Caro amigo Luís,
Na continuação das estórias que chamei de 'memórias de infância' (**) envio mais dois excertos. O primeiro fala da minha família. Não queria enviá-la mas apercebi-me que faz falta para uma melhor compreensão das partes seguintes sobre as origens da família e alguns factos ligados com a fuga do irmão do meu pai e patriarca da família, o Sambagaia. O segundo fala do meu pai[, Aliu Tambá Baldé, ] e da encenação de um Marabú tradicional.
Obrigado e um forte abraço,
Cherno Baldé
2. Memórias do Chico, menino e moço (6)
DE CANHAMINA A SINCHÃ SAMAGAIA
Uma família a procura de estabilidade
A minha família, descendente de Fulas originários de Macina, no espaço territorial do antigo Sudão Ocidental (actual Mali), e que se consideram a si mesmos de Fulbhê Arábbhê, cujo significado se deve ter perdido na noite dos tempos e que, no entanto, tem uma similitude muito próxima da palavra Árabe, vivia em Kerewane (uma deformação de Kairuan?), localidade situada entre Kumakara (Senegal) e Saré Bacar (Guiné-Bissau), mesmo na linha da fronteira entre os dois países.
Dessa época não sei quase nada que possa transmitir. Mais tarde, a familia mudou-se para Canhámina, capital do regulado de Sancorlã, [a nordeste de Fajonquito, carta de Tendinto, ainda não disponível 'on line' ,] o que aconteceu após a morte do nosso avô paterno, Morô Baldé (Morseide), ocorrida, provavelmente, entre os anos de 1922/23.
Os seus descendentes eram sobrinhos directos da casa reinante de Sancorlã (Soncoia?), através da mãe, nossa avó paterna, Eguê Mariama Baldé, facto que certamente terá pesado na decisão de se mudar para esta localidade.
Em Canhámina, durante muito tempo, a nossa família viveu sob protecção da casa do régulo, tendo beneficiado de algumas regalias daí inerentes, encabeçada pelo mais velho dos irmãos, Naor, que foi pajem de seu tio Braima Djame Baldé, mais conhecido por Burandjame (ou Brandjame?), o régulo de Sancorlã, e era colega e amigo íntimo de Abdu Buram, o príncipe herdeiro do trono, que encontrou a morte na última guerra de Canhabaque entre 1935/36 [, nas Ilhas Bijagós, referência à repressão de uma das últimas revoltas dos habitantes locais] .
O Naor terá morrido logo a seguir após uma doença prolongada (dizem que por desgosto pela morte do seu primo e amigo inseparável) e, com a morte prematura deste, acedeu ao lugar de patriarca da família, o Sambagaia, o irmão mais novo que lhe seguia segundo a linhagem.
Decorridos alguns anos após a morte de Naor, a nossa família saiu de Canhámina. Não consegui obter informações certas sobre as razões que motivaram esta mudança, todavia, algumas vozes especulam que estaria ligada a morte do Régulo Brandjame Baldé, cujo desaparecimento teria provocado uma luta de sucessão bastante perigosa no seio da família reinante.
De qualquer modo, a transferência para a zona de Farimbali, marca o início da liderança de Sambagaia na família e abre uma nova era, marcada por grandes dificuldades materiais de existência, alguma turbulência no seio da família e guerra política.
Para uma família que já estava, de certo modo, habituada a viver não muito longe da sombra do poder e das suas facilidades, a provação foi dura. As dificuldades do duro trabalho agrícola que era a principal actividade da família se juntou a desastrosa gestão do patriarca Sambagaia que utilizava os magros recursos da família (colheita de cereais e gado) para granjear reputação e mobilizar apoios, votando a família à fome e miséria contínuas.
As suas mãos largas e suas frequentes deslocações e viagens para o centro do poder e da administração colonial em Bolama onde servia de agente policial, e também procurava alianças, permitiu-lhe entrar, assim, nos meandros das intrigas e das guerras pelo poder, que eram suportadas pelo esforço da família, obrigando-a a vender tudo que existia, inclusive as vacas de seguro (teguê) das mulheres que normalmente não se vendiam, em obediência às regras de uma tradição secular.
