sábado, 31 de outubro de 2009

Guiné 63/74 – P5187: Histórias de José Marques Ferreira (8): Jornal da Caserna (2)



1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos com data de 31 de Outubro de 2009, o segundo de alguns extractos do "Jornal da Caserna" da sua Companhia.

Os meus cumprimentos para a Tertúlia:

No seguimento da ideia que foi exprimida no primeiro poste (P5171), aqui vai uma pequena história do «Jornal da Caserna», um «órgão de comunicação social» propriedade de ninguém, mas com o apoio de muita gente da CCAÇ 462, cujo primeiro número foi dactilografado com cópias a químico em 1964, ano este em que não haviam ainda as actuais e práticas fotocópias, para reprodução do original ilustrado. O primeiro número foi dado à estampa (que grande definição para aquele tempo), em Fevereiro de 1964.

O número 15 deste periódico foi o último, porque em Outubro de 1964 recebemos ordens de carregar as trouxas e “desacampar”. O acampamento seguinte foi em Bula, como companhia operacional, sendo este o local onde estava centrado o BCAÇ 507 (Ten Cor Hélio Felgas), que, pouco tempo depois, deu lugar ao BCAV 790 sob o comando do Ten Cor Henrique Calado.

Eis a história:

Fogo com tornado em chuvas

“No fundo escuro da morança circular, entorpecida pelo reumatismo, que lhe roía as juntas, gemia a “mulher grande” do chefe da tabanca.

Àquela hora estavam os homens a juntar forças ao terçado para varrer mato, sulcar a terra, enterrar o fruto, para que a mancarra despontasse.

O chefe com os seus vizinhos de morança repetiam e juntavam os esforços, destilavam suor sobre calor abafado, para o trabalho do talhão deste ou daquele; onde cresceriam as suas esperanças em nova campanha de venda. Ora, o velho e resoluto Samba, fula genuíno, era um dos mortais em que a tropa do destacamento perto depositava confiança. Assim era na verdade e nas horas de trabalho ou de calcar mato de lés a lés, espiolhava com os seus homens todos os movimentos suspeitos do pessoal bandido no mato cerrado.

A mulher do fiel Samba lá estava estendida na esteira, suportando a ferrugem dos anos. Era a única alma viva, além de um outro garoto que brincava ou dormia a sesta em sorna doentia à sombra do mangueiro acolhedor. De repente, em surpresa assassina, os bandidos fizeram uma sortida e deitam fogo que se ateia furioso à palha seca dos moranças. Corre apressado o Samba, que ao ver fumo e gritos ao longe – pensa em mau agoiro. Quando corre ofegante passa pelos dedos o chifre e mèzinhos que trás ao pescoço. Aperta-os com força e com raiva.

Com espírito de jambacosse em mau agoiro – pensa no pior. Cansado, fura em corrida a entrada do quartel e conta ao Comandante o acontecido. Este põe o seu dispositivo de guerra em marcha, não atendendo ao tornado envolto em chuvas, que estala à mistura com o ribombar do trovão.

Os elementos facilitam a progressão. Estala um tiroteio de pôr os ouvidos a zunir e abatem-se alguns dos assaltantes em fuga precipitada. Algumas crianças fugiam espavoridas ao fogo crepitante em palha nas coberturas, sem o inevitável de algumas perecerem às chamas que as lambiam em círculo. Mulher grande – morre frente ao ódio excitado e assassino.E só por o velho Samba ser fiel… não aderir à catequização que se promovia. Samba com a lágrima no olho, cheio de dor – olha a sua casa em chamas.

Nada mais há a fazer…

- Enfim, foram mais umas vítimas inocentes desta guerra… - comentou mais alguém para o comandante da tropa, que conformava o velho Fula.

(Do nosso correspondente em Teixeira Pinto – ÓKEY)”

Esclarecimento:

Chamávamos ao nosso periódico da companhia: «Jornal da Caserna». Uma publicação que tinha os seus colaboradores locais e, mais além, “correspondentes” destacados em outras localidades, com resquícios de estrutura física e tudo.

Por isso, nós, já em 1964, utilizávamos e dávamos forma àquilo que hoje se intitula, corriqueiramente, de Comunicação Social, e é aceite pela sociedade como perfeitamente banal e natural.

Veja-se que até tínhamos um correspondente em Teixeira Pinto, que nos enviava, por avioneta, histórias como esta acima publicada e que, posteriormente, eu transcrevia para o “stencyl” (creio que é assim que se escreve).

O pseudónimo ÓKEY, era utilizado pelo Alf Mil Médico Ramiro Fernandes Figueiredo, que embora pertencendo à minha companhia (Ingoré), foi destacado, ou «emprestado», à unidade de Teixeira Pinto.

Foi o mais «destravado» e bem-disposto militar que conheci na minha vida. Penso que era, ou viria a ser, psiquiatra. Mas, o que ele gostava mesmo, era de jogar futebol misturado com toda a rapaziada… um desporto que, na Guiné, permitia a criação de grandes elos de amizade e fraternidade… inesquecíveis!

Aproveito esta oportunidade, para enviar esta foto de uma palhota que não foi incendiada (já que falamos delas na estória), que constituía o meu bur.. ako e que legendo assim: «Isto é uma moradia! Façam favor de entrar. Guiné - Có - Abril de 1965».

Para todos um abraço,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes

Foto e gravura: José M. Ferreira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:


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