terça-feira, 9 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4484: Fauna & flora (20): Histórias de grandes serpentes: da jibóia de 7 metros (Paulo Raposo) ao irã-cego (Clara Amante)


Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1968 > O Alf Mil Raposo, de óculos escuros, com o Furriel Ribas, à sua esquerda, e alguns soldados, observando uma jibóia morta pelas NT... "De sete metros!"...

Foto: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados




1. Havia jibóias na Guiné, no nosso tempo ? Assunto controverso, avaliar pelos comentários que já suscitou o poste do Miguel Pessoa (*). Pelo menos, não voavam, isso garante o nosso piloto, mas que se atravessavam no caminho dos bissalanquenses da BA 12, isso garante-nos a também strelada sargento pára-quedista Giselda Antunes Pessoa... 

O Paulo Raposo, por sua vez, conta-nos que matou uma, medonha, com sete metros de comprimento... O Mário Fitas também viu serpentes gigantes lá para os lados de Cufar... A Clara Amante, que viveu na Guiné, em criança, fala-nos com magia do irã-cego... E muitos de nós têm histórias de cobras, pequenas e grandes, venenosas e não venenosas, para contar...Com tudo isto, vamos aumentando o bestiário da Guiné... (LG)



Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66), Os Lassas > "Foto que me foi concedida pelo Manuel Brita, condutor das Fox, e que esteve em Cufar no tempo do António Graça de Abreu" [1973/74].
Foto (e legenda): © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.


1. Mansoa: Baptismo de fogo

por Paulo Raposo

Excerto de um livro, policopiado, do nosso camarada de Montemor-O-Novo, Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852, Galomaro e Dulombi (1968/70).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997 (**)

O sacrifício era muito. Vou contar uns episódios dos muitos que por lá passàmos:
Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66), Os Lassas > "Da esquerda para a direita: Soldado que não recordo o nome, de camuflado o Fur Mil Enf Juvenal, o Fernando que nos acompanhou desde Bissau, Mário Fitas, Fur Mil Op Esp, e Olindo, apontador de bazuca da minha secção".
Foto (e legenda): © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.
O sacrifício era muito. Vou contar uns episódios dos muitos que por lá passamos:


(i) Após a nossa chegada a Mansoa, foi-nos distribuído o material de guerra. Já armados, fomos para uma bolanha, nome que se dava a um grande charco de água, que enchia com a chuva.

Esta bolanha ficava para além de uma companhia de balantas, que fazia a protecção do nosso quartel. Naquela zona de Mansoa, sair fora do arame farpado tinha riscos.Este exercício tinha como objectivo habituarmo-nos a estar debaixo de fogo. Deita-se um grupo de combate, e por cima deste, faz-se fogo. Aconteceu que logo no primeiro exercício, quando estava o primeiro grupo de combate deitado, há um disparo que sai mais baixo e vai ferir em ambas as pernas um soldado. Depressa foi chamada uma viatura, para o levar rapidamente para o Hospital. Para aquele rapaz, a comissão terminou ali.

Este acidente foi muito desmoralizante para os restantes e mais nenhum outro exercício foi feito. Perguntei-me nessa altura como iria sair dali.

(ii) Um belo dia o meu grupo de combate estava encarregue de levar e proteger os homens que iam limpar do capim uma faixa grande de ambos os lados da estrada. Assim evitávamos que tivessemos emboscadas coladas à picada.Dirigimo-nos para o local de trabalho em duas viaturas. Parámos precisamente no sítio aonde tínhamos terminado o trabalho no dia anterior, ou seja ainda na zona já descapinada.

Quando parámos, saltaram do capim alguns elementos IN para a estrada. Fizemos fogo, eles fugiram e não responderam. Se tivéssemos parado 50 metros mais à frente, tínhamos caído na emboscada.

Recuperados da emoção, os homens começaram o seu trabalho e eu dirijo-me para um tronco de árvore, que estava caído, para me sentar. Ao aproximar-me do tronco, este mexe-se. Era uma jibóia, com sete metros de comprido. Enfiei-lhe um carregador em cima e ela continuava bem viva.

O Cabo enfermeiro Luís agarra num tronco de um ramo verde, e, pondo-se à frente dela, bate-lhe continuamente na cabeça, até a cobra se ver perdida.Uma vez perdida, morde-se a ela própria, para não se humilhar à mão do enfermeiro Luís. (...)