A família estava sem posses, sem segurança para as calamidades naturais, bastante frequentes na época e junte-se a isso mudanças constantes de uma aldeia à outra de forma sucessiva e por períodos muito curtos, provocando a erosão dos poucos recursos disponíveis abalando com isso a coesão social preexistente no seio da familia.
Primeiramente saíram de Canhámina para Saré Saliu, lado norte da bolanha de Berécolom (onde encontraram e conheceram a família de um caçador profissional, originário de Forrea, chamado Samba Candé, vulgo Samforrea, pai da minha futura mãe, Cadi Candé), tendo aí permanecido por pouco tempo.
Nesta aldeia faleceu Paté (Pareru), o quarto dos cinco irmãos, após alguns anos de doença psíquica. Contam as más-línguas que ele ousara desafiar o patriarca Sambagaia ao pretender em herança a mais jovem das mulheres do falecido Naor, a Nhama Aua, filha de Brandjame, pelo que este o teria feito guerra através de forças ocultas para o enlouquecer. Outros afirmam que a jovem viúva teria escolhido do seu livre arbítrio o jovem e bonito Patê, provocando desta forma a desgraça deste.
Esta história ilustra, independentemente do que teria acontecido na realidade, que os vínculos de dependência e/ou obediência aos costumes e a tradição, na reprodução e manutenção das práticas culturais ancestrais, se faziam também por diversos meios, inclusive a difusão de falsas informações a fim de paralizar e/ou neutralizar o(s) adversário(s).
De Saré Saliu passaram para Solambuntô, aldeia situada junto a fronteira com o Senegal, a oeste de Cambajú. Por aqui, viveram uns poucos anos. O que estaria o Sambagaia a procura? Certamente uma base de apoio para as suas ambições politicas. Após Solambuntô, fizeram meia volta regressando para Saré Coba, aldeia vizinha de Sare Saliu. Foi aqui que os filhos de Naor, Baciro e Ioba foram circuncisados. Teriam vivido nesta aldeia perto de 3 anos.
De seguida, regressaram, de novo, para o lado sul da bolanha, e instalaram-se em Farimbali, na altura uma povoação enorme, situada perto de Canhámina (ver recenseamento de 1950), onde a minha mãe Cadi se juntou à família casando com o meu pai, Aliu Tambá (provavelmente entre 1949/50) e onde também nasceram os seus primeiros filhos, Aua (1951/52), Cumba (nome da esposa de Cherno Abdulai Shall, almane da mesquita de Farimbali)(1953/54), Ibraima (1955/56-), Carlos Bubacar (1957/58), hoje farmacêutico formado na Faculdade de Farmácia de Lisboa, e eu, Cherno Abdulai (entre 1959/60).
A partir desta localidade, Sambagaia lançou-se na corrida à conquista do poder da casa reinante de Sancorlã, fazendo frente aos seus primos de Canhámina. Tendo conseguido mobilizar para a sua causa um grande número de aldeias à custa de alianças fortuitas em terreno movediço num contexto social e político bastante atribulado, minado por ambivalências e sobreposição de poderes de naturezas diversas: colonial, tradicional, religioso etc.
Capa do livro de Manuel Dias Belchior, editado no início da década de 1960, A Grandeza Africana – Lendas da Guiné Portuguesa. (***)
Foto: © Torcato Mendonça (2008). Direitos reservados
No momento decisivo, só ficaram ao seu lado as chefias e as aldeias de etnia Mandinga, nomeadamente de Sumbundo e Tendinto [ vd. carta de Tendinto, ainda não disponível 'on line'], um número claramente insuficiente quando foram confrontados, no posto administrativo de Contuboel, perante a situação de escolher o futuro régulo de Sancorla.
Conforme já se referiu mais acima, a vida e situação em Farimbali não eram fáceis de suportar. A pobreza extrema, conflitos permanentes com os vizinhos, o mal-estar resultante da humilhação sofrida com a derrota de Sambagaia na luta pela sucessão do seu tio Brandjame tornava inviável a continuação da família numa aldeia minada por intrigas, encomendadas a partir de Canhámina em conluio com alguns representantes das autoridades administrativas de Contuboel e Bafatá.
