocou quatro imagens das Santas da sua devoção e, entre elas, o retrato de Salazar.

Sempre alumiado por uma vela, o local era visitado com respeito pelos Soldados Africanos, mulheres, filhos e demais população.

No final do mês de Julho de 70, logo de manhãzinha, o Milícia Demba informou-me compungido:
- O furriel Paiva está muito triste. Morreu o Salár.

Estremunhado não percebi:
– Quem? Quem morreu?
- Foi o marido das Senhoras! – respondeu-me convicto.


© Jorge Cabral (2008). Direitos reservados

_________

Notas de L.G.:

(*) Ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do
Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71 . Actualmente, jurista e professor universitário. Nasceu, trabalha e vive em Lisboa. O seu sonho, modesto, era voltar a ser chefe de tabanca; o seu sonho maior era poder ainda um dia ser convidado para reitor da Universidade de Fá-Mandinga...

(**) 23 de Setembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3225: Estórias cabralianas (38): O Alferes roncador e a almofada (Jorge Cabral)

(***) Aviso do autor (JC): "Quanto ao devoto furriel, claro que não se chamava Paiva"...

5 comentários:

Anónimo disse...

Ó Luis Graça, adapta-te pá, estás velho...

A promessa de cinquenta contos...são agora duzentos e cinquenta euros...eheheh

Abraço Jorge, grande Jorge...

Abraço camarigo do
Joaquim Mexia Alves

Carlos Vinhal disse...

Só o Jorge Cabral, em quatro linhas, pode fazer rir a bom rir.
Jorge, para quando um livro com as tuas histórias?
Carlos Vinhal

Anónimo disse...

Como ele só ele.
Obrigado Jorge, és o maior a contar histórias.

Um abraço

Carvalho de Mampatá.

Zé Manel Cancela disse...

Já ouvi isto á vários anos,mas continual actual

Jorge Cabral,só há um,o de Missirá e mais nenhum.

Grande abraço..

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Nunca respondi ao comentário do Joaquim Mexia Alves, ms nucna é tarde...Aqui vão uns cálculos que nos permitem relativizar o "valor" do dinheiro:

(i) 50 "contos" (ou "estórias" do "alfero Cabral") não têm preço;

(ii) 50 mil escudos (ou 50 contos) em 2008 equivaleriam, a preços de hoje não a 250 €, mas um pouco mais: 277,39 €

(iii) em 1970, quando o "alfero Cabral" andou lá por Missirá (e o ano em que morreu o Salazar) equivaleriam hoje a 14.721,07 €!...

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