2. O irã-cego
por Clara Amante


Amante da Rosa > "Meu Cabo Verde. História e Estórias. Minhas raízes, família e recordações. A Guiné. Pensamentos e Imagens. Sem ordem cronológica". Um blogue no feminino. Carla. Cabo Verde. Ilha de Santiago. Praia... A Carla é filha do nosso amigo e camarada Manuel Amante, membro da nossa Tabanca Grande.... Já aqui transcrevemos um poste, desse blogue, em que se falava de nós, do nosso blogue (***) . Infelizmente, o blogue Amante da Rosa deixou de estar activo, embora continue em linha... Tomo a liberdade de recuperar uma belíssima história ali publicada, com recordações de infância da Guiné (****).

Acordou alagada da sesta… maldita humidade. Abriu os olhos ainda tempo de ver o Irã que deslizava, entre uma trave e outra, no tecto do quarto, para desaparecer no escuro da telha enegrecida. Em que buraco se metia? Lembrou-se…

“- Matem a cobra!
- Não. Senhora…
- Mata a cobra… Anselmo?! Há uma cobra no tecto da casa!
- Senhora é o guardião… não.
- Guardião…?
- Sim, Senhora, guarda a casa.
- Anselmo… É uma cobra branca.
- Não… É Irã Cego… é poderoso e vai protegê-la a si e aos meninos.”


A humidade… nem sabia se estava acordada. Nunca a tinha visto assim… Gorda e branca. Ela… O Guardião. O Irã Cego. A cobra albina que vivia no telhado da casa. Foi regressando devagar daquela letargia do sono. Como foi que vim parar neste fim de mundo? O mato, os bichos, o raio das cobras e o bucho cheio ano sim ano… Não, nada de lástimas! Calor… parece que o diabo se entretêm a chupar ar. Ai Guiné! Ai Mindelo... Irã Cego… as minhas crianças aqui em baixo deste tecto. Ninguém num raio de quilómetros e ele que se mete no mato dias a fio. Deve estar nalguma tabanka. Um banho... preciso de um banho. Mãe… e tu que nunca mais chegas. O Nhelas, lá para o Sul sem conseguir fugir - do contrato da roça.

Nando, embarcado sabe-se lá onde. Os meus irmãos espalhados em tudo o que é fim de mundo. A onça… é preciso ver se os meninos estão cá dentro… a onça que quase leva o Canelito. Bendito cachorro... e ele ainda a gritar pelo pobre do bicho... sozinho em frente da casa. Isto é o fim do mundo. Irã… que me vale Deus aqui. Irã Cego! O guardião da casa que engole os ovos das galinhas é quem nos protege. E a minha terra lá tão longe. O vento… que falta faz o vento, Mãe. Banho… aquele banho semanal que nos davas com a água que trazias de casa d’inglês. Anselmo… é preciso ir ao poço... A onça que deve andar à caça… E ele que não chega metido nesse mato sem ninguém. Como foi… ah… Dava tudo para sentir aquele cheiro de colónia inglesa do Nana... Cheiro nauseabundo com que ele chega… Meu Nana… como fui acabar tudo com ele. Lembranças não levam a nada e o que foi foi… deve ser do calor, estás a enlouquecer, Vinda. Valha-me a cobra para nos proteger e…
- Dona Vinda…? - o chamado urgente sacudiu-a.
- Sim, Anselmo...
- É o Irã... Irã Cego fugiu para o mato.
- ...
- Senhora… não é bom.

[Revisão / fixação de texto: L.G.] (*****)________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 7 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4477: FAP (29): Encontros imprevistos (Miguel Pessoa, ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74)

(**) Vd. poste de 8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo

(***) Vd. poste de 27 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1787: Embaixador Manuel Amante (Cabo Verde): Por esse Rio Geba acima...