Foi devido a esta situação, no mínimo embaraçosa, e a chacota que dela resultaram, segundo explicou a minha mãe, é que justificou a fundação, entre 1959 a 1960 de uma nova aldeia no lado norte da bolanha, a menos de 2 km de Sare Coba, na confluência de Berekolóm (antigo feudo mandinga do Séc. XIX), que recebeu o nome do chefe da família, Sinchã Samagaia, que literalmente quer dizer a aldeia de Samba Gaia. Para agradar aos seus amigos da administração de Bolama, Sambagaia deu-lhe o nome de Luanda (porquê Luanda e não Lisboa?...).
Esta mudança de residência coincidiu com o meu nascimento. Eu nasci em Farimbali mas fui baptizado, sete dias depois, na nova aldeia. Deram-me o nome de Cherno Abdulai em honra ao chefe religioso e almane da mesquita de Farimbali, originário de Futa Toro, do Senegal, que conduziu a cerimónia do baptismo.
Cherno não é propriamente um nome mas um título a que se dá aos homens letrados, que orientam a comunidade durante as orações, sobre aspectos da vida social/religiosa e ensinam o Alcorão às crianças. O seu apelido era Shall, que faz pensar nos acompanhantes do célebre homem de letras e também chefe de guerra, El-hadj Cheik Omar Saidou Tall que marcou profundamente o então Sudão Ocidental da época pré-colonial com a suaDjihad e que teria feito uma passagem discreta pelos actuais territórios da Casamança e da Guiné-Bissau antes de se estabelecer no Futa Djalon.
O meu pai, Aliu Tambá Baldé (ou Tambá Maudô, como lhe chamava a Mãe), era o mais novo dos irmãos que formavam a família. Trabalhador intrépido e fiel à disciplina familiar, esteve muito ligado ao Naor que, praticamente, conduziu a sua educação após a morte do pai. Esta mesma dedicação faria dele o preferido de Sambagaia. Na verdade, ele estava destinado a liderar a família após a fuga de Sambagaia pois, com a morte de Patê, o belo, ficavam ele e o Dembaro. Este último era mais velho que ele, todavia, não oferecia aos olhos de todos o carisma e as capacidades requeridas para isso.
Mas, as diferenças de pontos de vista entre Sambagaia e Tambá eram também conhecidas de todos e não raras vezes vinham à superfície. De referir que este último, descontente com a maneira como Sambagaia geria os destinos da família, tinha feito uma aliança com Dembaro a fim de formarem um fogão à parte (núcleo familiar restrito no seio da família alargada), separando-se de Sambagaia e seus filhos, embora continuassem a viver juntos.
Este facto, todavia, não impediu que este o tivesse indicado para trabalhar no posto de auxiliar de comércio que lhe tinham oferecido (primeiro em Farim e depois em Cambajú), entre os comerciantes lusos que faziam o negócio de compra e venda local de borracha e outros produtos agrícolas, talvez, no intuito de acalmar o seu apetite pelo poder que seus primos da casa real não viam com bons olhos. Aliás, mesmo assim, [Tambá] ver-se-ia obrigado, mais tarde, com o início da guerra contra a ocupação colonial na zona norte (1963/64), a exilar-se no Senegal para fugir da conspiração dos herdeiros directos de Brandjame e seus seguidores.
Tudo levava a pensar que viveríamos para sempre em Sinchã Samagaia, aliás Luanda, onde, finalmente, tínhamos encontrado um pouco de paz e sossego, para se tentar reorganizar e construir as bases de uma família normal para a época. Aqui nasceu a minha irmãzinha Ramatulai e foi aqui onde comecei a descobrir o mundo, a minha família (**).
Desde cedo ganhei o gosto da aventura acompanhando o meu irmão Ibraima na pastorícia dos poucos animais (gado bovino e caprino) que, entretanto, os nossos pais tentavam reunir. As deambulações atrás dos animais, as brincadeiras junto dos poços de água, locais onde davam de beber aos animais (Bidal), constituíam a minha única ocupação. Não tendo ainda idade para a iniciação à vida adulta, aqui tudo estava em aberto, a minha liberdade e curiosidade não tinham limites. Tudo acabou com o rebentar da guerra que pouco a pouco se alastrou a partir de Cola-Carresse (Oio) e atingiu o Sancorlã em cheio.
A desmoralização e o abandono que se seguiram no seio do Regulado, não condiziam com a epopeia da guerra de pacificação com o Graça Falcão ou Teixeira Pinto. Nós acabámos por fugir para Cambajú (**).
