Guiné > PAIGC > Manual escolar, O Nosso Livro - 2ª Classe, editado em 1970 (Upsala, Suécia). Exemplar cedido pelo Paulo Santiago, Águeda (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho , 1970/72) > Fotografia do "Camarada Amílcar Cabral, Secretário Geral do Partido", pág. 107.
Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.
1. Mail que mandei hoje ao meu amigo Pepito:
Na segunda-feira, de manhã, andávamos todos angustiados por vossa causa... Imagino também o que vos ia na alma... Falei logo com a tua mãe, sei que lhe telefonaste duas vezes... Ele acha-te um 'optimista profissional'...
De qualquer modo, foi uma tragédia shakespeariana, essa que aconteceu, aí, e que vai deixar marcas na memória e na identidade do teu povo... Há uma geração que cresceu marcada pela violência (armada) das máfias...
Os nossos tugas também devem ter apanhado o seu susto... Tive que tranquilizar um das nossas mulheres... Desta vez porém os tropas não desataram aos tiros uns aos outros, incendiando a Guiné... Vocês agora precisam de todo o apoio (diplomático e não só) da comunidade internacional e da CPLP.
O que se diz por aí, que a gente aqui não saiba? Quem era esse comando de Mansoa? Balantas, uma sociedade secreta, à margem da hierarquia militar? O Nino, apesar de tudo, era popular em Bissau, e era o "último moicano"... Aqui era apontado como um 'amigo de Portugal'...
Não sei quais são os teus sentimentos pessoais (sei que também era um arqui-inimigo teu e da AD), mas será que estas duas mortes (físicas e simbólicas) representam também um 'virar de página' ? Gostava de ter um escrito 'guineense' sobre estes acontecimentos, vistos de Bissau... Tens um quarto de hora para nós? Ou a Isabel...que é portuguesa. Tens que lhe recordar que ela é também membro da Tabanca Grande?
Um chicoração. Cuida-te. (Não tenho o teu telemóvel de Bissau).
Luís
2. Resposta do Pepito (a quem agradeço a amizade, a frontalidade, o desassombro, a reafirmação dos valores éticos e políticos que são uma herança de Amílcar Cabral e que continuam a ser inspiradores para muitos de nós, cidadãos de Portugal, da Guiné-Bissau e do mundo) (*):
Luís
Sempre ouvi aos combatentes da independência da Guiné-Bissau referir que Amílcar Cabral se opunha com todas as suas forças à morte praticada por camaradas a camaradas de luta, por razões, fossem elas qual fossem, das "mais" às "menos" justificadas.
Ele promoveu julgamentos contra camaradas que mandavam matar outros que se iam entregar nos quartéis portugueses, porque tinham momentos de fraqueza ou desistiam de lutar. Ele dizia que a luta não era para nos matarmos uns aos outros. Que se assim fosse e se assim desejassem que continuasse a ser, então ele ia embora porque não se reconhecia nessas práticas.
Durante a organização do simpósio de Guiledje voltei (re)ouvir estas histórias contadas na primeira pessoa, por aqueles que as viveram.
Cabral ensinou-nos a todos que a luta não era contra os portugueses mas sim contra o regime colonial que oprimia uns e outros. Esta lição foi bem aprendida e hoje todos podem verificar o carinho com que os ex-militares são recebidos em Bissau.
Infelizmente já a primeira lição, a de não usarmos a violência, não foi aprendida. Ele foi a primeira grande vítima e nós acabámos todos por apanhar por tabela. O assassinato dele tem implícito a conivência de camaradas de luta que o mataram duas vezes: uma fisicamente e outra, nos últimos 30 anos, ao "esquecermos" completamente a sua existência, o seu pensamento e o seu exemplo. Os que estiveram implicados na primeira morte voltaram a estar implicados na segunda.
Daí em diante foi um rol infindável de aniquilamentos, de assassinatos, de matanças. Revoltado, vi morrer o meu Ministro da Agricultura, Paulo Correia, o melhor que tive em 18 anos de técnico daquele Ministério. Ele, entre muitos outros. Todos camaradas de luta mortos por camaradas de luta.
A espiral de violência atingiu neste fim de semana o grau que nunca antes tinha atingido.
Se há um nome a quem se possa imputar a responsabilidade maior desta cultura de violência, não pode ser outro senão o de Nino Vieira.
Depois do regresso de Portugal do pós-conflito armado de 1998, veio claramente fragilizado. Não tinha o poder que antes tivera: o poder militar estava na mão daqueles que lhe tinham imposto o exílio; o poder político e partidário escapava-lhe ao seu controlo absoluto. O regresso ao país e ao poder foi permanentemente marcado por uma estratégia de reconquista desses 3 poderes (militar, governo e partido). Fez e desfez alianças. Perdeu aquilo em que no passado era um mestre: a intuição.
Falhou estrondosamente nas últimas eleições ao apostar num partido sem liderança credível e sem militantes, convencido que o seu nome e figura era o bastante.
O seu último falhanço foi no plano narco-militar. Geriu mal os interesses de uns e outros, fossem eles de poder ou narco-financeiros. A bomba que matou Tagme cheirava a Colômbia e este, que tinha conhecimento do que se estava preparar, não sabendo apenas a data e local, pediu antecipadamente aos seus camaradas: "se ele me matar de manhã, matem-no à noite". Talvez tenha sido a primeira vez que um morto mata um vivo.
Morreu de forma ultrajante, violenta e repugnante: à catanada.