Vd. também 28 de Maio de 2007> Guiné 63/74 - P1789: Blogues que nos citam (2): Amante da Rosa ou a Geração das Flores da Revolução de Bissau

(****) Vd. poste de 14 de Novembro de 2006 > O despertar de uma sesta, no fim do mundo dos anos 50, visto num quadro de Paulo Rego (Clara Amante)


(*****) Vd. último poste desta série > 16 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4038: Fauna & flora (19): Também os babuínos dizem Nós na pidi paz, ka misti guerra (Joana Silva)

Vd. também poste de 25 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3793: Fauna & flora (16): Relações amistosas com o Macaco-cão na zona de Cufar (Mário Fitas)

Escreve o L.G., em comentário ao poste do Miguel Pessoa:

(....) Há uma diferença (até no comprimento) entre a jibóia (nome científico, Boa constrictor) e a pitão, jibóia africana ou irã cego (na Guiné-Bissau) (nome científico, Python sebae)... Esta última, sim, é a maior cobra da África subsahariana. Quando adulta, pode atingir os 6 metros e ultrapassar os 100 quilos de peso... Habita a floresta-galeria, as matas e só ocasionalmente a savana. A sua dieta é constituída por aves, pequenos roedores e ainda mamíferos de média dimensão. Pode viver trinta anos e não está em risco de desaparecer.

Já a jibóia p.d. (que está no nosso imaginário, pela pomada jibóia e não só...) é centro e sulamericana.Boa constrictor deve o seu nome à forma como mata as suas vítimas, por constrição, sufocando a presa, técnica usada pelas cobras não venenosas.Contrariamente a muitos mitos populares, é pacífica e fugidia, evita sempre o contacto com animais de grande porte, incluindo o homem... Em média anda nos três metros...É sobretudo caçadora nocturna, alimentando-se de roedores e aves...

Por sua vez, o nosso amigo Nelson Herbert, hoje cidadão norte-americana, mas born in Bissau, acrescenta o seguinte:


(...) Tem razão o Luís Graça. O familiar mais próximo da jiboia sul americana, na Guiné é o Irã Cego. De criança,sempre ouvi dizer que o unico Ser que esse tal de Irã Cego de facto temia, imaginem!, eram aItálicos formigas...(qual quê: formiguinhas). Aquelas típicas da Guiné, conhecidas pela sincronização das dolorosas dentadas e a acrobática posição de pino. Melhor, aquelas que mordem a vítima, de pernas pro ar ! Curioso, né ! Mas existe uma explicação lógica ! É que engolida uma ave, um réptil ou atéum cabrito (a lenda fala de bois), o bicharoco necessita de algumas espaçosas horas para a digestão da presa...tanta é a languidez ...

É pois nesses momentos que o bicho, ele mesmo, torna-se presa fácil das formigas. Aliás, não é por acaso que na Guiné, em tudo que seja , terreno por excelência de pastagens, por perto existe sempre um "morro de baga baga"...não vá pois o Irã Cego tecer das suas !

Ainda relativamente a esse bicharoco, baptizado de Irã Cego, por conseguinte, à luz de algumas crenças e crendices, nossas ( guineenses), um animal outrora venerado, senão temido, Amílcar Cabral faz referência, em alguns dos seus escritos, às dificuldades enfrentadas no início da guerrilha, no aliciamento de alguns guerrilheiros para operações, que tivessem por cenário...qualquer mata cerrada, tida por santuario dos Irãs Cegos. Cabral mobiliza esse exemplo, para exemplificar o quanto o obscurantismo poderia em certa medida comprometer o avanço da guerrilha nas matas da Guiné. (...)


8 comentários:

Anónimo disse...

De répteis não percebo nada. Mas

ouvi manga de estórias sobre os

irãs cegos.Nunca vi nenhum, mas

aprendi que os não devia tentar

matar.... mas antes pedir-lhes

protecção...

Jorge Cabral

Luís Graça disse...

Jorge: ... E então, não sai estória de irã-cego ? As tuas bajudas mandingas também tinham o culto do irã-cego ?

Estou a imaginar o teu homónimo Cabral (aliás, teu parente) a lutar contra a pretensa influência nefasta do pensamento mágico sobre o moral e os valores dos guerrilheiros...

Infelizmente, alguns dos seus herdeiros (deles, guerrilheiros) transformaram-se em meros executantes dos esquadrões da morte... Vê, meu amigo, como pode ser terrível abrir a Caixinha de Pandora...

Luís Graça disse...

Irã-cego vai no mato... Não é bom bom augúrio, não é bom sinal... Onde é que a gente ouvia isto ? ...Na Zona Leste, gente que vai no mato, balanta, beafada, mandinga, em pleno chão fula... Fula que foge, aterrorizado, da sua pobre tabanca, reduzido a cinzas, vendo o seu chãoa fugir-lhe, posto a ferro e fogo... Mulher caboverdiana perdida no mato sufocante da Guiné, desejando ardentemente o vento, marítimo, forte e agreste, que varre a sua ilha...