(Continua)
Bissau, Novembro de 2006
[Revisão / fixação de texto / bold / cores: L.G.]
2. Comentário de L.G.:
Meu caro amigo e irmão: Obrigado por teres tido a coragem de abrir, para nós, o álbum de memórias de família... É uma verdadeira saga... Ajuda-nos muito a entender o que foi a história do Séc. XX na tua terra, nomeadamente no chão fula. Mas também da nossa história, dos portugueses e dos europeus na época da expansão colonial, e do choque (cultural e não só) que isso representou para os povos africanos...
É, da tua parte, um gesto de grande hospitalidade, na melhor tradição fula, e de da grande apreço e amizade por nós, portugueses e guineenses, aqui reunidos na Tabanca Grande, debaixo do velho poilão... Percebo as tuas hesitações: revisitar o passado é sempre abrir a caixinha de Pandora... Estás, além disso, a expor-te e a expor a tua família, mostrando nesta aldeia global é que a Internet que afinal a tua família, tirando o contexto histórico, geográfico e cultural, é igualíssima a todas as outras nossas famílias, incluindo as nossas, do Minho ao Algarve, com as suas alegrias e tristezas, os seus altos e baixos, os seus amores e os seus ódios, as suas alianças e os seus conflitos, com os seus exemplos, bons e maus, de liderança, mas sempre com a mesma vontade e tenacidade na luta pela dignidade, liberdade e justiça...
É atravésa dessa instância de socialização que é a a família, que aprendemos, em primeiro lugar, a falar, a comunicar, a conhecer o que nos rodeia, a perceber o outro, o diferente, o estrangeiro... Mas é também, para o pior e o para o melhor, o lugar onde o aprendemos e imitamos os exemplos dos nossos maiores. Felizmente tiveste um pai e uma mãe que passaram o melhor das suas famílias, que são a memória, os valores, os princípios, a ética, o conhecimento, o nosso verdadeiro kit de sobrevivência. Vê-se que tens orgulho e ternura por eles... Obrigado, irmãozinho, em meu nome e em nome de todos nós. Um AB (Alfa Bravo), abraço. Luís
PS - Por azar, não tenho agora à mão a carta de Tendinto... Depois mando-ta... Está digitalizada mas ainda não disponível 'on line'...
__________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...
Vd. também poste de 7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4650: (Ex)citações (32): A Tabanca Grande ou... Global: de Contuboel, Fajonquito e Bissau com amizade (Cherno Baldé)
(**) Vd. postes aneriores da série:
19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão
24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo
25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio
30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói
6 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968
(***) Vd. poste de 2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2714: Antropologia (5): A Canção do Cherno Rachide, em tradução de Manuel Belchior (Torcato Mendonça)
O Naor terá morrido logo a seguir após uma doença prolongada (dizem que por desgosto pela morte do seu primo e amigo inseparável) e, com a morte prematura deste, acedeu ao lugar de patriarca da família, o Sambagaia, o irmão mais novo que lhe seguia segundo a linhagem.
Decorridos alguns anos após a morte de Naor, a nossa família saiu de Canhámina. Não consegui obter informações certas sobre as razões que motivaram esta mudança, todavia, algumas vozes especulam que estaria ligada a morte do Régulo Brandjame Baldé, cujo desaparecimento teria provocado uma luta de sucessão bastante perigosa no seio da família reinante.
De qualquer modo, a transferência para a zona de Farimbali, marca o início da liderança de Sambagaia na família e abre uma nova era, marcada por grandes dificuldades materiais de existência, alguma turbulência no seio da família e guerra política.
Para uma família que já estava, de certo modo, habituada a viver não muito longe da sombra do poder e das suas facilidades, a provação foi dura. As dificuldades do duro trabalho agrícola que era a principal actividade da família se juntou a desastrosa gestão do patriarca Sambagaia que utilizava os magros recursos da família (colheita de cereais e gado) para granjear reputação e mobilizar apoios, votando a família à fome e miséria contínuas.
As suas mãos largas e suas frequentes deslocações e viagens para o centro do poder e da administração colonial em Bolama onde servia de agente policial, e também procurava alianças, permitiu-lhe entrar, assim, nos meandros das intrigas e das guerras pelo poder, que eram suportadas pelo esforço da família, obrigando-a a vender tudo que existia, inclusive as vacas de seguro (teguê) das mulheres que normalmente não se vendiam, em obediência às regras de uma tradição secular.
