sexta-feira, 17 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4699: Histórias de José Marques Ferreira (3): Um fado no silêncio da madrugada


1. Mensagem de José Marques Ferreira, que foi Soldado Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré 1963/65, com data de 15 de Julho de 2009, com mais uma curiosa e divertida (para o envolvido não o deve ter sido muito) estória passada na sua companhia:


Camaradas;

Ingoré, ambiente de guerra.



Já aqui disse que a minha guerra na Guiné foi mais turismo e pó, que se entranhava nas narinas, na pele, na roupa e em tudo quanto era sítio, do que bombardeamentos, emboscadas (salvo uma “brincadeira” de que não sabemos as origens e que um dia, se se justificar, contarei) e tiros, que, felizmente, nos passaram ao lado. Nem sequer ouvimos tiros (os do IN claro).

Vá-se lá saber porquê. Estávamos lá e não fomos “incomodados”, ao passo que outros camaradas, não podem, absolutamente, dizer o mesmo.

Mas, mesmo assim a Guiné, como por aqui se diz, também foi sentida, vivida, com paixão, pelas coisas boas, porquanto também a nossa companhia, sem tiros, esteve na terreno a ajudar a construir a paz…

Parece conveniente justificar é que as populações – mais uma vez as populações – foram sempre a nossa preocupação, respeitando as suas vidas, os seus modos de viver e as suas necessidades, sem intromissões no que genuinamente lhes pertencia… os seus hábitos, costumes, crenças, etc., etc.

Sempre houve, aquilo que se convencionou chamar, na altura, a acção psico-social.

Isto quer dizer que, aquela gente, necessitava de nós, nos momentos maus porque passaram, e nós necessitávamos dela para o nosso equilíbrio psíquico, isto é, permitir-nos ter sempre presente a abismal diferença entre a guerra e a paz, entre a vida e a morte.

Enfim, desviei-me um pouco da história de hoje. Vamos a ela.

UM FADO NO SILÊNCIO DA MADRUGADA

Aquilo a que se chamava “aquartelamento”, em Ingoré, nem iluminação eléctrica tinha, luz só a dos petromax. Chegou a haver electricidade durante um ou dois meses, até os geradores “pifarem”, de tal modo fatalmente (desconheço os motivos dos “pifos”), que nunca mais tivemos iluminação eléctrica.

Havia segurança montada, sob uns cibes espetados no chão e com os quais se fez uma torre de vigia, não sei para quê, pois um bazucada prostrava aquela treta e o respectivo pessoal num instante (apesar disto dava algum jeito e alguma imagem de segurança).


De acordo com o local havia um esquema de segurança, que incluía um posto de vigia, situado mesmo nas traseiras do edifício, onde dormia o nosso comandante da companhia (façam-me o favor de não serem maliciosos).

Certo dia, o camarada que ali cumpria a seu turno de serviço, às tantas da madrugada (que bonita canção alentejana dava esta cena na madrugada de Ingoré) resolveu, àquela hora imprópria, cantar um fado.

O que eu pensei de imediato, quando me contaram o sucedido, foi que o “desgraçado” recorrera a este subterfúgio, para “camuflar” o alívio de algum sonoro “flato”, que o estaria a incomodar.

O que é certo, é que o “artista” pôs-se a cantar, já não sei que fado, mesmo sem acompanhamento à viola ou à guitarra. Imaginei os gestos, dedilhando a G3, em substituição dos ditos instrumentos. Não sei se foi assim, mas calculo que pouco menos terá sido...

O que eu sei é que a sua voz, melodiosa ou não, acordou o nosso comandante.

Este, não gostou mesmo nada de ouvir cantar o fado àquela hora da matina, pelo que, não esteve com meios ajustes e toca de, na Ordem de Serviço que se seguiu, sentenciar, sem apelo nem agravo, uns dias de detenção para o rapaz (é verdade detenção na Guiné, meus amigos!), como prémio para o tom “afinado” com que acordou o capitão da companhia!

Aqui sim, é caso para dizer: Triste fado, triste sina…

Para todos um abraço,
J.M. Ferreira


Foto: © José Marques Ferreira (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

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