1. Mensagem de Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70, com data de 8 de Julho de 2009:
Caro Carlos:
Estive uns dias em Oviedo, cidade asturiana, daquelas em que apetece viver,
aliás como deviam ser todas as nossas. Foi esse o motivo do pequeno atraso
semanal no envio da IX estória para a série A Guerra Vista de Bafatá, que segue
em anexo.
Fernando Gouveia
A GUERRA VISTA DE BAFATÁ
8 - Férias na metrópole. Não há duas sem três…
Foto 1 > 1968 > Chegada a Bafatá num Dakota, depois das primeiras férias. Vista parcial da tabanca da Ponte Nova.
Todos têm as suas manias. Eu tenho as minhas. Uma é a de considerar as férias sagradas. Entendo que quem trabalha tem esse sacro direito.
Quando fui mobilizado para a Guiné sabia, à partida, que iria ter direito a um mês de férias em cada ano civil (mais cinco dias, suponho, se viesse à metrópole) mas só podendo vir à metrópole duas vezes, por ser miliciano. Os oficiais do quadro podiam vir três vezes.
Fui para a Guiné em JUN68 e vim em JUN70. Três anos civis com direito a duas férias cá. As regras eram essas pelo que orientei a minha vida nesse sentido.
Gozaria as primeiras em NOV68 e as segundas e últimas em MAR/ABR69. Casaria nestas últimas e a minha mulher mais tarde iria passar umas temporadas à Guiné, em Bafatá, onde tinha possibilidade de alugar uma casa.
Nessas primeiras férias tudo foi pacífico. Passados mais uns quatro meses viria novamente de férias, MAR/ABR69, mas as coisas complicaram-se.
No Agrupamento em Bafatá tinha conhecido um soldado nativo, Seidi, que estava à espera de ser julgado, pensava eu, por algo que teria feito contrário ao RDM. Quarenta anos depois cheguei à conclusão, pela leitura dos livros do Beja Santos, que esse tal Seidi devia ser o mesmo que algures, na zona de Bambadinca, tinha espancado a mulher.
Se tivesse sabido que o Seidi tinha praticado tal javardice talvez eu não tivesse embarcado no que se passou a seguir.
O Seidi foi para Bissau onde iria ficar preso, tendo-me pedido para o visitar na prisão. Passados uns dias sigo também para Bissau a caminho das minhas segundas férias.
Como prometido, procuro a prisão no Quartel General, em Santa Luzia. Já perto, de trás das grades, o Seidi chama-me. Estivemos à conversa e em determinada altura diz-me: Meu Alferes faça-me um favor: sabe que sou muçulmano e que não bebo vinho. Peça ao nosso Major (chefe dos serviços prisionais) que, em vez do vinho, me dêem o correspondente patacão, assim já dá para melhorar o resto do cume.
Fui falar com o tal Major e expus-lhe a situação.
O céu parece ter desabado ali. O homem espumava por todos os lados e aos gritos perguntou:
- O que está a fazer aqui?
- Vim de Bafatá e vou de férias à metrópole.
Aos gritos continuou:
- IA, IA, IA. O nosso Alferes não conhece o RDM? Não sabe que não se podem visitar presos sem a minha autorização?
Vendo a minha vida a andar para trás (e não só a minha), adiantei-lhe que nas férias iria casar, que tinha tudo marcado.
Por isso e talvez por ter conseguido ler os meus pensamentos assassinos, fui de férias.
No princípio do ano de 1970, num fim de tarde estando à conversa com um Major, que por ser do quadro tinha acabado de gozar as suas terceiras férias na metrópole, aquele major sugeriu-me que deitasse o barro à parede, pedindo as minhas terceiras férias.
Depois de pensarmos qual a justificação a apor no requerimento, só se descobriu uma: Conforme casos anteriormente autorizados.
O requerimento foi para Bissau. Ao fim de um mês veio a resposta. Quem deferiu o requerimento ou não conseguiu encontrar a lei que impossibilitava aos milicianos as terceiras vindas à metrópole ou, por pura incompetência, não verificou que eu era miliciano.
Faltavam uns dias para ir para Bissau apanhar o avião com vista às terceiras férias, quando à porta do Comandante (Cor Neves Cardoso) tive uma discussão com um Major que mais tarde se viria a revelar de baixíssimo carácter, que elevou a voz. Como achava que tinha toda a razão do meu lado, elevei também a minha, no pressuposto, no meu subconsciente, que dentro do gabinete do Comandante estaria ainda o anterior Comandante Cor Hélio Felgas, que me teria dado razão.
A pessoa era outra e um pouco depois mandou-me chamar para me comunicar que me tinha cortado as férias.
Foto 2 > 1970 > O Cor Neves Cardoso entre o Ten Cor Banazol e o Administrador
Fui lamentar-me junto do Major que me tinha ajudado a fazer o requerimento e este, que não se dava com o outro (aliás ninguém se dava com tal elemento), prometeu-me que falaria com o Comandante.
Fui chamado novamente e lá vim de férias, só que o insólito ainda estava para acontecer.
Em Bissau, já no aeroporto, quando estava com o chek-in feito e a chamarem para o embarque, o meu passaporte militar não aparecia. Procurei, procurei, revi os bolsos várias vezes, várias vezes tirei tudo da pequena sacola que levava e nada.
Só faltava eu embarcar.
Em determinada altura a minha situação chegou ao conhecimento do Comandante do avião. Junto deste tornei a rever todos os sítios possíveis onde poderia estar o documento militar. Em determinada altura o comandante dá a seguinte ordem, sem que eu estivesse à espera:
- Retirem todas as malas do porão do avião até a mala do senhor Alferes aparecer.
Termino, dizendo que o Passaporte Militar não estava na mala… mas vim de férias… com Passaporte Militar.
Obrigado Senhor Comandante.
Foto 3 > ABR1970 > Viagem de Bissau para Bafatá em LDG - 1.ª classe, no regresso das últimas férias.
Foto 4 > ABR > Chegada ao cais do Xime, no regresso das terceiras férias. “Tudo ao monte e fé em Deus”
A próxima estória relatará uma situação simples da guerra de retaguarda à qual eu pertencia e que a meu ver completava a da frente de combate. O tema será uma mina e um poema alusivo de um nosso camarada também poeta.
Até para a semana camaradas.
Texto e fotos: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4637: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (8): À carga no Esquadrão de Cavalaria de Bafatá
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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