A família estava sem posses, sem segurança para as calamidades naturais, bastante frequentes na época e junte-se a isso mudanças constantes de uma aldeia à outra de forma sucessiva e por períodos muito curtos, provocando a erosão dos poucos recursos disponíveis abalando com isso a coesão social preexistente no seio da familia.
Primeiramente saíram de Canhámina para Saré Saliu, lado norte da bolanha de Berécolom (onde encontraram e conheceram a família de um caçador profissional, originário de Forrea, chamado Samba Candé, vulgo Samforrea, pai da minha futura mãe, Cadi Candé), tendo aí permanecido por pouco tempo.
Nesta aldeia faleceu Paté (Pareru), o quarto dos cinco irmãos, após alguns anos de doença psíquica. Contam as más-línguas que ele ousara desafiar o patriarca Sambagaia ao pretender em herança a mais jovem das mulheres do falecido Naor, a Nhama Aua, filha de Brandjame, pelo que este o teria feito guerra através de forças ocultas para o enlouquecer. Outros afirmam que a jovem viúva teria escolhido do seu livre arbítrio o jovem e bonito Patê, provocando desta forma a desgraça deste.
Esta história ilustra, independentemente do que teria acontecido na realidade, que os vínculos de dependência e/ou obediência aos costumes e a tradição, na reprodução e manutenção das práticas culturais ancestrais, se faziam também por diversos meios, inclusive a difusão de falsas informações a fim de paralizar e/ou neutralizar o(s) adversário(s).
De Saré Saliu passaram para Solambuntô, aldeia situada junto a fronteira com o Senegal, a oeste de Cambajú. Por aqui, viveram uns poucos anos. O que estaria o Sambagaia a procura? Certamente uma base de apoio para as suas ambições politicas. Após Solambuntô, fizeram meia volta regressando para Saré Coba, aldeia vizinha de Sare Saliu. Foi aqui que os filhos de Naor, Baciro e Ioba foram circuncisados. Teriam vivido nesta aldeia perto de 3 anos.
De seguida, regressaram, de novo, para o lado sul da bolanha, e instalaram-se em Farimbali, na altura uma povoação enorme, situada perto de Canhámina (ver recenseamento de 1950), onde a minha mãe Cadi se juntou à família casando com o meu pai, Aliu Tambá (provavelmente entre 1949/50) e onde também nasceram os seus primeiros filhos, Aua (1951/52), Cumba (nome da esposa de Cherno Abdulai Shall, almane da mesquita de Farimbali)(1953/54), Ibraima (1955/56-), Carlos Bubacar (1957/58), hoje farmacêutico formado na Faculdade de Farmácia de Lisboa, e eu, Cherno Abdulai (entre 1959/60).
A partir desta localidade, Sambagaia lançou-se na corrida à conquista do poder da casa reinante de Sancorlã, fazendo frente aos seus primos de Canhámina. Tendo conseguido mobilizar para a sua causa um grande número de aldeias à custa de alianças fortuitas em terreno movediço num contexto social e político bastante atribulado, minado por ambivalências e sobreposição de poderes de naturezas diversas: colonial, tradicional, religioso etc.
Capa do livro de Manuel Dias Belchior, editado no início da década de 1960, A Grandeza Africana – Lendas da Guiné Portuguesa. (***)
Foto: © Torcato Mendonça (2008). Direitos reservados
No momento decisivo, só ficaram ao seu lado as chefias e as aldeias de etnia Mandinga, nomeadamente de Sumbundo e Tendinto [ vd. carta de Tendinto, ainda não disponível 'on line'], um número claramente insuficiente quando foram confrontados, no posto administrativo de Contuboel, perante a situação de escolher o futuro régulo de Sancorla.
Conforme já se referiu mais acima, a vida e situação em Farimbali não eram fáceis de suportar. A pobreza extrema, conflitos permanentes com os vizinhos, o mal-estar resultante da humilhação sofrida com a derrota de Sambagaia na luta pela sucessão do seu tio Brandjame tornava inviável a continuação da família numa aldeia minada por intrigas, encomendadas a partir de Canhámina em conluio com alguns representantes das autoridades administrativas de Contuboel e Bafatá.
