1. Todos sabemos que o regresso do nosso camarada Batista originou notícias sensacionais na imprensa. Depois de considerado morto e sepultado na sua terra natal, o regresso do morto-vivo, não passou despercebido.
O nosso Blogue tem uma série dedicada a este assunto. O Batista é nosso tertuliano e membro da Tabanca de Matosinhos, onde é visto frequentemente. É acarinhado por todos os seus camaradas, alguns dos quais se têm empenhado para que ele consiga obter os direitos inerentes à sua condição de ex-combatente e ex-prisioneiro de guerra.
Mário Migueis da Silva (*), que de perto assistiu à tragédia do Quirafo, escreveu uma história baseada neste acontecimento. Foi publicada no JN do dia 28 de Setembro de 1985, de que damos hoje a devida projecção, com a devida autorização daquele Jornal.
Por que o recorte não é muito legível, optamos por reescrever todo o texto, apresentando somente a parte superior para efeitos de identificação do jornal.
CV
2. JN 28/9/85
O Morto-vivo
Por Mário Migueis Ferreira da Silva (*)
(Esposende)
Oito da manhã. De uma calma e radiosa segunda-feira, convidando a um bem disposto espreguiçar.
Ora escorrendo, sonolento, ora escorregando, brincalhão, em pequenas e ridentes cataratas, o rio Corubal espelhava o já abrasador sol daquele dia.
Ainda com a última bucha do pequeno-almoço na boca, os piras do segundo pelotão chegavam e iam ocupando as duas viaturas, que, roncando, aguardavam o sinal de partida.
Através de umas seteiras do seu abrigo, o olhar inquieto do furriel Simões esperava alguém. E, quando o soldado Batista se aproximou, baixou-se instintivamente, procurando esconder a sua envergonhada condição de observador furtivo.
Dobrado sob o peso do grande rádio de transmissões que lhe cobria todo o magro dorso, o Batista subiu, com certo esforço para uma das viaturas. Mentalmente, recordava a cena da noite anterior no posto de rádio:
- ... Um minuto ou mais é a mesma coisa! A rendição do posto tem que ser feita à hora exacta e não é admitido quaisquer desculpas. Amanhã, vais tu com o grupo do Quirafo.
O furriel Simões parecia adivinhar-lhe os pensamentos. Na verdade, tinha sido estúpido ao castigá-lo tão duramente. Era necessário disciplinar os homens, é certo... mas o Batista até nem era mau rapaz. Era educado, respeitador... Bastaria tê-lo admoestado, talvez... Mas, enfim, agora nada havia a fazer.
Às cavalitas da velha “GMC” da frente, o alferes lançou um rápido olhar à retaguarda e deu ordem para avançar. O condutor não se fez rogado: pisando o acelerador com alegria, logo deixou para trás o arame farpado do aquartelamento, seguido de perto pelo burrinho, que, gingando e pulando a cada cova, não queria ficar para trás.
Do lado de cá das espessas núvens de pó, o Simões magicava. Aquele aspecto guerreiro dos homens, armados da cabeça aos pés, deixava-o, desta vez, preocupado. Arrependido da decisão que tomara em relação ao Batista, começou, de repente, a recear que o destino lhe reservasse alguma partida. Aquela picada que andavam a desmatar, lá prós lados de Boé, poderia, em sua opinião, ser um bico-de-obra dos graúdos.
- E se, por azar, acontecesse alguma coisa? E se caíssem numa emboscada? E o Batista?!... E se o Batista ficasse gravemente ferido ou até morto?...
A ideia de tal peso na consciência passou a assustá-lo e não pôde deixar de continuar a preocupar-se.
- Só estarei sossegado quando todos regressarem sãos e salvos.
Tentando dominar todo aquele pessimismo de circunstância, puxou de mais um cigarro. Mas foram nervosas aquelas chupaças profundas com que, cabisbaixo, se dirigiu para a messe.
Escrevia para a família, quando ouviu o primeiro rebentamento. Estremecendo, distinguiu perfeitamente, na direcção do Quirafo, o matraquear contínuo das armas automáticas e os rebentamentos que se sucederam, galopantes.
Quando deixou de os ouvir, correu para fora. Apurou o ouvido, mas nada mais escutou.
- Tudo tão rápido! Um minuto ou dois, no máximo... Que se teria passado?!... Emboscada?... Haverá baixas? Mortos?!...
A imagem sombria e triste do Batista passou-lhe diante dos olhos. Aturdido, sacudiu a cabeça, como quem quer acordar de um sonho mau.
Já os grupos de intervenção partiam em direcção a Madina, quando o Simões correu para o posto de transmissões. Depois daquele tremendo choque eléctrico, que lhe percorrera o corpo todo, atormentavam-no agora a incerteza, o medo... Não queria acreditar no que lhe estava a acontecer.
Entraram em contacto com o destacamento de Madina, mas as primeiras notícias concretas trouxe-as, porém, um nativo, vinte minutos mais tarde. Viera correndo, a corta-mato, para avisar a tropa do Saltinho.
- Morreram muitos! Prá'i vinte! Morreu tudo queimado!...