Que mundos, que emoções, que sentimentos, que recordações, que imbróglio de contradições objectivas e subjectivas, conflitos, antagonismos... Seguramente que o pintor não pode pintar este mundo a duas cores, o preto e o branco...

O irã-cego que nem sequer vem no melhor e maior dicionário da Língua Portuguesa, o Houaiss... Que espanto, que maravilha, ao mesmo tempo, é esta orquestra, este caleidoscópio da lusofonia!... E que privilégio é poder ler, em português, estas duas histórias, com o seu quê de mágico, uma do nosso querido Almançor, outra da Amanante da Rosa...

amantedarosa disse...

Queria agradecer as suas palavras amáveis relativas ao texto "Irã Cego" e a referência ao blog. Na verdade, não se tratam de memórias minhas mas sim de episódios vividos, ainda antes de eu ter nascido, pelos meus pais, tios e avós. A cobra existiu e, segundo a minha avó, o facto de ter fugido para o mato, foi considerado pelos locais como mau presságio, algo que a família do meu pai pode confirmar tempos depois, coincidência ou não… Bem haja! Carla

Anónimo disse...

Consegui ler tudo o que está escrito neste poste, mas o que mais admirei foram as palavras do Luís e as benditas formiguinhas.
Desculpem, mas tenho o corpo todo eriçado, pela razão bem simples de ter um PAVOR DOENTIO a répteis.
Infelizmente foi um trauma que me criaram de pequenino, para não acompanhar os meus vizinhos das brincadeiras pelos campos da minha meninice.
Até hoje nunca me curei.
Vi algumas cobras, felizmente pouquissimas, naquelas paragens, mas podem calcular o que isso significava para mim, sem que os meus camaradas o soubessem ou desconfiassem...
Mais uma meia confissão do quanto me custaram aqueles tempos...
Abraço
Jorge Picado

Unknown disse...

Quanto a cobras ou gibóias eu não conheço a classificaçao. Mas numa saída de Fá Mandinga para ir a Bafatá
buscar material necessário e dar uma volta pelo mercado,na volta tivemos de parar na estrada que era rodeada de árvores de grande porte e qual não
foi o nosso espanto quando casualmente olha-mos para uma das árvores e num dos seus ramos mais baixos estar enrolada uma cobra em que cada anel era mais grosso do que o peneu do Unimog que nos transportava. Ainda houve colegas que queriam matá-la a rajada de G3
Mas o furriel não deixou e ela lá ficou. Que tinha mais de 5 metros tinha
Armandino Alves

Zé Teixeira disse...

SE o meu amigo Hamadú de Mampatá/Buba fosse vivo confirmava as palavras do Nelson Herbert.
Numa das nossas noites de conversa ao luar que tanto gostavamos, recordo-me de ele falar do Irã Cego. A tal "gibóia" que depois de apnhar a peça de caça, largava-a e batia a zona (uns metros à volta) e se detectasse formigas abandonava a presa, dado que, como teria de estar uns dias a fazer a deglutição ficando por isso parada, quando se mexesse, as formigas que a cobriam atacavam e passava a ser a sua vítima sem salvação possível. Quem não sofreu um ataque dessas formigas ? EU apanhei três. Dois já foram contados há muito no blogue.
Zé Teixeira

Anónimo disse...

Não se metam com os Irãs.Têm o direito a duvidar.Eu não ia para o mato sem algo e ainda hoje cá está.
( O algo claro)
Sobre cobras tinha n estórias. Só uma:- adoeceu gravemente um soldado em Mansambo. Consulta médica via rádio e teve que á noite ser evacuado para Bambadinca. Dois Unimogs, colchões num para deitar o evacuado e dar conforto aos que lá iam. Depois prego ao fundo e q.s.f. Eu vi um tronco? na estrada, deu um salto a viatura e a outra, logo atrás pareceu-lhe uma cobra. No outro dia, no regresso vimos o bicho já a decompor-se e sobrava para os dois lados da picada. Medida? Não sei, talvez quatro ou cinco metros. Uma que ia entrando para o cano da bazooka; uma que se enroscou junto ao corpo do Jorge do meu G.Comb. no Xime;uma surucucu que eu ao levantar-me lhe ia acertando com a coronha da G3 e um Irã safou-me dando pontaria de catana ao guarda costas etecetera.
Abraços TM