Foi devido a esta situação, no mínimo embaraçosa, e a chacota que dela resultaram, segundo explicou a minha mãe, é que justificou a fundação, entre 1959 a 1960 de uma nova aldeia no lado norte da bolanha, a menos de 2 km de Sare Coba, na confluência de Berekolóm (antigo feudo mandinga do Séc. XIX), que recebeu o nome do chefe da família, Sinchã Samagaia, que literalmente quer dizer a aldeia de Samba Gaia. Para agradar aos seus amigos da administração de Bolama, Sambagaia deu-lhe o nome de Luanda (porquê Luanda e não Lisboa?...).
Esta mudança de residência coincidiu com o meu nascimento. Eu nasci em Farimbali mas fui baptizado, sete dias depois, na nova aldeia. Deram-me o nome de Cherno Abdulai em honra ao chefe religioso e almane da mesquita de Farimbali, originário de Futa Toro, do Senegal, que conduziu a cerimónia do baptismo.
Cherno não é propriamente um nome mas um título a que se dá aos homens letrados, que orientam a comunidade durante as orações, sobre aspectos da vida social/religiosa e ensinam o Alcorão às crianças. O seu apelido era Shall, que faz pensar nos acompanhantes do célebre homem de letras e também chefe de guerra, El-hadj Cheik Omar Saidou Tall que marcou profundamente o então Sudão Ocidental da época pré-colonial com a suaDjihad e que teria feito uma passagem discreta pelos actuais territórios da Casamança e da Guiné-Bissau antes de se estabelecer no Futa Djalon.
O meu pai, Aliu Tambá Baldé (ou Tambá Maudô, como lhe chamava a Mãe), era o mais novo dos irmãos que formavam a família. Trabalhador intrépido e fiel à disciplina familiar, esteve muito ligado ao Naor que, praticamente, conduziu a sua educação após a morte do pai. Esta mesma dedicação faria dele o preferido de Sambagaia. Na verdade, ele estava destinado a liderar a família após a fuga de Sambagaia pois, com a morte de Patê, o belo, ficavam ele e o Dembaro. Este último era mais velho que ele, todavia, não oferecia aos olhos de todos o carisma e as capacidades requeridas para isso.
Mas, as diferenças de pontos de vista entre Sambagaia e Tambá eram também conhecidas de todos e não raras vezes vinham à superfície. De referir que este último, descontente com a maneira como Sambagaia geria os destinos da família, tinha feito uma aliança com Dembaro a fim de formarem um fogão à parte (núcleo familiar restrito no seio da família alargada), separando-se de Sambagaia e seus filhos, embora continuassem a viver juntos.
Este facto, todavia, não impediu que este o tivesse indicado para trabalhar no posto de auxiliar de comércio que lhe tinham oferecido (primeiro em Farim e depois em Cambajú), entre os comerciantes lusos que faziam o negócio de compra e venda local de borracha e outros produtos agrícolas, talvez, no intuito de acalmar o seu apetite pelo poder que seus primos da casa real não viam com bons olhos. Aliás, mesmo assim, [Tambá] ver-se-ia obrigado, mais tarde, com o início da guerra contra a ocupação colonial na zona norte (1963/64), a exilar-se no Senegal para fugir da conspiração dos herdeiros directos de Brandjame e seus seguidores.
Tudo levava a pensar que viveríamos para sempre em Sinchã Samagaia, aliás Luanda, onde, finalmente, tínhamos encontrado um pouco de paz e sossego, para se tentar reorganizar e construir as bases de uma família normal para a época. Aqui nasceu a minha irmãzinha Ramatulai e foi aqui onde comecei a descobrir o mundo, a minha família (**).
Desde cedo ganhei o gosto da aventura acompanhando o meu irmão Ibraima na pastorícia dos poucos animais (gado bovino e caprino) que, entretanto, os nossos pais tentavam reunir. As deambulações atrás dos animais, as brincadeiras junto dos poços de água, locais onde davam de beber aos animais (Bidal), constituíam a minha única ocupação. Não tendo ainda idade para a iniciação à vida adulta, aqui tudo estava em aberto, a minha liberdade e curiosidade não tinham limites. Tudo acabou com o rebentar da guerra que pouco a pouco se alastrou a partir de Cola-Carresse (Oio) e atingiu o Sancorlã em cheio.