Simões sentiu-se desfalecer. Gemeu um "Meu Deus" e quis agarrar-se a alguém para não cair. As pernas, porém, dobraram-se-lhe pelos joelhos e tombou pesadamente no chão.
Visivelmente traumatizado no espírito, mas ileso no corpo, chegaria, pouco depois, o condutor da primeira viatura, que o acaso poupara a tão trágico fim. Nervosíssimo, deambulando de um lado para o outro, parecia não sentir-se ainda em segurança. Respondia, no entanto, a cada pergunta, a cada súplica.
- Os que iam comigo morreram todos. Além de mim, o único que saiu vivo da picada foi o Batista. Vi-o correr, todo ensanguentado, pelo mato...
Quando o Simões recobrou a consciência e soube que o Batista, afinal, não estava morto, ganhou novo alento. Mas não almoçou. Nem jantou.
- Onde estará o rapaz?! Por que não apareceu ainda? Serão os ferimentos tão graves que o impeçam de chegar ao Saltinho ou, pelo menos, a Madina, que fica a dois passos apenas do local da emboscada?!...
Às duas da manhã, só, num canto da messe, continuava a esperar que o Batista aparecesse ou desse sinal de vida. Lá fora, aparentemente indiferentes a toda aquela tragédia, os cangalheiros trabalhavam. O Simões, esse, desesperava. Cada martelada parecia querer rebentar-lhe os tímpanos e o sistema nervoso.
Mas controlou-se. E ele, que nunca fora muito de ir à missa, começou antão a rezar todas as orações que aprendera em criança. E entre cada oração, a súplica constante:
- Ó Minha Nossa Senhora, fazei com que ele apareça! Não permitais que eu viva com tamanho remorso o resto da minha vida!...
E prometeu ir a Fátima, a pé.
Alvoreceu. Com o apoio de helicópteros, começaram as buscas, palmo a palmo, tentando localizar o homem. O Simões que nelas participava activamente, não se cansava nem se esquecia de orar em silêncio, renovando vezes sem conta a sua promessa de ir a Fátima. Mas o pobre do Batista não havia de aparecer. Nunca mais!... Nem vivo, nem morto...
Vinte meses após tão fatídico dia, o Simões descia a escada do avião que o trazia definitivamente para a metrópole. O seu semblante, carregado e tristonho, recordava agora, com mais intensidade ainda o desventurado Batista que, por sua culpa, morrera tão brutalmente.
À sua volta, a companhia inteira cantava, gritava, dançava...
- Podia estar aqui agora, rindo e cantando como os outros!... Talvez com os pais, velhinhos, a esperá-lo lá no fundo!...
Ao imaginar a ternura daquele abraço impossível, duas grossas lágrimas lhe rolaram pela face. E sentiu, de novo, aquele tremendo nó seco na garganta, que lhe comprimia a alma.
Já depois da independência, quando, um dia, lhe perguntaram, lá no escritório onde trabalhava, se já tinha lido a história do "gajo que tinha sido dado como morto na Guiné e que acabava de regressar", arrepiou-se todo.
Inquieto, cheio de pressentimentos, não esperou pelo intervalo do almoço. Desculpou-se e correu a comprar o jornal.
- "MORTO-VIVO DEPÔS FLORES NA SUA CAMPA"
Ainda na primeira página, a fotografia de um moço de bigodito. Curvado sobre uma campa. E na campa, uma lápide onde podia ler-se distintamente:
"À MEMÓRIA DE ALFREDO COSTA BATISTA.
FALECEU EM COMBATE NA PROVÍNCIA DA GUINÉ EM 17/4/72"
Dias depois, o Simões enfiou o seu velho camuflado da tropa e, terço na mão, soriso nos lábios, começou a caminhar em direcção a Fátima.
LEÃO DA MATA
FIM
3. Ainda sobre o caso Batista, o nosso camarada Mário Migueis enviou-nos uns recortes do já extinto jornal "O Comércio do Porto".
__________
Notas de CV:
(*) Vd. postes de:
16 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4194: Tabanca Grande (134): Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf (Guiné 1970/72)
17 de Abril de 2009
Guiné 63/74 - P4200: Ainda e sempre a tragédia do Quirafo. Sortes distintas para António Batista e António Ferreira (Mário Migueis / Paulo Santiago)
e
Guiné 63/74 - P4202: Dia 17 de Abril de 1972. A emboscada do Quirafo, 37 anos depois (Mário Migueis)
Vd. último poste da série de 17 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4204: Recortes de Imprensa (15): Identificados mais 12 campas de militares lusos mortos na Guiné, DN de 3/4/2009 (Fernando Barata)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Se não fosse a tragédia que está subjacente a este episódio, diria sem qualquer reticência que se trata de uma bela história, bem contada, onde se "sente" a angústia do narrador.
Apesar disso, desse facto confrangedor, mas tendo em conta que o centro da narrativa é o Batista, não posso deixar de sublinhar a forma interessante como está apresentada, cheia de diálogos, directos ou mentais.
Gostei!
Hélder Sousa
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