Mais do que a morte deles, o que me preocupa é como é que vamos acabar com esta espiral de violência de vez.
abraço do teu amigo
pepito
__________
Nota de L.G.:
(*) Vd. último poste da série > 3 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3975: Sr. jornalista da Visão, nós todos somos combatentes, não assassinos (12): José Teixeira, ex-1.º Cabo Enf da CCAÇ 2381
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
Pepito:
É um retrato lúcido, desassombrado, corajoso, da situação político-militar do teu país... Mas tu não ficas na análise fria e cómoda do observador (externo e distante). És proactivo e perguntas: como travar esta espiral de violência, como mudar esta cultura de violência ?
Habituei-me a ouvir-te (e a ler os teus escritos bem como os documentos da AD, cooperativa de que tu és um dos pais-fundadores e sobretudo a “alma mater”), e sempre te admirei pela lucidez, desassombro, coragem, verticalidade, com que falas do teu país, da sua história passada e recente, dos seus líderes, da gestão da coisa pública… Mas também sublinho (e subscrevo) a paixão, a ternura e o carinho, com que te referes a essa terra (vermelha e quente) e às suas gentes (humildes e maravilhosas).
Sei que vais continuar a trabalhar pela tua Guiné, a fazer o teu melhor, a reunir talentos e recursos em projectos de desenvolvimento integrado que deveriam competir a um Estado que (aindA) não existe. E vais fazê-lo até seres velhinho, que a reforma (dourada) é coisa que não está nos teus planos… Muito menos longe de Varela, do Quelelé ou de Imberém…
Deixa-me lembrar-te um dos pontos dos ‘estatutos’ deste blogue, o da não-intromissão, por parte dos portugueses, na vida política interna da actual República da Guiné-Bissau (um jovem país em construção), embora esteja salvaguardADO o direito de opinião, de cada um de nós, como seres livres e cidadãos (portugueses, europeus e do mundo)…
Não quero ser eu o primeiro a infrigir essa regra… Nos dias que correm, em que nuvens negras descem sobre todos nós (Bissau não é uma ilha), não faltam Cassandras, profetas da desgraça, pitonisas, conselheiros do príncipe, gurus, analistas, estrategos, etc. a imprecar o destino ou a aplacar a ira dos irãs ou a desenhar cenários (do “eldorado” do petróleo ao 4º mundo do narco-Estado, baseado na economia do crime e na gansgterização dos grupos de interesse)…
Não quero, não posso nem vou competir com eles e com elas, por que estes dias são de luto, de choro, de emoção, de reflexão, de partilha de sentimentos, de reafirmação da amizade e da solidariedade humana (e lusófona). A bomba que matou Tagma Na Waie ou os tiros e as catanas que puseram fim ao “último moicano” , ‘Nino’ Vieira, foram também bombas, tiros e catanadas contra o povo da Guiné e os seus amigos… Todos morremos um pouco, quando dois dos dirigentes máximos de um país-irmão se matam, um ao outro, como nos míticos duelos ao sol do Faroeste da nossa infância…
Uma tragédia shakesperiana, chamei-lhe eu. Nada que a gente não tivesse experimentada ou conhecido na história das “velhas civilizações europeias” que são as nossas ... (É também altura de baixarmos os nossos vieses etnocêntricos e refrearmos um pouco a nossa pretensa superioridade moral em relação aos outros)…
Tudo isto, afinal, para te dizer, contra o cinismo de muita gente e de muitos países, que Deus ou Alá ou os irãs também param e poisam em Bissau e abençoam os rios, os poilões, as tabancas, os daris e os homens e as mulheres e as crianças da tua/nossa Guiné. Só lhes pedimos, a Deus, a Alá, aos irãs - permite-me este voto piedoso - , que se não esqueçam também de iluminar a mente dos homens (e das mulheres) grandes que vão ter que abrir a picada do futuro, ir à frente, mostrar o caminho, ser líderes...
Aprender com o passado, reflectir sobre o presente, perspectivar o futuro: é a tarefa que temos para frente, sempre interminável e penosa como se fora um Suplício de Sísifo. Isto é também válido para a Guiné, como para Portugal e o resto do mundo...
Morreram dois homens: estamos todos mais pobres... Com eles morrreram também as suas memórias privilegiadas, de um tempo e de um lugar, em que eles passaram de simples figurantes a actores de primeiro plano no palco da vida e na história da Guiné...
Abusando da nossa linguagem de caserna, aqui vai um Alfa Bravo (abraço), do tamanho da distância de Lisboa a Bissau, para ti e os demais amigos da AD. Luís
Luís,
Não são necessárias mais palavras,
julgo teres dito o que a maioria da Tabanca Grande sente e subscreve.
Ao Homem Grande Pepito, é necessário dar o apoio que merece, como a todo o Povo da Guiné.
Como sempre do tamanho do Cumbijã, o velho abraço,
Mário Fitas
Luís
Tal como o Mário Fitas diz, julgo que está tudo expresso, quanto ao que o pessoal da Tabanca sente, nas sábias palavras que acrescentas à análise e às interrogações do Pepito.
Um grande abraço
Jorge Picado.
Sem dúvida...Está tudo dito. O Luís falou por todos nós. Nesta hora de dor, temos de dar o nosso fraterno abraço ao Pepito e na pessoa dele, a todos os homens e mulheres grandes da Guiné, para que guiem os seus politicos e militares na senda do desenvolvimento sustentado.Que as nuvens negras que pairam sobre Bissau se dissipem rapidamente e um claro e radioso sol ilumine toda a nossa Guiné
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