A desmoralização e o abandono que se seguiram no seio do Regulado, não condiziam com a epopeia da guerra de pacificação com o Graça Falcão ou Teixeira Pinto. Nós acabámos por fugir para Cambajú (**).
(Continua)
Bissau, Novembro de 2006
[Revisão / fixação de texto / bold / cores: L.G.]
2. Comentário de L.G.:
Meu caro amigo e irmão: Obrigado por teres tido a coragem de abrir, para nós, o álbum de memórias de família... É uma verdadeira saga... Ajuda-nos muito a entender o que foi a história do Séc. XX na tua terra, nomeadamente no chão fula. Mas também da nossa história, dos portugueses e dos europeus na época da expansão colonial, e do choque (cultural e não só) que isso representou para os povos africanos...
É, da tua parte, um gesto de grande hospitalidade, na melhor tradição fula, e de da grande apreço e amizade por nós, portugueses e guineenses, aqui reunidos na Tabanca Grande, debaixo do velho poilão... Percebo as tuas hesitações: revisitar o passado é sempre abrir a caixinha de Pandora... Estás, além disso, a expor-te e a expor a tua família, mostrando nesta aldeia global é que a Internet que afinal a tua família, tirando o contexto histórico, geográfico e cultural, é igualíssima a todas as outras nossas famílias, incluindo as nossas, do Minho ao Algarve, com as suas alegrias e tristezas, os seus altos e baixos, os seus amores e os seus ódios, as suas alianças e os seus conflitos, com os seus exemplos, bons e maus, de liderança, mas sempre com a mesma vontade e tenacidade na luta pela dignidade, liberdade e justiça...
É atravésa dessa instância de socialização que é a a família, que aprendemos, em primeiro lugar, a falar, a comunicar, a conhecer o que nos rodeia, a perceber o outro, o diferente, o estrangeiro... Mas é também, para o pior e o para o melhor, o lugar onde o aprendemos e imitamos os exemplos dos nossos maiores. Felizmente tiveste um pai e uma mãe que passaram o melhor das suas famílias, que são a memória, os valores, os princípios, a ética, o conhecimento, o nosso verdadeiro kit de sobrevivência. Vê-se que tens orgulho e ternura por eles... Obrigado, irmãozinho, em meu nome e em nome de todos nós. Um AB (Alfa Bravo), abraço. Luís
PS - Por azar, não tenho agora à mão a carta de Tendinto... Depois mando-ta... Está digitalizada mas ainda não disponível 'on line'...
__________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...
Vd. também poste de 7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4650: (Ex)citações (32): A Tabanca Grande ou... Global: de Contuboel, Fajonquito e Bissau com amizade (Cherno Baldé)
(**) Vd. postes aneriores da série:
19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão
24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo
25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio
30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói
6 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968
(***) Vd. poste de 2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2714: Antropologia (5): A Canção do Cherno Rachide, em tradução de Manuel Belchior (Torcato Mendonça)
1 comentário:
CARO CHERNE,
É CURIOSO COMO TE DISSE HÁ TEMPOS QUE FOSTE FADADO PARA VOOS MAIS ALTOS...
ATÉ A PRÓPRIA FORMA COMO TE BAPTIZARAM,MAIS TÍTULO QUE SIMPLES NOME,E QUE INDICA HOMEM LETRADO,EVIDENCIA QUE NÃO SOU O UNICO A PENSAR ASSIM.
A TUA VIDA DE VERDADEIRO "CAIXEIRO VIAJANTE" DEVE TER SIDO O "LEIT MOTIV" PARA PROCURARES A ARVORE GENEALÓGICA DA FAMÍLIA QUE HAVERIA DE TE LEVAR AO PONTO DE PARTIDA NESSA TERRA DO OURO(MALI)E DEPOIS COM UMA PASSAGEM PELO SENEGAL.
FOI ENTÃO NO MALI QUE TUDO COMEÇOU PARA A TUA IMPORTANTE FAMÍLIA .
ESSE SAMBAGAIA TEU FAMILIAR ERA UM POLÍTICO E PERAS...
UM ABRAÇO.
MANUEL MAIA
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